6 CONCLUSÃO
A discussão desenvolvida ao longo deste ensaio acerca das resoluções administrativas e portarias, editadas por Chefes de Polícia, Delegados de Polícia, Secretários de Estado e Juizes Eleitorais proibindo a comercialização e consumo, em locais públicos, de bebidas alcoólicas nos dias de eleições, conduz à inequívoca conclusão acerca da invalidade de tais disposições proibitivas.
Embora de discutível valor moral e social, a proibição em questão não obedece a princípios basilares do Estado Democrático de Direito, desrespeitando, de forma mais evidente, o Princípio da Legalidade.
Fato é que não há Lei (entendida como dispositivo formal e material de criação, restrição, modificação ou extinção de direitos e obrigações, originadas do regular processo legislativo) que institua a proibição da comercialização e consumo, em locais públicos, de bebidas alcoólicas em dias de eleições. Não há no Código Eleitoral, na Lei das Eleições, no Código Penal ou qualquer outro diploma legal disposição específica acerca do caso em estudo. O que há são resoluções administrativas e portarias instituindo a proibição. No entanto, as resoluções administrativas e as portarias constituem espécies normativas derivadas, com a finalidade de regulamentar e complementar lei preexistente, inócuas e ineptas, pois, para inovar no ordenamento jurídico. Pressuposto de validade das resoluções e portarias aqui tratadas é a existência prévia de Lei que lhes forneça conteúdo e delimite sua competência regulamentar. Ora, não existindo tal lei, não tem legitimidade e razão de existir a respectiva resolução ou portaria, criada no vácuo legal, pois não haverá o que complementar ou regulamentar simplesmente.
Contradizendo, entretanto, os princípios do Estado Democrático de Direito, observa-se que as portarias e resoluções em análise vêm tipificando condutas delituosas, ou seja, vêm criando modalidades criminosas, competência tal pertencente exclusivamente à União, que a exerce por meio da edição de Leis. A existência e a iniciativa destas espécies regulamentares derivadas no âmbito do poder normativo originário, derivam da total incompetência dos agentes instituidores da proibição da comercialização e consumo, em locais públicos, de bebidas alcoólicas em dias de eleição, os quais justificam seus atos como sendo exercício do Poder Regulamentar da Administração e exercício do Poder de Polícia. Infundadas são estas justificativas destes agentes do Poder Público, uma vez que o Poder Regulamentar se destina a complementar e regular leis preexistentes e não a criar, restringir, modificar ou extinguir direitos e obrigações. Outrossim, o Poder de Polícia da Administração tem como pressuposto de validade a estrita vinculação à Lei, isto é, não pode o agente agir fora dos limites legais instituídos, sob pena de incorrer em abuso de poder e desvio de finalidade. Não havendo lei alguma que proíba a comercialização e o consumo de bebidas alcoólicas, em logradouros públicos, nos dias de eleições, não se configura o exercício do Poder de Polícia, mas sim uma afronta ao Princípio da Legalidade, segundo o qual à Administração só é permitido atuar conforme os ditames legais. Aponta-se também o desrespeito ao Princípio da Legalidade do lado do cidadão, que passa a ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa sem lei anterior que o determine. Assim, o que ocorre é abuso de poder por parte das autoridades administrativas.
Outra alegação dos agentes instituidores de tais proibições, a qual também se mostra infundada, é a da aplicação dos tipos previstos na legislação penal. Quando do descumprimento de resolução editada por Secretário de Estado, Chefe de Polícia ou Delegado de Polícia, os agentes públicos buscam fundamentar-se no art. 330 do Código Penal Brasileiro, qual seja:
Art. 330. Desobedecer a ordem legal de funcionário público:
Pena – detenção de 15 (quinze) dias a 6 (seis) meses, e multa. (BRASIL, 1940).
Admitir tal alegação equivale a permitir que funcionário público crie, por iniciativa própria, modalidades criminosas. Ora, constitucionalmente, Secretários de Estado, Chefes de Polícia e Delegados de Polícia, funcionários do Poder Executivo que são, não possuem dentre suas competências legais a capacidade de tipificar condutas como crimes e criar leis.
Em se tratando de portarias editadas por juizes eleitorais, estes simplesmente fundamentam a proibição no exercício do Poder Regulamentar e se baseiam na atribuição de "cumprir e fazer cumprir as decisões e determinações do Tribunal Superior e do Regional" e "fazer as diligências que julgar necessárias à ordem e presteza do serviço eleitoral", previstas, respectivamente, nos incisos I e IV do art. 35 do Código Eleitoral. Aos transgressores das determinações dos juizes, aplicadas são as penas do art. 347 do Código Eleitoral Brasileiro, que dispõe:
Art. 347. Recusar alguém cumprimento ou obediência a diligência, ordens ou instruções da Justiça Eleitoral ou pôr embargos à sua execução:
Pena – detenção de 3 (três) meses a 1 (um) ano e pagamento de 10 (dez) a 20 (vinte) dias-multa. (BRASIL, 1965).
Aceitar a imposição das penas do art. 347 do Código Eleitoral à conduta atinente à comercialização e consumo, em locais públicos, de bebidas alcoólicas em dias de eleições, é admitir a competência do juiz eleitoral para criar modalidades criminosas, por meio de instrumento apenas destinado à regulamentação e complementação de lei preexistente e implica aceitar a interpretação extensiva em matéria penal, uma vez que se estenderia às cominações do art. 347 do Código Eleitoral uma conduta que a lei explícita e tipificadamente não proíbe. Além do mais, haveria a possibilidade do julgamento da conduta criminosa por aquele que a criou, fato este incompatível com os princípios do Estado Democrático de Direito.
Inconstitucionais, portanto, as resoluções e portarias proibitórias da comercialização e consumo, em locais públicos, de bebidas alcoólicas, nos dias de eleições, por não serem as espécies normativas derivadas capazes de inovar o conteúdo normativo do ordenamento jurídico, mas tão somente aptas a regulamentar e complementar lei já existente. Reitera-se que no caso em estudo não há sequer lei que determine a proibição do comércio e consumo de bebidas alcoólicas durante o pleito, corroborando a afirmativa de que as resoluções e portarias, impropriamente, vêm atuando como se leis fossem. Os agentes editores das resoluções e portarias, embora competentes para expedir normas de caráter derivado, não o são para criar modalidades criminosas ou restringir, modificar ou extinguir direitos e obrigações. A competência destes agentes se restringe a especificar, através das portarias e resoluções, os mecanismos necessários para a execução da lei, sem poder, através do ato, contrariar a lei ou invadir seu campo de atribuições.
Em contraposição à inconstitucional proibição da comercialização e do consumo, em locais públicos, de bebidas alcoólicas em dias de eleições, através de resoluções e portarias de natureza administrativa, há outras formas, legais e tipificadamente definidas, de coibir tumultos que porventura ameacem a realização do pleito eleitoral. O Código Eleitoral, em seu art. 296, prevê:
Art. 296. Promover desordem que prejudique os trabalhos eleitorais:
Pena – detenção até 2 (dois) meses ou pagamento de 30 (trinta) a 60 (sessenta) dias-multa. (BRASIL, 1965).
O art. 297 do Código eleitoral também institui como crime, no intuito de garantir o exercício do direito ao sufrágio, a seguinte conduta:
Art. 297. Impedir ou embaraçar o exercício do sufrágio:
Pena – detenção até 6 (seis) meses e pagamento de 60 (sessenta) a 100 (cem) dias-multa. (BRASIL, 1965).
Como mecanismo assecuratório da tranqüilidade e paz social, a legislação não-eleitoral prevê vários outros dispositivos, os quais podem ser aplicados legitimamente nos dias em que se processam as eleições. Neste sentido, oportuna se faz a citação de dispositivos presentes na "Lei de Contravenções Penais" (Decreto-Lei 3.688/1941). Assim, entre outros, dispõe o art. 42 da "Lei de Contravenções Penais" :
Art. 42. Perturbar alguém, o trabalho ou o sossego alheios:
I – com gritaria ou algazarra; (BRASIL, 1941).
Aliás, a proibição do comércio e consumo, em logradouros públicos, de bebidas alcoólicas em dias de eleições não está diretamente ligada à bebida alcoólica em si, mas aos atos que um indivíduo alcoolizado pode protagonizar. Em face disso, a penalização pela perturbação alheia pode perfeitamente ser aplicável ao indivíduo que, em função do abuso de bebida alcoólica, perpetra atitudes que ameaçam o sossego das eleições. Levando-se em consideração que o uso de bebidas alcoólicas não é proibido legalmente, não se pode punir sua simples utilização, mas tão somente e unicamente a conduta que, legalmente reprovável, tenha sido encorajada ou desencadeada pelo uso do álcool.
Dispositivo legal igualmente capaz de garantir a ordem e a tranqüilidade do pleito eleitoral, o art. 65 da "Lei de Contravenções Penais" estabelece:
Art. 65. Molestar alguém ou perturbar-lhe a tranqüilidade, por acinte ou por motivo reprovável:
Pena – prisão simples, de 15 (quinze) dias a 2 (dois) meses, ou multa. (BRASIL, 1941).
Deste modo, além de inconstitucionais e inócuas as resoluções e portarias proibitórias da comercialização e consumo, em locais públicos, de bebidas alcoólicas em dias de eleições, por estarem veiculando matéria exclusiva de lei e por serem os agentes editores da proibição incompetentes para legislar, desnecessárias se afiguram tais disposições proibitórias, uma vez que, para os fins almejados pelo Poder Público, quais sejam, manter a ordem, paz social e tranqüilidade das eleições, há mecanismos tão ou mais adequados, eficazes e legalmente previstos, em perfeita consonância com o Estado Democrático de Direito, que reprimem diretamente a conduta reprovada pela lei e não um simples fato que por si só não constitui qualquer transgressão, mas que poderá (ou não) levar à prática de delitos.
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