A medida de semiliberdade, prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente, busca conciliar responsabilização e reintegração social. No entanto, enfrenta resistência de parte da sociedade que ainda confunde educação com impunidade.
Reeducar ou punir? Essa é a pergunta que paira sobre o sistema socioeducativo brasileiro, especialmente quando se trata da medida socioeducativa de semiliberdade aplicada a adolescentes autores de atos infracionais.
Em meio ao clamor social por punições severas, diminuição da maioridade penal e à promessa constitucional de proteção integral, a semiliberdade emerge como uma alternativa híbrida: não é liberdade plena, tampouco encarceramento total. É, antes, uma tentativa de conciliar responsabilização com reintegração — uma espécie de “grade invisível” que restringe sem aprisionar, vigia sem excluir.
A medida encontra previsão no artigo 120 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e regulamentação nos artigos 35 a 38 da Lei nº 12.594/2012, que institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE).
Trata-se de um regime que busca equilibrar a responsabilização do adolescente com a preservação de seus direitos fundamentais, permitindo-lhe participar de atividades externas — como cursos de qualificação, estudo e trabalho — enquanto permanece sob a supervisão de uma unidade de semiliberdade.
A Constituição Federal, em seu artigo 227, atribui à família, à sociedade e ao Estado o dever de assegurar, com prioridade absoluta, os direitos da criança e do adolescente.
No entanto, a execução da semiliberdade frequentemente revela falhas estruturais, ausência de políticas públicas eficazes e uma atuação fragmentada entre os entes responsáveis. O resultado? Jovens em situação de vulnerabilidade submetidos a medidas que, embora revestidas de legalidade, carecem de efetividade.
A medida socioeducativa apresenta natureza intermediária entre a internação e a liberdade assistida, sendo aplicável tanto como medida inicial quanto como forma de transição para o convívio comunitário.1 Normalmente o adolescente sai durante o dia para estudar e trabalhar e retorna à noite, podendo passar os finais de semana em casa, com a família.
Seu cumprimento deve observar os princípios da legalidade, brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, conforme estabelecido no ECA e reafirmado pelo SINASE.
Ela deve ser compreendida como instrumento de ressocialização pautado pela dignidade da pessoa humana e pela proteção integral, buscando a reintegração progressiva do adolescente à sociedade sem ruptura total de seus vínculos familiares, escolares e comunitários.
É concebida pelo ordenamento jurídico brasileiro como instrumento educativo e ressocializador, destinado a promover a responsabilização progressiva do adolescente em conflito com a lei, mas reflete um dilema jurídico e ético: de um lado, o garantismo constitucional, alicerçado nos princípios da proteção integral e da prioridade absoluta (art. 227. da CF/88), impõe ao Estado o dever de assegurar condições que favoreçam o desenvolvimento pleno do adolescente, inclusive quando este pratica ato infracional. De outro, o discurso punitivista, amplamente difundido no imaginário social e midiático, defende o endurecimento das medidas socioeducativas, muitas vezes confundindo responsabilização com retribuição penal.
Nesse cenário, a semiliberdade é frequentemente mal interpretada como uma forma de “impunidade disfarçada”, por permitir atividades externas e contato com a comunidade. Contudo, trata-se, na verdade, de uma estratégia de responsabilização com foco pedagógico, voltada à construção da autonomia e à reintegração social, conforme os parâmetros do ECA, do SINASE e dos tratados internacionais de direitos humanos.
O desafio, portanto, está em conciliar o garantismo jurídico com a pressão social por punição, reafirmando que o sistema socioeducativo não é extensão do sistema penal adulto, mas um modelo próprio, orientado pela lógica da educação e da inclusão, e não da repressão.
A finalidade primordial da medida é promover a responsabilização do adolescente por meio de processos educativos, capazes de estimular a reflexão crítica sobre o ato infracional e fomentar a construção de novos projetos de vida. A medida não busca infligir sofrimento ou retribuir o dano, mas reconstruir vínculos sociais e familiares, fortalecendo as competências pessoais e sociais do jovem em desenvolvimento.
O artigo 1º do SINASE estabelece que o atendimento socioeducativo deve assegurar os direitos do adolescente, priorizando a dimensão pedagógica e a perspectiva da reintegração social. Nessa lógica, a reprimenda deve articular educação formal, profissionalização e convivência comunitária, integrando o adolescente ao ambiente social de forma gradual e supervisionada.
Nesse processo, as instituições de semiliberdade têm papel central e, pelo menos no âmbito do Distrito Federal não deixam a desejar. Elas funcionam como espaços de formação e apoio, e não de segregação, proporcionando atendimento interdisciplinar que envolve equipes técnicas compostas por profissionais de psicologia, serviço social, pedagogia e direito.
A atuação integrada desses profissionais é essencial para elaborar os planos individuais de atendimento (PIA) que contemplam as especificidades de cada adolescente, conforme determina o art. 35, §1º, do SINASE.
Além disso, a execução da medida é sempre orientada pelo respeito à dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF/88) e pelo reconhecimento de que o adolescente é sujeito de direitos em condição peculiar de desenvolvimento. O afastamento do meio familiar e comunitário é tido como mínimo e temporário, de modo que as unidades de semiliberdade distritais funcionam como ponte de retorno à sociedade, e não como obstáculo à autonomia dos jovens.
Desse modo, a medida de semiliberdade cumpre sua função pedagógica quando proporciona responsabilização com sentido educativo, promovendo a internalização de valores, o exercício da cidadania e o fortalecimento da autoestima, em sintonia com o paradigma da proteção integral e com os compromissos assumidos pelo Brasil na Convenção sobre os Direitos da Criança.
Mas nem tudo são flores: apesar de seu caráter pedagógico e de seu respaldo constitucional e internacional, a execução da medida ainda enfrenta graves desafios estruturais e institucionais que atrapalham sua efetividade.
Entre os principais problemas está a carência de programas educacionais e de qualificação profissional compatível com o perfil dos adolescentes atendidos.
Em muitas unidades, as atividades externas — elemento essencial da semiliberdade — são inviabilizadas por falta de apoio interinstitucional. Empresas privadas e órgãos públicos deixam de receber adolescentes em cumprimento da medida para fins trabalho e reeducação por puro preconceito e falta de conhecimento nesse sentido, o que acaba por dificultar o propósito ressocializador da medida.2
No âmbito da Secretaria de Justiça do Distrito Federal, se observa, ao menos, uma forte articulação entre o sistema socioeducativo e as redes de proteção social, como saúde, assistência social, educação e trabalho, sendo que os jovens em cumprimento da medida recebem grandes oportunidades de mudança de vida.
Mas é preciso mais, porque a ausência de uma efetiva integração intersetorial impede a continuidade do acompanhamento do jovem, dificultando a reinserção comunitária e favorecendo a reincidência infracional.
Essas falhas revelam que a eficácia da semiliberdade depende menos do rigor formal da legislação e mais da vontade política e da estrutura estatal para garantir sua aplicação conforme os princípios constitucionais e internacionais de proteção integral. Enquanto o Estado não assegurar condições materiais e humanas adequadas, a medida ficará vulnerável à desvirtuação punitivista, perdendo seu potencial transformador.
Notas
-
PEREIRA, Tânia da Silva. Medidas socioeducativas: entre a proteção e a punição. Rio de Janeiro: Renovar, 2008: “A medida de semiliberdade deve ser aplicada com rigor técnico e sensibilidade social, pois representa uma etapa decisiva na transição entre a internação e a liberdade assistida.”
-
RODRIGUES, Marcelo. Sistema socioeducativo e direitos fundamentais: uma análise crítica da semiliberdade. Revista Brasileira de Direito da Criança e do Adolescente, v. 5, n. 2, p. 45–68, 2022: “A semiliberdade, quando desprovida de estrutura e suporte técnico, transforma-se em uma medida simbólica, incapaz de romper com o ciclo de exclusão social.”