O Direito Penal sofreu uma brusca alteração nos últimos anos, especialmente após a pandemia da covid-19 Nesse período, o isolamento social tornou-se mais aceitável, e diversas práticas excepcionais acabaram incorporadas à rotina institucional. Entre elas, destacam-se o trabalho contínuo em home office, as audiências on-line e as sustentações orais virtuais. Mecanismos que haviam surgido de forma emergencial durante o desafio sanitário experimentado pela humanidade foram, gradualmente, convertidos em regra.
O aparente avanço do uso tecnológico, contudo, parece ocultar questões delicadas. Entre elas estão o distanciamento da autoridade julgadora da efetiva colheita da prova e a dificuldade de garantir a não contaminação do depoimento testemunhal. Soma-se a isso a perda de respeitabilidade do ato processual, antes preservada por uma liturgia própria. Além disso, a visão autocentrada que se formou no ambiente virtual impede a troca de experiências e o compartilhamento de ideias, levando a pessoa, isolada em seu espaço privado, a experimentar uma sensação artificial de comodidade e controle do universo.
O impacto dessa postura é sentido na própria estrutura do sistema penal. O distanciamento entre as pessoas produziu um empobrecimento do debate, sempre fundamental ao processo penal e ao avanço das ciências criminais. O Direito Penal, em sua vocação rigorosamente científica, depende da circulação de ideias e da discussão intelectual qualificada para manter sua coerência dogmática e evolutiva. Quando essa troca se enfraquece, todo o edifício penal se fragiliza.
Nesse sentido, o sistema penal vem se convertendo em uma estrutura que já não se ancora no debate, mas na desqualificação pessoal do outro. Observa-se, cada vez mais, que os processos criminais deixam de ser resolvidos pela lógica dogmática própria do sistema e passam a ser conduzidos pelo apontamento de elementos destinados a diminuir a respeitabilidade e a credibilidade da pessoa acusada. Assim, o processo criminal, de maneira sutil porém constante, deixa de ser uma estrutura baseada no fato para se aproximar novamente do modelo medieval centrado no autor.
Esse movimento tem influenciado todo o sistema punitivo. Em processos administrativos e em comissões parlamentares de inquérito, tornou-se comum que os responsáveis pela investigação utilizem expressões diretamente vinculadas à pessoa investigada, e não ao fato apurado. Essa estratégia, voltada a minar a credibilidade do indivíduo, impede que seus argumentos sejam devidamente considerados e compromete a racionalidade do procedimento.
O resultado desse processo é um profundo empobrecimento do debate democrático. A própria democracia contemporânea passa a ser colocada em xeque, justamente porque havia se estruturado com base em argumentos.
Em outras palavras, a democracia representou, desde a derrocada dos modelos autoritários europeus no pós-Segunda Guerra Mundial, um retorno ao seu princípio clássico ateniense, segundo o qual o debate de ideias é o elemento capaz de promover o avanço das pessoas e das próprias instituições.
Contrapondo-se à lógica da banalização do mal, delineada por Hannah Arendt no pós-Estado nazista alemão, desenvolveu-se a compreensão de que a contestação fundamentada e intelectualmente estruturada não seria negativa. Ao contrário, seria justamente o instrumento apto a permitir o desenvolvimento da sociedade e, por consequência, do sistema jurídico.
Na atualidade, entretanto, essa lógica tem sido substituída pela desqualificação da pessoa. A impossibilidade de enfrentar os argumentos do outro já não conduz a qualquer reflexão sobre eles, mas à necessidade de atacar a própria pessoa que apresenta razões contrárias ao que se deseja. Dentro do mundo ancorado nas redes sociais, em que todos falam sobre tudo, quando não se compreende determinado tema, resta apenas desqualificar quem diz aquilo que não se quer ouvir.
Nessa toada, verifica-se um retrocesso da democracia dos argumentos para o debate da desqualificação ad hominem. Trata-se de um movimento que privilegia vencer a qualquer preço, em vez de permitir que a realidade avance e que bases mais racionais e lógicas prevaleçam.
Essa deterioração do debate coloca em xeque a própria democracia, tal como concebida e vivida desde a derrocada dos modelos autoritários europeus. A humanidade passa a ser submetida ao retorno de estruturas retóricas próprias das tiranias, pois a razão deixa de se ancorar no científico e no intelectual, estabelecendo-se onde houver maior capacidade de degradação da imagem do outro.
O sistema jurídico é diretamente atingido por esse retrocesso. No Brasil, o problema se agrava com a notória perda de qualidade do ensino jurídico, impulsionada pela pulverização desorientada e sem controle efetivo mínimo de cursos de Direito em todo o País.
Em especial, o Direito Penal, tradicionalmente ancorado em bases dogmático-científicas, experimenta verdadeira derrocada. Noções como dolo, finalidade, estrutura da ação e de autoria — entre outras construções desenvolvidas ao longo de décadas de pensamento penal científico — deixam de ocupar o centro do debate. A desqualificação do acusado torna-se o núcleo do processo, e o próprio instrumento processual passa a ser utilizado como mecanismo de degradação pessoal, deixando de exercer sua função de conter o poder punitivo do Estado para, ao contrário, ampliá-lo em prol da desmoralização do oponente.
Não por outra razão, tornaram-se frequentes denúncias criminais baseadas em fatos que claramente não constituem crime. Também se disseminou o uso de acusações relativas a crimes contra a honra ou delitos menores, muitas vezes sem observância de qualquer critério dogmático mínimo, sendo empregadas unicamente para produzir a desqualificação do “oponente”.
Esse quadro evidencia os riscos de um rápido avanço autoritário na sociedade. O controle de determinadas estruturas de poder torna possível impor vontades com facilidade, especialmente em uma coletividade na qual o debate não importa, o científico e o intelectual tornam-se secundários e a desqualificação ad hominem passa a ter peso de verdade absoluta.
Quando o principal mecanismo de contenção da irracionalidade punitiva do Estado — o Direito Penal — é metamorfoseado em instrumento funcional para a garantia dessa irracionalidade e para a desqualificação do outro, aquele que pensa de forma diversa, nada impede que as punições estatais sejam controladas e direcionadas. Nesse cenário, tornam-se maximamente seletivas, atingindo não necessariamente autores de fatos graves, mas, sobretudo, pessoas que não concordam com a centralização do poder. Essas pessoas jamais terão suas ideias debatidas e serão, na lógica atual, submetidas a intensa campanha de desqualificação.
Várias questões são relevantes para impedir o retrocesso completo aos piores cenários. Destaca-se, dentro do objeto do presente texto, a retomada do estudo científico e intelectualmente comprometido do Direito Penal, bem como a recuperação, no âmbito judicial e jurisprudencial, do debate em torno das teorias e dos fatos. Trata-se de superar o espaço atualmente ocupado por discussões voltadas apenas a atingir a pessoa em si.
Também se revela essencial o fortalecimento dos mecanismos de controle sobre a inicial acusatória. É preciso superar a lógica inercial de admissão do processo com fundamento no sempre polêmico princípio do in dubio pro societate e exigir, já no ato inicial, provas de tipicidade aparente, com efetivo controle da licitude probatória. Isso permite minar a utilização do processo penal como simples instrumento de desmoralização do outro.
Limitar as estruturas de exercício do poder punitivo é tarefa fundamental para a preservação dos elementos que sustentam a República Democrática. Assim, o abandono da democracia do debate e o retrocesso à lógica de desqualificação das pessoas devem ser freados, sob pena de se habilitar um poder punitivo descontrolado. Por essa razão, a dogmática penal reassume o papel central que lhe foi atribuído no pós-Estado nazista, e instituições com capacidade de limitação e racionalização do poder punitivo, como o Tribunal do Júri, devem ser fortalecidas, e não submetidas aos ataques injustificados que atualmente lhes são dirigidos.
Em última análise, o ser humano, fechado em si mesmo, desaprendeu a debater e a dialogar com o pensamento contrário. Isso o conduz a desqualificar aqueles que produzem ideias que ele não compreende, bem como instituições capazes de minorar a febre punitiva irracional. O resultado é um rebaixamento social da democracia ao modelo medieval de controle e exercício do poder, prenunciando estruturas autoritárias. Por isso, torna-se essencial reestruturar o Direito Penal em suas bases científicas e intelectuais, fortalecendo as instituições verdadeiramente aptas a conter o poder punitivo.