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A percepção do fato jurídico no processo

25/10/2008 às 00:00
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Por mais ricas e imaginosas que sejam as doutrinas de escolas jurídicas, não se pode esquecer que elas não substituem o saber heurístico, o qual só se estabelece diante dos fatos do processo. Saber, no caso, significa descobrir o que existe de efetivo e prático na relação que está sob exame, assim como julgar quer dizer: resolver dilemas e demonstrar por que determinada conclusão se impõe, por ser adequada, necessária, indispensável. A par disso, é bom lembrar que o Direito não consiste na busca obsessiva de um sentido; antes numa busca sistematizada da justificação.

1.O processo é um relato da realidade, considerada na sua dimensão histórica e situação de lugar, que recupera fatos e os reapresenta como relações da vida, que existem ou existiram e pedem qualificações jurídicas, o que implica na formulação dos juízos de cabimento, de mérito e de conseqüência. Embora julgar não seja proferir conceitos valorativos e fazer escolhas fundamentadas neles, sem dúvida os valores que estão integrados ao Direito, como um elemento essencial à sua formulação, se impõem de alguma maneira e também conferem o conteúdo que justifica os julgamentos.

Entretanto, existem as crises típicas de estranhamento e a idéia de que haja sempre um sentido a extrair fica muito nebulosa, ou mesmo desaparece. Ninguém sabe dizer por que os nazistas praticaram determinados crimes com tanto empenho de energia, mesmo quando a guerra já lhes era desfavorável, se – na lógica deles próprios – já não eram prioritários (ou mesmo relevantes) ao seu projeto político e bélico. Com ou sem sentido apreensível, o fato houve; os crimes aconteceram. Essa angústia de sentido, essa crise de justificação, deveria ser, talvez, o principal tema da Filosofia do Direito. Pensar porém que essa área de conhecimento se haja desenvolvido tanto como filosofia aplicada é bastante discutível.

Aqueles que pretendem filosofar a respeito do fenômeno jurídico seguidamente mostram dificuldades em situá-lo mesmo no plano fenomenológico, que deveriam dominar. Seus estudos costumam revelar uma busca idealista pelo que seria um necessário sentido para Direito. Em geral, não sabem lidar com o obscurecimento dele (sentido), ou ainda com o quantum despoticum, ou seja, com o impositivo e o inapreciável que reside na gênese do próprio Direito.

A procura obsedada dos significados absolutos no boni et aequo só é possível extrair da metafísica e leva ao uso muito inadequado da palavra ética, elevando-a até um nível imaginário de perfeição, quase inatingível pelos humanos, mesmo - quem sabe, principalmente - por aqueles que reivindicam querê-la e tê-la.

Os compêndios, na mais exata expressão desse termo, de Filosofia do Direito não elaboram filosofias críticas ou novas. É mais fácil encontrar indagações profundas nos textos de filósofos que não tratam de metodologia aplicada, mas apenas de filosofar. Os jurisfilósofos, em escritos enfadonhos e sempre compendiados, parecem estar mais preocupados em justificar as próprias ocupações, no âmbito da teoria especulativa.

Inevitavelmente, invocam Kant com seus imperativos categóricos e imperativos relativos, buscando assim a segurança de fazer uma "critica pura". A importância conceitual de Kant é apenas histórica, como a de seu contemporâneo Napoleão, no que respeita ao interesse deste em resgatar os institutos do consulado, da ditadura e do império romanos para a formação do Estado moderno. Depois de Kant, nos compêndios entra um pouco de Hegel, quase nada de Marx e absolutamente nada mesmo de Kierkegaard, Nietzsche, Wittgenstein, Husserl, Sartre ... , ainda que Jean-Paul Sartre haja desenvolvido uma rica concepção da má-fé, como nenhum pensador do Direito fez antes. Ou depois.

A verdade é que alguns jurisfilósofos, quando incursionam por Hegel, contentam-se a mais das vezes em aportar no enunciado o que é real é racional, o que é racional é real. E ficam por aí. O próprio Hegel transitou pela filosofia aplicada ao Direito. Porém, se uma só frase tivesse de ser extraída do texto hegeliano (que não formava um compêndio, mas propunha estender seu sistema de filosofia idealista às relações jurídicas), seria exatamente a última que escreveu no prefácio à sua Filosofia do Direito: é preciso que baixem as brumas do crepúsculo para que alce vôo o pássaro de Minerva.

Essa proposição hegeliana, muito conhecida pela sua intensa beleza e conteúdo dialético, é um enigma para quem a lê com o espírito do jurisfilósofo, que não enfrenta o movimento das duas tensões [cair (queda do sentido, pelo obscurecimento, pela noite) e voar (a coruja da sabedoria, a reflexão)], o que resulta num enfoque limitado e escolástico. Como se houvessem duas orações sucessivas e não complementares.

Muitas outras proposições plenas de indagação radical foram feitas antes e depois de Hegel. Basta lembrar a de Demócrito (de Abdera): fazer justiça é fazer o que é preciso. Torna-se impensável esperar que provenha da Filosofia do Direito o entendimento do que seja ser preciso.

Preciso é um termo nos remete à noção de necessidade que está muito além da vã jusfilosofia, se o Bardo nos permitisse dizer assim. Também o nosso Tobias Barreto propôs, em seu belo "O Fundamento do Direito de Punir": os que se perguntam de onde vem o fundamento do direito de punir deveriam perguntar-se onde está o fundamento jurídico da guerra. Essa outra proposição sobre o que seja o fundamento remete igualmente para muito além do que os jurisfilósofos estão dispostos a responder.

2.Talvez o que foi exposto até aqui ajude a entender, por estranho que pareça - principalmente num país onde se clama pela obediência aos princípios fundamentais que regem a sociedade - por que tecnicamente não se formulam juízos éticos. Eles existem, sem dúvida, mas na opinião comum (opinio communis). Existem também nas escolhas ideológicas, políticas, filosóficas... mas, como é fácil perceber, a palavra "juízo" ganha aí o sentido laico de valoração, com forte carga subjetiva, constituidora mesmo do sujeito-que-julga, que emite os juízos valorativos. Os códigos de ética costumam ser um amontoado de preciosismos. Na verdade, não resolvem problemas fundamentais e, muitíssimas vezes, servem apenas para causar a ilusão de que existe uma entidade superior para presidir nossos destinos. Escreveu alguém na pedra: o dia em que soubermos dizer o que é ética, nenhum livro jamais precisará ser escrito.

Observado com a necessária humildade intelectual, o peso da palavra ética provém da carga informativa de um estágio civilizatório dos costumes sociais, dos registros psicanalíticos do inconsciente ao superego, ou ainda de cargas estruturais que respondem pelo funcionamento da mente. É o que se verá adiante.

Não parece apropriado desde logo que admitamos que a ética atua no plano da consciência, e o Direito no da existência.

Ao incauto que aceitasse esse caminho bastante tentador, lembrando muito bem a dialética do Mestre de Iena, Marx exigiria que não esquecêssemos também dele: é a existência que determina a consciência, e não a consciência que determina a existência.

Novamente, estaríamos sem norte.

Em Direito, o juízo por valoração de escolhas decorrentes da atividade mental do jurista, ao longo do tempo, é resultante das leis de autorização e das leis de interdição que decorrem de um estatuto, conhecido como sendo o núcleo formador da dogmática jurídica. Isso nada tem a ver com dogma, no uso comum como no escolástico, mas com a origem sistematizada de um ordenamento, que confere legitimidade a todo desdobramento normativo que está enraizado nele.

Consideradas a partir da etimologia, ética (ethikós; ethicus) e moral (mos, moris) querem dizer a mesma coisa: costume, caráter dos costumes; comportamento teleológico visando ao bem ou ao mal. [Para Nietzsche nós já fomos muito além disso ...]

É claro que existe uma monumental construção de séculos (por exemplo, da Ética a Nicômaco, de Aristóteles, até a Ética Demonstrada à Maneira dos Geômetras, de Spinoza), ultrapassando a etimologia. Ela se estende até os múltiplos significados do comportamento sob determinados costumes, da sua valoração em termos civilizatórios e dos significados vários para sociedades diferenciadas. Os filósofos socráticos buscavam na ética o fundamento do bem, em geral amavam o apolíneo, valorizavam a comédia (dos costumes) e encontravam uma existência mais plena no conhecimento de si e do que serve à construção do homem que entende a vida. Já o espírito dionisíaco percebia melhor a existência do homem como uma condição; amava o teatro da tragédia, a música e os ímpetos que comandam o homem em sua trajetória errante.

Frases como "não é ilegal, mas também não é ético", com suas muitas variações, devem ser bastante relativizadas. Seriam inconcebíveis no mundo grego clássico, pois a dualidade lei/ética seria sentida como o que hoje denominamos esquizofrenia. Mesmo em nosso mundo, tanto e tão mais diferenciado, é melhor que não sejam ditas. Começa que lei e ética não estão no mesmo plano, quer sob a óptica de uma, quer sob a da outra. Se estivessem, Direito significaria seleção de costumes, ou de bons costumes. Sabe-se que estes hoje mudam muito rápido, até abruptamente, mais ainda que o "Direito de Pascal", cujas "verdades" variavam geograficamente aquém e além dos Pirineus. A interpretação evolutiva não dá conta da atualização dos preceitos legais editados mesmo há pouco tempo. E, sem ela, não se pratica o Direito.

A Ética, com a seletividade dos bons costumes que faz, mas por que eles se tornaram acentuadamente mutantes na cultura do pós-moderno, seria uma força tanto estabilizadora como instabilizadora do Direito, caso seus objetos se confundissem. Sabe-se, porém, que este último (o Direito) antes constrói uma ordem justificadora em um Estado estabilizado a fim de poder praticar a justiça. O conhecimento jurídico busca a estabilização porque busca tal fim.

Pontes de Miranda, em sua construção positivista, entendia diferente, pois seu esquema conservador também incluía a estabilidade maior provinda da religião. Ao passo que a economia, a política e as artes instabilizavam. Tudo isso concebido sob o critério ponderado de graus (religião, ética e Direito em ordem decrescente como estabilizadores; artes, política e economia em ordem crescente como desestabilizadores). Por sobre tudo isso, reinaria "a Ciência, que diz o que é e o que não é) ... Tal ciência existe? Certamente não, sob os seus próprios fundamentos, que exigem um processo contínuo no conhecimento. E ela, ao contrário, não se teria tornado uma das maiores forças instabilizadoras frente ao universo de inocência, de temores e de certezas existente antes das suas descobertas ?

Isso tudo não quer dizer que a elaboração do Direito prescinda de princípios que - provindos uns da Ética, outros da Política ou da História, outros mais de crenças (até mesmo das anímicas); desde o Renascimento, também e muito da Ciência - tornem-se informadores, sendo mesmo suas fontes materiais. O estudo jurídico, entretanto, ocupa-se predominantemente de suas fontes formais, que estabelecem o "sistema normativo" (Kelsen) ou o "ordenamento jurídico" (Bobbio).

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Deve ser lembrado que o parricídio primitivo (homicídio doméstico, fora da guerra), o incesto e a violação de menores (como a pedofilia) provieram antes de tabus convertidos pelo totemismo (ao menos esse é o entendimento de Freud), até formarem costumes estáveis e princípios éticos, para o que os conhecimentos da Biologia acresceram razões científicas.

3.O Direito seguidamente designou o que sejam "bons costumes" para fins de estabelecer prerrogativas (de recato ou de honra, por exemplo) ou interdições (do obsceno ou do atentatório ao pudor). Mas há de se convir: quase sempre se saiu mal, quer nos dispositivos atinentes, quer - mais ainda - na doutrina, onde corre livre a pena da fantasia e do delírio.

A transcrição que segue, com suas observações tachativas (escritas assim por causa do valor pejorativo), mas que formam um conjunto histriônico, mostra bem ao que leva o enlevo de um jurisconsulto "ético":

"É controvertido se o

beijo constitui o crime em questão (atentado ao pudor), quando dado mediante violência ou grave ameaça. Trata-se, bem entendido, do beijo na face, na boca ou no colo, pois daí para baixo é flagrante. VIAZZI, com a adesão de POZZOLINI, é pela negativa, argumentando que o beijo é fato sexual secundário. A opinião dominante, porém, é no sentido de que, quando dado de modo lascivo ou com fim erótico, pode o beijo incidir no conceito legal de ato libidinoso. É sabido que o beijo, em especiais condições de eretismo do agente, pode até funcionar como verdadeiro substitutivo sexual. Na Idade Média, os práticos reputavam-no execrabile scelus, quando aplicado contra a vontade de quem o recebe. (...) Há que distinguir entre beijo e beijo. O beijo casto não está em jogo, e mesmo o beijo furtivo, brevíssimo, roçando de leve a face, num impulso fugaz de indecisa volúpia, não realiza a grosseria de um ato libidinoso (podendo concretizar, quando muito, uma injúria real). Já ninguém poderá duvidar, entretanto, que um desses beijos à moda dos filmes de cinema, numa descarga longa e intensa de libido, constitua, quando aplicado a uma mulher coagida pela ingrata vis, autêntico atentado violento ao pudor.

( ...)

Discute-se se o beijo, dado em lugar público, constitui, ou não, o crime em questão (ultraje ao pudor por ato obsceno). A resposta não pode deixar de ser afirmativa, posto que o beijo seja daqueles que representam, inequivocamente, um ato libidinoso ou desafogo de lascívia."

Os trechos transcritos parecem mostrar alguém que tomou por catecismo "A Nossa Vida Sexual", de Fritz Khan, livro conhecidíssimo em meados do Século 20, que pregava o sexo higiênico, pela pureza. Pode essa verborragia delirante sobre lascívia, pudicícia, libidinoso, obscenidade, e tantos etc, sustentar um entendimento jurídico dos fatos? Quem, vencendo riso, responder não, previna-se em saber que esse mundo obscuro e pervertido de pecados foi trasladado da cabeça influente de Nélson Hungria, nos "Comentários ao Código Penal", volume VIII. Em outra passagem, nosso mestre dos costumes prossegue no seu circo de horrores:

"Há uma gradação de obscenidade. Há as impudicícias macroscópicas, como sejam as topo-inversões (coito anal,

fellatio ou irrumatio in ore, o coito intercrural ou inter femora, o coito perineal, o cunnilingus, o anilingus, a cópula entre os seios, na axila, etc), a auto ou heteromasturbação, as esfregações torpes de um corpo em outro (mesmo sobre as vestes), e há aquelas outras que não têm analogia alguma com a cópula e, de regra, são inidôneas para o fim de espasmo genésico (ex.: o tateio do pudentum ou das nádegas, a apalpação dos seios, o gesto de alçar as vestes de uma mulher para o fim de contemplação lasciva, etc). Como quer que seja, porém, a impudicícia deve ser patente, inequívoca, não confundível com gestos que, segundo id quod plerunque accidit, são sexualmente neutros ou, pelo menos, não colidem com a moral sexual média."

A palavra "média" que encerra a transcrição nada tem a ver com mediano. Haverá mesmo uma moral mediana dos costumes desde que a consciência coletiva concebeu a imoralidade da fome, da violência, da discriminação eletiva ? Que o diga Nelson Rodrigues, pois escreveu grandes obras iconoclastas na mesma época de Hungria e, convenhamos, com muito melhor literatura. Depois do Iluminismo não havia mais como tolerar os conceitos do jurista, cujas origens estavam antes estabelecidas na Idade Média, que ele cita. Quem sabe, com nostalgia. E pensar que nosso sofrido povo por muitas décadas foi julgado sob esses preconceitos, essas consciências pudicas retiradas das saias dos bispos ... , ao sortilégio.

Desse modo, ao invés da frase tão celebrada de Cícero, o tempora, o mores, (ó tempo, ó costumes) talvez fosse melhor cultivar ridendo castigat mores, da comédia de Arlequim (castiga os costumes rindo).

Aquele que quiser enfrentar a realidade dos fatos, quando aptos a estabelecer conteúdo jurídico, deve despir uma aura retórica que cerca o Direito, como se fosse o "véu da nudez" de Eça de Queiróz ("Sob o véu diáfano da fantasia, a nudez crua da verdade"), composto de uma trama de bons propósitos, intuitos jusnaturalistas e muitas aspirações metafísicas, tudo embrulhado no pacote mal apelidado de ética.

[A propósito, o poeta Mário Quintana ironizou : quando um grande escritor escorrega em uma frase de efeito, é ela que fica gravada para sempre em um granito, uma tumba, uma estátua (há mesmo uma estátua em Lisboa que interpreta e repete aquela frase de Eça, defronte ao restaurante belle époque Tavares, que ele freqüentava.]

Voltando à razão, deixemos enfim a Ética forjar-se como uma disciplina de investigação dos conflitos morais, do "espírito do século", e o Direito preservar-se no seu objeto normativo com particularidade própria.

Como o juris factum e o juris dictum não estão na doutrina, nem na descrição da lei (que é meramente indicativa, protetiva ou proibitiva, mesmo na tipificação penal), vejamos bem onde ele se apresenta eminente e concluamos: é no processo.

4.O processo judicial é também ele uma realidade particular, em termos de técnica jurídica, pois os acontecimentos vividos - que são recuperados nos seus autos - tanto sofrem a interferência de uma metodologia formal, necessária para que ele tenha um desenvolvimento válido, regular e chegue ao fim, como da defesa dos interesses postos, que conflitam. Essa realidade própria do processo se expressa na aparência de uma ficção, pois os relatos nada mais significam do que propostas para recuperar e interpretar realidades que são apresentadas como narrativas divergentes, tirando de um só fato dualidades inconciliáveis, ou multiplicidades difusas. Até que venha a ser realizada a prova (e mesmo, a mais das vezes, ainda depois dela, quando precária) as propostas das partes são ficções provisórias que buscam a produzir nos autos certa realidade hegemônica que se afirmará única ao final, uma destruindo a outra, ou ambas sucumbindo a preceitos de ordem pública que vedam seu desiderato.

Não é por outro motivo que o processo judicial abriga tanto o espírito do inquisitório como o do contraditório, em medidas ou fases bem diferentes. Para o primeiro, a realidade é o resultado de uma descoberta; para o segundo, ela é um reconhecimento. Ao fim, triunfa a verdade que vem a ser estabelecida; ela não necessariamente corresponde aos acontecimentos efetivos, nem responde a todas as indagações adjacentes; ela é antes um regime construído para atender às proposições feitas; é uma verdade-resultado, que exsurge no esgotamento do rito; é, enfim, a norma aplicada, a verdade-regente. No fundo, isso afina com o preceito maior da "jurisprudência sociológica" da Corte de Holmes: o direito é aquilo que os juízes dizem que ele é. Talvez mais apropriado fosse "descobrem e reconhecem que ele é", pois – sem uma invocação prévia e fundamentada – não teriam porque dizer algo sponte sua (como se o direito partisse deles).

5.A idéia inicial de que os fatos jurídicos venham a ser examinados no processo em juízo faz com que ali tenham a sua relevância principal, descartados dos fatos banais da vida e, em parte, também de conjecturas valorativas, como de descrições meramente doutrinárias. Este texto propõe (sob forma heterodoxa) três atitudes de consciência, todavia simples, três investidas para superar a fissura incontornável entre essas duas realidades, a que o processo capta mais ou menos imperfeitamente e aquela que ele, de modo autônomo, expressa como verdade acabada, concluída. Para isso podem ser utilizadas com proveito expressões que a sociologia funcionalista americana consagrou.

A primeira é a abordagem (approach): os fatos do processo têm necessariamente que ser abordados. Quem não a faz, não pode compreendê-los. As deliberações processuais não se resumem a uma operação de lógica dedutiva, a um enquadramento em preceito ou tipo, a uma busca de evidências. Os fatos nunca são gerados na doutrina, que apenas intenta descrevê-los e nominá-los, e dela jamais poderão ser decalcados. Erram os que procuram extrair dos textos interpretativos do Direito fatos que ali nunca estiveram, salvo como projeções analíticas para que, quando acontecessem, pudessem ser apreendidos eles próprios, visualizados na sua ocorrência real, com menor chance de erro. O fato, pois, é o ponto de partida, único, insubstituível.

Em contrário, a verdade - quando concebida como projeção de posições doutrinárias - serviria bem ao preconceito e à introdução de idéias empiristas, de que é pleno o senso comum na formulação de julgamentos. É, assim, um vício epistemológico. Exemplo acessível: in claris non fit interpretatio. O que encerra esse conceito ? Certamente uma interpretação. Logo, é necessário interpretar sempre, quer na clareza, quer na obscuridade. Nosso lorde do mais refinado humor, Millôr Fernandes , propõe outro: "toda regra tem exceção. O que é isto ? Uma regra. Logo, tem exceção. Portanto deve haver por aí uma regra que não tenha exceção".

Em suma, no Direito não há certeza de per si.

Quem está atrás de certezas pré(-)dispostas que abandone o Direito. Fará melhor do que utilizar-se dele como o caminho para aplacar a causticante instigação da dúvida.

É a partir daí que deixam de povoar este mundo os tormentos dos beijos impuros, as impudicícias, a apalpação dos seios, as esfregações torpes de corpos vestidos ...

6.A segunda atitude a considerar é o dado serendipity, palavra inglesa que as enciclopédias ensinam ser derivada de um nome primitivo do Ceilão, a partir do relato de uma lenda por um escritor veneziano a respeito dos encontros e desencontros possíveis dos personagens, naquela ilha, com a realização de descobertas para além de tudo o que poderia ser esperado. O dado inusitado do serendipity é essencial no trato do processo, porque nele existe o jogo do aleatório, e não há como evitá-lo. Um grande percentual dos elementos processuais será sempre irrelevante, ainda que o juiz policie bem a exclusão do que se mostre impertinente. No enredo dos fatos, sem previsão, eis que se apresenta o serendipity e, a partir de então, tudo no processo passa a depender dele.

A prova virá a ser feita ou não; as teses serão desenvolvidas ou perecerão abandonadas por falta de demonstração. O processo é pleno de reveses, frustrações e insuficiências, mas junto a isso poderão advir significativas surpresas. Quem não aceitar o desencontro dos fatos acabará cativo só de evidências e, como estas costumam ser poucas, certamente será despendida grande energia para fabricá-las, levando a uma espécie de erro na certeza, já que esta tem de ser alcançada a qualquer custo. Isso é comum, mas é também a prisão do pensamento.

7.A terceira atitude é a do insight, que – contrariando o uso mais corrente – não é só uma descoberta em si mesmo, do tipo heureca, mas igualmente a inspiração para intuir o surgimento de uma invenção. Esse significado mostra que a norma jurídica precisa do caso concreto, no qual se inscreve o reconhecimento heurístico. Processar é extrair dos fatos e por absoluto todas as conseqüências necessárias para a solução da lide. É só quando faz isso que o juiz, autenticamente, inventa de forma criativa a justificação para o resultado a que chegou. Isto é julgar.

8.Bertolt Brecht escreveu que se pede muito a um homem quando se impõe que diga a verdade, tantas são as considerações sobre sua oportunidade em dado momento, a relevância de uma dentre as muitas verdades existentes, a finalidade em relação ao que se busca com ela, etc.

Também é exigido muito quando se requer a percepção das situações factuais de que decorrem os direitos reivindicados. Há uma sombria tendência de desapego ao fato, tido na acepção do que é singular, de pouco relevo, desprezado por regras interpretativas de caráter genérico, as quais costumam ser expostas como cânones terminativos. Em poucas linhas se descarta uma prova mal avaliada. É o que costuma acontecer em processos complexos ou volumosos. Voltar as costas para os fatos: eis aí uma fonte régia para não sancionar a corrupção, para ignorar a tortura, para o desprezo à dignidade humana, para temer os poderosos. Assim são formados "los espacios sin derechos" que o juiz de instrução Baltazar Garzón, da corte Audiência Nacional da Espanha, tanto denuncia pelo mundo.

O Direito especula, à imitação do que faz toda a ciência, mas não é especulativo. Também não é uma ciência, mas um corpo de conhecimentos que usa a metodologia científica.

Não faz parte do seu objeto realizar escolhas pelo que de significantes tenham o bom caráter, o bom costume, a atribuição ontológica do que seja o bem ou o mal, o justo idealizado. Ao invés de escolhas bem intencionadas, para o trabalho com o Direito é preciso aceitar a humilde procura de compor todos os dados informativos da realidade como se faz na paleontologia.

Os fatos também morrem, são escondidos ou desaparecem em meio a versões ou lendas; quando não, simplesmente sucumbem ao esquecimento, mas se deixam sinais de constatação ou memória serão sempre matéria viva para que o Direito produza sobre eles o seu conhecimento e, não menos, a sua conseqüência.

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Sobre o autor
Luiz Fernando Cabeda

Desembargador do TRT da 12ª Região, inativo. Fez estágio na Escola Nacional da Magistratura da França, Seção Internacional. Autor de "A Justiça Agoniza" e "A Resistência da Verdade Jurídica".

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABEDA, Luiz Fernando. A percepção do fato jurídico no processo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1942, 25 out. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11893. Acesso em: 22 dez. 2024.

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