Introdução: O Formalismo que Paralisa
É um cenário comum nos municípios brasileiros: uma lei de evidente utilidade pública, proposta por um vereador para resolver um problema concreto da comunidade — como a instalação de câmeras de segurança em prédios públicos ou rastreadores em veículos oficiais —, é sumariamente invalidada por um "vício de iniciativa". Este rigor formal, embora ancore-se na nobre intenção de preservar a separação dos poderes, tornou-se, na prática, um obstáculo ao progresso local. Ele paralisa a capacidade do Poder Legislativo de responder às demandas cidadãs e transforma o processo legislativo em um labirinto burocrático, onde a forma se sobrepõe à função.
A tese central deste artigo é que a interpretação excessivamente rígida do vício de iniciativa, hoje dominante na jurisprudência, tornou-se disfuncional. Embora sua origem esteja na proteção da autonomia administrativa do Poder Executivo, sua aplicação irrestrita tem gerado um paradoxo: em nome da ordem institucional, impedem-se soluções normativas que beneficiariam diretamente a população. Propõe-se, como alternativa, a aplicação da teoria do dano constitucional mínimo — uma virada hermenêutica indispensável para a vitalidade da democracia municipal, que busca equilibrar o formalismo procedimental com a efetividade das políticas públicas, garantindo que a lei sirva ao cidadão, e não à burocracia.
Ao longo desta análise, faremos um diagnóstico preciso do problema do formalismo excessivo, apresentaremos os contornos e critérios da solução proposta e defenderemos sua aplicação como um avanço indispensável para a governança municipal, o fortalecimento da democracia representativa e a concretização do interesse público.
1. O Paradoxo do Formalismo: Quando a Lei Protege a Burocracia, Não o Cidadão
O vício de iniciativa é um defeito formal que ocorre quando uma proposta legislativa é apresentada por um agente que não possui a competência constitucional para tal. Sua função teórica, fundamentada no artigo 61, §1º, da Constituição Federal, é proteger a autonomia do Poder Executivo em matérias ligadas à sua estrutura e funcionamento, como a criação de cargos e a gestão orçamentária. No entanto, o que foi concebido como um mecanismo de equilíbrio institucional transformou-se em um paradoxo: uma regra criada para proteger a ordem frequentemente impede a implementação de normas de alto interesse público.
A jurisprudência dominante, tanto no Supremo Tribunal Federal quanto nos Tribunais de Justiça estaduais, adota uma postura de extrema rigidez. Entendimentos consolidados, como os firmados na ADI 2.867/DF e no Tema 917 (RE 745.811/DF) , tratam o vício de iniciativa como "insanável", ou seja, um erro que não pode ser corrigido nem mesmo pela sanção do Prefeito. Exemplos práticos dessa rigidez abundam. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais, por exemplo, já declarou inconstitucionais leis municipais que determinavam a instalação de rastreadores em veículos oficiais (ADI nº 1.0000.23.332332-8/000) e a instalação de câmeras de segurança em prédios públicos (ADI nº 1.0000.22.168748-6/000). Neste último caso, o tribunal fundamentou sua decisão não apenas na invasão de competência, mas também no fato de que "a instalação de câmeras geraria inegável aumento de despesa". Em ambas as situações, normas meritórias, voltadas à transparência e à segurança, foram derrubadas por uma questão procedimental.
As consequências desse rigor excessivo são profundamente negativas. Ele cria um sistema de obstrução institucional, no qual o formalismo se sobrepõe à utilidade da norma. Essa postura desvaloriza a função representativa do Poder Legislativo, tratando vereadores eleitos como agentes incapazes de propor soluções para a cidade. Pior ainda, gera um vácuo na formulação de políticas públicas, especialmente quando o Poder Executivo, por inércia ou falta de prioridade política, se omite de legislar sobre temas urgentes. O resultado é um sistema que, em nome da forma, sacrifica a substância.
É imperativo, portanto, buscar uma nova perspectiva hermenêutica que supere essa rigidez paralisante, abrindo caminho para uma solução mais equilibrada e funcional.
2. A Solução Proposta: A Teoria do Dano Constitucional Mínimo
A teoria do dano constitucional mínimo não propõe uma ruptura com o princípio da separação dos poderes, mas sim uma releitura contemporânea e funcional do controle de constitucionalidade. Alinhada aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, ela parte de uma premissa simples: nem toda violação formal representa uma violação material da Constituição. A invalidação de uma lei só se justifica quando o vício de iniciativa causa um prejuízo real e concreto à ordem institucional.
Para que a forma ceda à substância de maneira segura e objetiva, a teoria estabelece critérios claros. O dano constitucional é considerado mínimo — e a lei, portanto, pode ser considerada válida — quando preenche, cumulativamente, os seguintes requisitos:
Ausência de impacto orçamentário: A norma não pode criar novas despesas para o município.
Não alteração da estrutura administrativa do Executivo: A lei não pode criar, extinguir ou modificar órgãos, cargos ou funções da administração.
Não imposição de obrigações operacionais à Administração Pública: A norma deve estabelecer diretrizes gerais, sem interferir na gestão cotidiana e nas escolhas administrativas do Executivo.
Alinhamento com princípios constitucionais fundamentais: O conteúdo da lei deve concretizar valores como a moralidade, a dignidade da pessoa humana, a proteção ambiental ou a transparência.
Promoção de valores republicanos e democráticos: A norma deve materializar um interesse público claro e legítimo, atuando de forma complementar e não como uma usurpação das prerrogativas centrais do Executivo.
A lógica por trás da teoria é análoga à das "nulidades relativas" existentes em outros campos do direito público. A análise deve focar no prejuízo efetivo causado à organização dos poderes, e não apenas na origem formal da proposição. Se uma lei de iniciativa parlamentar não gera custos, não desorganiza a administração e promove o bem comum, declará-la inconstitucional é um ato de formalismo excessivo que enfraquece, em vez de proteger, a ordem constitucional.
Além de logicamente sólida, a aplicação dessa teoria traz benefícios concretos para a democracia e a governança, que merecem ser explorados em detalhe.
3. Por que Flexibilizar? Os Benefícios de uma Interpretação Funcional
Adotar a teoria do dano constitucional mínimo não é um mero exercício acadêmico; é uma ferramenta prática para aprimorar a governança municipal. Essa abordagem fortalece a deliberação democrática, oferece uma resposta à inércia do Poder Executivo e, paradoxalmente, ajuda a prevenir o ativismo judicial, reequilibrando o sistema de freios e contrapesos.
3.1. Fortalecimento da Democracia e Combate à Omissão do Executivo
A Constituição de 1988 é uma "Constituição Dirigente", um programa normativo que impõe a todos os poderes o dever de concretizar direitos e promover o bem-estar social. Nesse contexto, com base no princípio da subsidiariedade, a atuação do Legislativo torna-se legítima e necessária quando supre uma "inércia sistemática e injustificada" do Executivo. Se a jurisprudência já admite a atuação do Judiciário para suprir omissões legislativas (como no mandado de injunção), é funcionalmente consistente permitir que o Legislativo atue para suprir omissões do Executivo, desde que observados os critérios de dano mínimo. A Câmara de Vereadores, como caixa de ressonância da sociedade, assume um papel complementar essencial, transformando-se em um agente proativo na concretização de políticas públicas necessárias.
3.2. Prevenção do Ativismo Judicial
Quando o Judiciário invalida uma lei útil por um vício puramente formal, ele cria um vácuo normativo que, muitas vezes, é preenchido pelo próprio Judiciário por meio de decisões que determinam políticas públicas. Esse "deslocamento indevido de protagonismo" enfraquece a política representativa. A validação de leis de dano mínimo se alinha a uma "jurisdição constitucional responsiva", na qual os tribunais apoiam soluções democraticamente legítimas em vez de criá-las. Ao fazer isso, o sistema restabelece o protagonismo do Poder Legislativo na criação de normas e mantém o Judiciário em sua devida função de árbitro, evitando que ele se torne um legislador substituto.
3.3. Uma Teoria com Limites Claros, Não um Cheque em Branco
A flexibilização proposta não é um convite à desordem. A teoria do dano constitucional mínimo possui limites claros e seguros para evitar a instabilidade. O vício de iniciativa não pode ser relativizado em casos que afetem o núcleo da gestão administrativa. Leis de iniciativa parlamentar que criem cargos públicos, determinem reajustes salariais, obrigam o Executivo a celebrar convênios, adquirir bens ou prestar serviços específicos, ou interfiram diretamente na discricionariedade do gestor público devem continuar sendo consideradas inconstitucionais. A teoria, portanto, não abre a porta para o populismo legislativo ou a desorganização administrativa; ao contrário, oferece uma proposta equilibrada e responsável.
Essa abordagem moderna e funcional é o caminho para um sistema legislativo mais eficaz, dinâmico e verdadeiramente conectado às necessidades dos cidadãos.
4. Conclusão: Um Chamado à Racionalidade e ao Compromisso com o Interesse Público
A rigidez formal na análise do vício de iniciativa, embora bem-intencionada, tornou-se um obstáculo ao desenvolvimento municipal e à solução de problemas reais. A teoria do dano constitucional mínimo oferece um caminho para o equilíbrio, permitindo conciliar o respeito à separação dos poderes com a necessidade de efetividade normativa. Ela propõe que o controle de constitucionalidade seja guiado por uma hermenêutica funcional, focando no impacto concreto da norma, e não apenas em sua origem.
Convoca-se, pois, a jurisprudência, a doutrina e os parlamentos municipais a superarem o formalismo paralisante. É preciso que a jurisprudência assuma uma postura mais responsiva e comprometida com os resultados constitucionais. O vício de iniciativa, compreendido a partir de uma ótica funcional, deve deixar de ser um entrave para se tornar um ponto de partida para a construção de uma racionalidade constitucional verdadeiramente comprometida com o interesse público.
É tempo de o direito servir à concretização dos valores constitucionais. É tempo de garantir que o processo legislativo municipal seja, de fato, um motor de progresso, e não uma formalidade paralisante que afasta a lei das pessoas a quem ela deveria servir.