IV – O art. 54 da lei antitruste e a Constituição: interpretação conforme.
A exegese do art. 54 da Lei 8.884/94 deve ser empreendida à luz dos preceitos constitucionais conformadores da ordem econômica, sob pena de inconstitucionalidade de todo e qualquer ato administrativo que, preso a sua literalidade e desgarrado desses princípios e fundamentos, negue aprovação a negócio jurídico submetido à apreciação do CADE. O § 3° desse artigo induz o intérprete menos atento a presumir que a empresa detentora de 20% (vinte por cento), ou mais, de um mercado relevante, ou cujo faturamento tenha atingido o montante nele inscrito, desfruta de condições para limitar ou prejudicar a livre concorrência ou dominar mercado relevante. Com relação à participação de mercado, essa presunção está expressamente lançada no art. 20, § 3°, da lei antitruste, segundo o qual "a posição dominante (...) é presumida quando a empresa ou grupo de empresas controla 20% (vinte por cento) de mercado relevante, podendo esse percentual ser alterado pelo CADE para setores específicos da economia". Trata-se de disposição absolutamente incompatível com os ditames da ordem econômica constitucional, que, como exaustivamente referido, não impede o regular exercício do poder econômico, apenas condenando o seu uso abusivo. A propósito esclarece Heloisa Carpena,
"a definição legal não é suficiente para se concluir pela existência de posição dominante, visto que esta não prescinde da demonstração da capacidade da empresa agir de forma independente, exercendo efetivo controle sobre os preços praticados no dado mercado. A conclusão sobre a existência de posição dominante, permita-se frisar, dependerá da análise de vários fatores, e não apenas da parcela de mercado. A empresa pode deter posição dominante, possuindo notável poder econômico e ainda assim atuar competitivamente. O comportamento relevante para a concorrência não será o mero exercício do poder de mercado, mas sim o seu abuso" [18] (destaquei).
Todo e qualquer negócio jurídico licitamente celebrado entre particulares que, por imposição do disposto no art. 54 da lei antitruste, seja submetido à apreciação do CADE não poderá, com amparo nessa esdrúxula presunção, deixar de ser aprovado.
Sob o aspecto material, as normas desse artigo devem ser tidas por inconciliáveis com a Lei Magna. Com efeito, agridem princípios fundamentais da Constituição (art. 1°, IV; art. 170, caput e V), além de contradizerem o comando do § 4° do art. 173. No entanto, parece-me possível salvar, em parte, o preceito, se lhe for conferida interpretação que o reconduza ao seio da Lei Suprema. Para esse efeito, o CADE somente pode negar aprovação a qualquer negócio jurídico submetido a sua apreciação se demonstrar que ele é fruto de exercício abusivo do poder econômico detido por seus participantes e que esse negócio é o meio por eles empregado para dominar mercado, eliminar concorrentes e aumentar arbitrariamente o lucro. Sem a comprovação do vício do negócio jurídico (uso abusivo de poder econômico) e de sua finalidade (dominar mercado, eliminar concorrente e aumentar arbitrariamente o lucro), qualquer decisão do CADE denegatória de aprovação do ato deve ser reputada inconstitucional. Qualquer decisão do CADE que, sem embasamento comprovado em fatos dessa natureza, negue aprovação a negócio jurídico firmado entre as partes está, pura e simplesmente, aniquilando esses princípios fundamentais, cerceando o legítimo exercício de direitos outorgados constitucionalmente aos indivíduos, entre eles o uso regular de poder econômico. Sem falar na ofensa ao princípio que garante a propriedade privada e sem embargo de estar, igualmente, renegando um dos objetivos fundamentais da República, o desenvolvimento nacional (art. 3°, II).
Sob o aspecto formal também é necessário adequar a interpretação da Lei 8.884/94 aos princípios constitucionais. No título que trata das infrações contra a ordem econômica, ela considera como tal os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam "limitar, falsear, ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa, dominar mercado relevante de bens e serviços, aumentar arbitrariamente os lucros (e) exercer de forma abusiva posição dominante" (art. 20). As penas aplicáveis aos responsáveis pela infração são as previstas no art. 23 (multas) e no art. 24 (publicações, proibições etc.), estabelecendo o inciso V deste como penalidade "a cisão de sociedade, transferência de controle societário, venda de ativos, cessação parcial de atividade, ou qualquer outro ato ou providência necessários para a eliminação dos efeitos nocivos à ordem econômica".
Como é cediço na doutrina e na jurisprudência, a apuração da infração e de seu responsável, com a conseqüente aplicação das penas legalmente previstas, deve obedecer ao devido processo legal, compreendendo, especialmente a garantia do contraditório e da ampla defesa com os meios e recursos a ela inerentes (CF, art. 5°, LIV e LV). Assim, para que alguém seja validamente privado de sua liberdade ou de seus bens, exige a Constituição que a razão fundante dessa privação seja efetivamente comprovada (demonstração da materialidade do fato infracional e de sua autoria) através do devido processo legal. Evidenciada, por essa forma, a concreta ocorrência da infração e identificado seu responsável, se a gravidade dos fatos ou o interesse público geral a justificarem cabe a aplicação da sanção cominada pelo inciso V do art. 24. Ou seja, a cisão de sociedade, a transferência de controle societário, a venda de ativos, a cessação parcial de atividade, ou qualquer outra providência considerada hábil à eliminação dos efeitos nocivos à ordem econômica, somente se harmonizam com os ditames constitucionais após escorreita conclusão do processo administrativo, no curso do qual deverá ser facultado ao acusado o exercício de seu lídimo direito de defesa.
No título que cuida da forma de controle dos atos e contratos, a lei prescreve que, se negar aprovação ao negócio jurídico, o CADE deve determinar sua desconstituição total ou parcial, seja por distrato, cisão de sociedade, venda de ativos, cessação parcial de atividade ou qualquer outro ato ou providência adequada à eliminação dos efeitos nocivos à ordem econômica (art. 54, § 9°). Vale dizer, "as providências" que essa norma relativa aos meios de controle dos negócios jurídicos determina sejam impostas pelo CADE são absolutamente idênticas à sanção prevista pelo inciso V do art. 24 da lei antitruste.
Nota-se, porém, substancial diferença de procedimentos: enquanto a válida aplicação da sanção por infração à ordem econômica (art. 24, V) exige que ela o seja através de regular processo de natureza punitiva, que obedeça ao devido processo legal (instauração por ato de autoridade competente, com acusação precisa e fundada em norma legal, garantido ao acusado o pleno exercício do direito de defesa e somente mediante comprovação da materialidade, escopo e autoria da infração – arts. 20 e 21), na hipótese do art. 54, em procedimento qualificado como de controle, portanto, despido de acusação formal e sem a garantia do direito de defesa, a desaprovação do ato enseja punição idêntica.
Ocorre, por conseguinte, absoluta dissonância procedimental em detrimento, na hipótese do § 9° do art. 54, do direito ao devido processo legal. Em síntese, concluindo o CADE que o negócio jurídico a ele submetido não deve ser "autorizado" ou "aprovado", a norma enfocada impõe-lhe o dever de determinar medidas de conteúdo punitivo da mesma natureza da sanção prevista no inciso V do art. 24, como se estivesse julgando uma acusação por infração à ordem econômica.
Sob esse aspecto é inequívoca a incompatibilidade do § 9° do art. 54 com os princípios constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. Para que, também por essa razão, não se tenha de reputar inconstitucional esse preceito, a única exegese passível de conformá-lo aos comandos de Lei Suprema é a de que o CADE apenas pode negar aprovação se, entendendo que o negócio jurídico configura hipótese de exercício abusivo do poder econômico e tem por finalidade a dominação de mercado, eliminação de concorrência e aumento arbitrário de lucro, facultar às partes que o pactuaram, após formal e precisa acusação, o exercício da ampla defesa, ou seja, através do devido processo legal.
V – Inaplicabilidade do parágrafo único do art. 170 da Constituição
A aprovação do negócio jurídico que, nos termos da lei antitruste, emprestar-lhe-ia eficácia não deve ser confundida ou equiparada à autorização de que trata o parágrafo único do art. 170 da Constituição. Essa disposição, ao garantir a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, é decorrência natural da livre iniciativa, fundamento da República e da ordem econômica, e consectário inafastável do princípio da livre concorrência. A Lei 8.884/94 esteia-se, na parte que dispõe sobre a repressão ao abuso do poder econômico, no § 4°, do art. 173. A lei antitruste não disciplina o exercício de qualquer atividade, seja para autorizá-la ou não; objetiva, unicamente, regrar o exercício abusivo do poder econômico.
Comentando o preceito constitucional Celso Ribeiro Bastos, alertando para o respeito aos limites impostos ao Estado no campo econômico, doutrina:
"Não é lícito à lei fazer depender de autorização de órgãos públicos atividades não sujeitas à exploração pelo Estado nem a uma especial regulação por parte do poder de polícia. É aceitável, pois, que dependam de autorização certas atividades sobre as quais o Estado tenha necessidade de exercer uma tutela, quanto ao seu desempenho no atinente à segurança, à salubridade pública etc. Traduzir-se-á em inconstitucionalidade se a lei extravasar estes limites e passar, a seu talante, a fazer depender de autorização legislativa as mais diversas atividades econômicas. Isto equivaleria sem dúvida a uma manifesta negação do princípio da livre iniciativa inserido na cabeça do artigo. Trata-se de dispositivo que melhor seria não tivesse sido incluído na Constituição. É ambíguo. Sob uma aparente liberalidade no fundo tenta insinuar uma abominável discrição da lei quanto às atividades que podem ser exercidas independentemente de autorização" [19] (destaquei).
Registre-se, adicionalmente, que a lei antitruste, de forma ampla e genérica, incide sobre toda e qualquer atividade econômica que extravase os limites do regular exercício do poder econômico. Segundo seu art. 15, ela aplica-se "às pessoas físicas ou jurídicas de direito público ou privado, bem como a quaisquer associações de entidades ou pessoas, constituídas de fato ou de direito, ainda que temporariamente, com ou sem personalidade jurídica, mesmo que exerçam atividade sob regime de monopólio estatal". Sob o ponto de vista da repressão ao exercício abusivo de poder, essa disposição não merece censura, porque é notório que o poder econômico não é detido ou exercitável apenas pelos particulares. O próprio Estado e suas ramificações autárquicas e empresariais, qualquer que seja a forma jurídica por elas adotada, também o detém e o exercem. Assim, em tese, qualquer pessoa jurídica de direito público ou entidade paraestatal pode, utilizando indevida e abusivamente seu poder econômico, adotar condutas configuradoras de infrações contra a ordem econômica. Em tal caso, não podem, apenas por força de sua natureza pública ou por submeterem a controle de pessoas jurídicas públicas, usufruir de isenção ou imunidade por atos de semelhante índole.
A sedutora tentativa de que a "autorização" prescrita pelo art. 54 da lei antitruste lance âncoras no preceito do parágrafo único do art. 170 da Constituição conduz a absurda e inconcebível exegese. Se assim fosse, essa "autorização" ou "aprovação" seria exigível para o exercício de atividades sob regime de monopólio estatal e também para o exercício de atividades sob regime de concessão. Os negócios jurídicos pactuados nessa seara também estariam submetidos à condição suspensiva imposta pelo referido art. 54 e somente adquiririam eficácia se aprovados pelo CADE. As atividades sob regime de monopólio, que são unicamente as que a própria Constituição assim preceitua, "correspondem, pura e simplesmente, a atividades econômicas subtraídas do âmbito da livre iniciativa" [20]. Incogitável que tais atividades, que a própria Constituição comete a pessoa determinada, dependessem para seu exercício da autorização de que cuida o art. 54 da lei antitruste. Da mesma forma, inconcebível pretender sujeitar a essa autorização o exercício de atividades sob regime de concessão, notadamente aquelas que a Lei Suprema conceitua como serviços públicos de titularidade de entidades de idêntica natureza. Vejam-se, a título exemplificativo, as hipóteses do art. 21, inciso XI (serviços de telecomunicações) e do inciso XII (serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens, energia elétrica e aproveitamento energético dos cursos de água, navegação aérea, aeroespecial e infra-estrutura portuária, transporte ferroviário e aquaviário, transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros e portos marítimos, fluviais e lacustres). Sendo a exploração dessas atividades atribuídas constitucionalmente à União, a quem compete decidir pela exploração direta ou indireta, inimaginável sua sujeição à autorização contida no art. 54 da lei antitruste. É o suficiente para patentear que essa disposição legal não se arrima no cânon do parágrafo único do art. 170 da Constituição.
A propósito do art. 170 da Lei Maior, elucida Celso Antônio Bandeira de Mello [21] que:
"(...) a Administração não tem título jurídico para aspirar reter em suas mãos o poder de outorgar aos particulares o direito ao desempenho da atividade econômica tal ou qual; evidentemente, também lhe faleceria o poder de fixar o montante da produção ou comercialização que os empresários porventura intentem efetuar. De acordo com os termos constitucionais, a eleição da atividade que será empreendida assim como o quantum a ser produzido ou comercializado resultam de uma decisão livre dos agentes econômicos. O direito de fazê-lo lhes advém diretamente do Texto Constitucional e descende, mesmo, da própria acolhida do regime capitalista, para não se falar dos dispositivos constitucionais supramencionados" (destaquei em itálico/negrito; o itálico simples é do original).
Relativamente a seu parágrafo único, o mesmo jurista evidencia de forma inquestionável que a autorização ali encartada é substancialmente diversa, não visando a conferir eficácia a qualquer tipo de negócio jurídico. Ensina ele que [22]:
"(...), dita autorização (ou denegação) evidentemente não concerne aos aspectos econômicos, à livre decisão de atuar nos setores tais ou quais e na amplitude acaso pretendida, mas ao ajuste do empreendimento a exigências atinentes à salubridade, à segurança, à higidez do meio ambiente, à qualidade mínima do produto em defesa do consumidor etc. É claro que, se fosse dado ao Poder Público ajuizar sobre a conveniência de os particulares atuarem nesta ou naquela esfera e decidir sobre o volume da produção, estar-se-ia desmentindo tudo o que consta dos artigos citados e do próprio parágrafo único do art. 170, como se acaba de referir" (destaquei).
E, ao final de sua percuciente análise, arremata [23]:
"É fundamental realçar – repita-se – que tais autorizações não dizem respeito, nem podem dizer respeito, aos aspectos econômicos do empreendimento, pois no que a isto concerne os agentes econômicos são livres. Têm assegurados pela Constituição seus direitos à liberdade de iniciativa, à liberdade de concorrência e à garantia de que o planejamento econômico que o Poder Público faça apresentar-se-lhe-á com caráter meramente indicativo, não podendo implicar sujeição ou cerceio algum à liberdade econômica que lhes é reconhecida pela Lei Magna. A não ser assim, o art. 170, o inciso IV do mesmo preceptivo e o art. 174 seriam palavras vãs, juridicamente inexistentes" (itálico e negrito do original).