Questão ainda objeto de muita controvérsia na doutrina atine à natureza jurídica da utilização de ofendículos, que nada mais são que os aparatos dos quais se valem as pessoas para terem mais segurança no âmbito social, assim como o são a cerca elétrica, os cacos de vidro postos no muro, entre outros.
Com efeito, vislumbra-se na doutrina a existência de três importantes teorias sobre o assunto em apreço. A primeira, encabeçada por Aníbal Bruno, sustenta que a utilização de ofendículos caracterizaria exercício regular de um direito, excludente encartada no art. 23, inciso II, do Código Penal Brasileiro.
A segunda teoria, construída pelo mestre Nélson Hungria e seguida por renomados doutrinadores, dentre eles destacando o ilustre professor Magalhães Noronha, explica que a excludente incidente quando o indivíduo faz uso de aparatos de segurança é a legítima defesa.
É que, neste caso, o obstáculo seria acionado tão-somente quando iniciado o ataque injusto, o que caracterizaria a eximente ora citada, na modalidade antecipada, porquanto a agressão injusta, considerando o momento de instalação do objeto, é futura.
Por fim, há quem adote uma posição intermediária, salientando que, ao instalar o mecanismo de defesa, a pessoa encontra-se no exercício regular de um direito, qual seja, o de proteger a sua propriedade; entretanto, quando deflagrado o ataque, a repulsa seria hipótese de legítima defesa antecipada, em razão de a agressão ser futura.
Malgrado o brilhantismo das mencionadas teorias, todas elas com assento em dispositivos legais, é possível verificar a existência de algumas falhas em suas estruturas, até agora não identificadas e que poderão nos permitir encontrar a verdadeira natureza jurídica dos ofendículos.
Comecemos, então, pela primeira teoria apresentada, segundo a qual o uso de ofendículos seria caso de exercício regular do direito de propriedade.
Ora, a teoria em tela esquece de algo essencial quando falamos em excludentes de antijuridicidade. De fato, a existência de permissivos legais só tem razão de ser quando se fazem presentes ilícitos penais que, ao se depararem com aqueles, restarão excluídos e, nesse sentido, não obstante sejam enquadrados como típicos, não serão punidos como o seriam aqueles que preenchessem o segundo elemento do crime, a saber, a antijuridicidade.
Pretende-se dizer, com o acima declinado, que é impossível sustentar o exercício regular de um direito (como causa excludente de ilicitude) do indivíduo que, por exemplo, coloca cacos de vidro no muro de sua residência para protegê-la. Onde estaria o ilícito a ser excluído? Ora, se estamos em sede de excludente de antijuridicidade, o ilícito é elemento essencial para falar-se em permissivos legais. Caso contrário, o que estariam a permitir esses denominados "permissivos legais"?
De fato, estão a permitir a prática de uma conduta prevista em lei como crime, e o simples fato de instalar o aparato não tem o condão de configurar um ilícito penal se ao menos não causar dano ao bem jurídico de alguém.
Portanto, a utilização de ofendículos não passaria de mero exercício de um direito social, vale dizer, esta conduta seria equivalente a qualquer outra levada a efeito para buscar segurança, como o simples ato de trancar as janelas e portas da residência para evitar que bandidos adentrem no local.
Não há, reitere-se, conduta caracterizadora de um ilícito penal no momento em que é utilizado o aparato, razão pela qual a conduta configura tão-somente o exercício de um direito social.
Leia-se: o exercício regular de um direito, no sentido de causa excludente de antijuridicidade, só ocorrerá quando o indivíduo, ao fazer uso do meio de segurança, cometer o ilícito que, em sendo confirmado, implicará a absolvição pela falta de antijuridicidade; logo, inexistindo o ilícito, conclui-se que o indivíduo, na hipótese narrada, apenas exerceu um direito seu, proveniente da interpretação a contrario sensu da previsão constitucional de que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei.
Da mesma forma, não merece guarida a segunda corrente. Fala-se, aqui, não mais em exercício regular de um direito, mas, sim, em legítima defesa preordenada.
A falha constante desta teoria não coincide com aquela apontada na primeira, muito embora seja perceptível a anomalia que a acomete, resultante da escolha equivocada da modalidade de exculpante evidenciada pelos seguidores da corrente.
Sem querer adentrar no mérito da questão acerca da possibilidade de revide contra uma agressão futura, ou seja, de legítima defesa antecipada, tema este de grande divergência doutrinária, é oportuno lembrarmos o conceito de legítima defesa previsto no artº 25 do Código Penal, a saber: "Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem".
Segundo preceitua o aludido dispositivo penal, o exercício da excludente supramencionada fica condicionada à existência de um ataque injusto, atual ou iminente, que permitirá a reação pelo agredido desde que o mesmo se valha de meios necessários e moderados para conter a agressão.
Pois bem. Considerando que o funcionamento do ofendículo fica dependendo de uma força (leia-se: ataque) para iniciá-lo e, por conseguinte, exercitar sua função que motivou sua predisposição, não remanesce dúvidas de que estamos diante de uma hipótese de legítima defesa.
No entanto, como inexiste agressão no momento em que o mecanismo é instalado, infere-se que somente quando o ataque existir haverá legítima defesa. É aqui, portanto, que reside o grande equívoco da corrente.
Sustentam os adeptos da teoria em comento que o fato de não haver agressão, quando da instalação do mecanismo, faz subsistir a legítima defesa na modalidade preordenada, cuja reação é deflagrada contra ataque futuro. Assim, ao colocar cacos de vidro no muro de sua residência, o proprietário estaria se antecipando contra uma possível agressão.
É evidente a falha desse raciocínio. Como explica Willian Douglas, "na agressão condição para a legítima defesa preventiva (antecipada), o evento é futuro e certo". Isto traz a lume o porquê de não haver legítima defesa preordenada do sujeito que utiliza ofendículos para se proteger, porquanto, na grande maioria dos casos, a instalação do mecanismo ocorre num determinado momento em que o ataque é apenas provável, potencial, isto é, não se tem certeza de que irá acontecer.
Ou seja, sustentar a tese de legítima defesa preordenada com base apenas numa expectativa de ataque é um absurdo! Se não há certeza de que o ataque acontecerá, torna evidente que a antecipação da defesa não será possível, porque isto colidiria com os próprios atributos da modalidade de eximente mencionada.
Do exposto, é possível fazer duas conclusões.
A primeira é de que, no momento da instalação do ofendículo, haverá apenas o exercício regular de um direito social (não como excludente de ilicitude), proveniente, repise-se, da previsão constitucional segundo a qual ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão quando a lei assim estabelecer.
A segunda, por sua vez, é de que, no momento da agressão injusta, haverá legítima defesa propriamente dita ou pura, e não legítima defesa antecipada, como sustenta boa parte da doutrina, na medida em que lhe falta um elemento essencial para caracterizá-la, qual seja: a certeza da agressão.