1 Introdução
O Simples Nacional, regime tributário diferenciado e favorecido dispensado às microempresas e empresas de pequeno porte, foi instituído com o propósito declarado de dar tratamento tributário simplificado e menos oneroso às empresas de menor grau de faturamento e organização. Embora não representem muito na arrecadação tributária, são tais empresas responsáveis por parte significativa dos empregos gerados no Brasil, razão pela qual se justifica o tratamento diferenciado.
A Lei Complementar Federal n°. 123, de 14 de dezembro de 2006, foi responsável pela regulamentação do art. 146, inciso III, alínea d e parágrafo único, da Constituição Federal. Em seu art. 1° dispõe:
Art. 1° Esta Lei Complementar estabelece normas gerais relativas ao tratamento diferenciado e favorecido a ser dispensado às microempresas e empresas de peque no porte no âmbito dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, especialmente no que se refere:
I – à apuração e recolhimento dos impostos e contribuições da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, mediante regime único de arrecadação, inclusive obrigações acessórias;
II – ao cumprimento de obrigações trabalhistas e previdenciárias, inclusive obrigações acessórias;
III – ao acesso a crédito e ao mercado, inclusive quanto à preferência nas aquisições de bens e serviços pelos Poderes Públicos, à tecnologia, ao associativismo e às regras de inclusão.
Já em seus artigos 12 e 13 menciona:
Art. 12. Fica instituído o Regime Especial Unificado de Arrecadação de Tributos e Contribuições devidos pelas Microempresas e Empresas de Pequeno Porte - Simples Nacional.
Art. 13. O Simples Nacional implica o recolhimento mensal, mediante documento único de arrecadação, dos seguintes impostos e contribuições:
I – Imposto sobre a Renda da Pessoa Jurídica - IRPJ;
II – Imposto sobre Produtos Industrializados - IPI, observado o disposto no inciso XII do § 1o deste artigo;
III – Contribuição Social sobre o Lucro Líquido - CSLL;
IV – Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social - COFINS, observado o disposto no inciso XII do § 1o deste artigo;
V – Contribuição para o PIS/Pasep, observado o disposto no inciso XII do § 1o deste artigo;
VI - Contribuição para a Seguridade Social, a cargo da pessoa jurídica, de que trata o art. 22 da Lei no 8.212, de 24 de julho de 1991, exceto no caso da microempresa e da empresa de pequeno porte que se dediquem às atividades de prestação de serviços previstas nos incisos XIII e XV a XXVIII do § 1o do art. 17 e no inciso VI do § 5o do art. 18, todos desta Lei Complementar;
VII – Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e Sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação - ICMS;
VIII – Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza - ISS.
§ 1o O recolhimento na forma deste artigo não exclui a incidência dos seguintes impostos ou contribuições, devidos na qualidade de contribuinte ou responsável, em relação aos quais será observada a legislação aplicável às demais pessoas jurídicas:
I – Imposto sobre Operações de Crédito, Câmbio e Seguro, ou Relativas a Títulos ou Valores Mobiliários - IOF;
II – Imposto sobre a Importação de Produtos Estrangeiros - II;
III – Imposto sobre a Exportação, para o Exterior, de Produtos Nacionais ou Nacionalizados - IE;
IV – Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural - IPTR;
V – Imposto de Renda, relativo aos rendimentos ou ganhos líquidos auferidos em aplicações de renda fixa ou variável;
VI – Imposto de Renda relativo aos ganhos de capital auferidos na alienação de bens do ativo permanente;
VII – Contribuição Provisória sobre Movimentação ou Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira - CPMF;
VIII – Contribuição para o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço - FGTS;
IX – Contribuição para manutenção da Seguridade Social, relativa ao trabalhador;
X – Contribuição para a Seguridade Social, relativa à pessoa do empresário, na qualidade de contribuinte individual;
XI – Imposto de Renda relativo aos pagamentos ou créditos efetuados pela pessoa jurídica a pessoas físicas;
XII – Contribuição para o PIS/Pasep, Cofins e IPI incidentes na importação de bens e serviços;
XIII – ICMS devido:
a) nas operações ou prestações sujeitas ao regime de substituição tributária;
b) por terceiro, a que o contribuinte se ache obrigado, por força da legislação estadual ou distrital vigente;
c) na entrada, no território do Estado ou do Distrito Federal, de petróleo, inclusive lubrificantes e combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, bem como energia elétrica, quando não destinados à comercialização ou industrialização;
d) por ocasião do desembaraço aduaneiro;
e) na aquisição ou manutenção em estoque de mercadoria desacobertada de documento fiscal;
f) na operação ou prestação desacobertada de documento fiscal;
g) nas operações com mercadorias sujeitas ao regime de antecipação do recolhimento do imposto, bem como do valor relativo à diferença entre a alíquota interna e a interestadual, nas aquisições em outros Estados e Distrito Federal, nos termos da legislação estadual ou distrital;
XIV – ISS devido:
a) em relação aos serviços sujeitos à substituição tributária ou retenção na fonte;
b) na importação de serviços;
XV - demais tributos de competência da União, dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios, não relacionados nos incisos anteriores.
Vê-se, portanto, que embora o regime do Simples Nacional pretenda unificar a tributação das microempresas e empresas de pequeno porte, não a realiza completamente. A ressalva contida no § 1° preserva a incidência dos tributos não previstos no rol do art. 13, e também dos que lá constam nas operações e situações expressamente especificadas.
Para o presente artigo importa apenas considerar a ressalva contida na alínea g, inciso XIII, § 1°, art. 13 da citada lei, qual seja, a incidência do ICMS nas operações com mercadorias sujeitas ao regime de antecipação do recolhimento do imposto, bem como do valor relativo à diferença entre a alíquota interna e a interestadual nas aquisições em outros Estados e Distrito Federal.
2 Antecipação do imposto e da diferença de alíquotas
O ICMS, posto que figurasse no rol de impostos abrangidos pelo Simples Nacional, teve ressalvada sua incidência nos casos expressamente previstos. Se assim não fosse, o mesmo seria recolhido pelas microempresas e empresas de pequeno porte tão-somente na forma definida no regime favorecido do Simples Nacional.
Uma das ressalvas foi a possibilidade de se exigir das empresas optantes o recolhimento antecipado do imposto devido, inclusive do valor equivalente à diferença entre a alíquota interna e a interestadual. A redação da lei não é das melhores, razão pela qual merece interpretação sistemática fundada nos princípios regentes da incidência tributária.
Assim diz a lei:
§ 1o O recolhimento na forma deste artigo não exclui a incidência dos seguintes impostos ou contribuições, devidos na qualidade de contribuinte ou responsável, em relação aos quais será observada a legislação aplicável às demais pessoas jurídicas:
[...]
XIII – ICMS devido:
[...]
g) nas operações com mercadorias sujeitas ao regime de antecipação do recolhimento do imposto, bem como do valor relativo à diferença entre a alíquota interna e a interestadual, nas aquisições em outros Estados e Distrito Federal, nos termos da legislação estadual ou distrital;
Em suma, a lei ressalvou a utilização do mecanismo previsto no art. 150, §7°, da Constituição Federal. Eis o que diz o dispositivo citado:
§ 7.º A lei poderá atribuir a sujeito passivo de obrigação tributária a condição de responsável pelo pagamento de imposto ou contribuição, cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente, assegurada a imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o fato gerador presumido.
Este parágrafo é o ponto de apoio tanto do regime da substituição tributária das operações subseqüentes quanto da antecipação do imposto. Ambas as hipóteses consistem em exigir o adimplemento da obrigação antes mesmo desta ter existência, ou seja, relativo a fato gerador que ainda não ocorreu e, portanto, é presumido para todos os efeitos.
O que difere as duas situações é a relação que o contribuinte ou responsável mantém com o fato gerador da obrigação. Na substituição tributária o responsável antecipa o recolhimento do imposto relativo a fato gerador de terceiro, em razão do que configura-se como substituto tributário. Na antecipação o contribuinte antecipa o recolhimento do imposto de suas operações próprias.
As duas modalidades foram previstas na lei do Simples Nacional, sendo que apenas a substituição tributária teve menção na parte que diz sobre o cálculo do imposto devido. A microempresa ou empresa de pequeno porte que adquire produto na condição de contribuinte substituído em relação ao ICMS, não será compelido a recolher novamente o mesmo imposto relativo ao mesmo fato gerador, outrora presumido para efeito da substituição. Isso porque haveria a perniciosa e inconstitucional dupla tributação. De um fato gerador somente pode surgir uma obrigação tributária - não duas – relativa ao mesmo tributo.
Entretanto, a Lei Complementar Federal n°. 123 não prevê a dedução da parcela do ICMS – tal como na substituição tributária – nas situações em que houve antecipação do recolhimento do imposto. Importa, portanto, fazer uma exegese adequada para o dispositivo de modo que se preserve o seu real alcance sem receber a pecha de inconstitucionalidade.
A redação da alínea g foi um tanto genérica. Previu que se pudesse antecipar o recolhimento do imposto de mercadorias, bem como do valor equivalente à diferença entre a alíquota interna e a interestadual, nas aquisições de outros estados ou do Distrito Federal. Nesta última hipótese, a falta da menção à destinação para uso e consumo pode sugerir que toda e qualquer aquisição de outros estados pudesse se sujeitar à antecipação do recolhimento do imposto.
A pergunta que se deve fazer é: pode o estado criar alíquotas adicionais às previstas nos anexos da Lei Complementar n°. 123/06? É certo que não. Caso contrário, as tabelas constantes dos anexos nada mais seriam que taxação mínima das ME/EPP, com a possibilidade dos estados estabelecerem valores adicionais no interesse da arrecadação.
Por esta razão, não pode o estado antecipar o recolhimento do ICMS cujo fato gerador seja a saída da mercadoria do estabelecimento pois o mesmo já estaria tributado na sistemática do Simples Nacional. Não pode justamente porque o regime do Simples Nacional não admite a dedução do valor antecipadamente recolhido. Ou seja, antecipar o ICMS da saída das ME/EPP nada mais é do que estabelecer alíquota adicional.
Portanto, o regime do Simples Nacional somente se compatibiliza com a antecipação do ICMS cujo fato gerador seja a entrada da mercadoria no estabelecimento do contribuinte. Neste momento calha citar o exemplo da legislação do próprio Estado de Minas Gerais. A Lei Estadual n°. 6.763, de 26 de dezembro de 1975, no seu art. 6°, com a redação do que lhe deu a Lei Estadual n°. 12.423, de 27 de dezembro de 1996, determina:
Art. 6º - Ocorre o fato gerador do imposto:
[...]
II - na entrada no estabelecimento de contribuinte de mercadoria oriunda de outra unidade da Federação, destinada a uso, consumo ou ativo permanente;
Em casos como este é absolutamente possível exigir o ICMS antecipado de uma microempresa ou empresa de pequeno porte, no momento em que a mercadoria ingressa no território mineiro. O fato gerador, propriamente dito, somente ocorrerá quando da entrada no estabelecimento do contribuinte.
Tem se tornado comum estados criarem barreiras fiscais para exigir essa espécie de antecipação do ICMS relativo ao diferencial de alíquotas. Por esta razão houve a expressa exceção na lei do Simples Nacional.
A outra questão diz respeito ao fato da lei não mencionar a destinação da mercadoria adquirida de outra unidade da Federação. Não pode haver dúvidas de que o caso mencionado refere-se apenas às aquisições de mercadorias destinadas ao uso, consumo ou ativo permanente do adquirente. A ressalva existe justamente para preservar o imposto constitucionalmente destinado ao estado onde esteja estabelecido o contribuinte destinatário, nos termos do art. 155, § 2º, VIII, da Constituição Federal.
Aplicar a antecipação parcial da diferença de alíquotas – excepcionada a hipótese constitucional - a empresa sujeita ao regime do Simples Nacional é incidir em dupla tributação, vedado por nosso sistema constitucional tributário. Como se deve presumir que o legislador não quis editar lei inconstitucional, é preciso dar a ela interpretação conforme a Constituição, nos sentido de restringir o alcance da expressão da lei.
3 A Lei Estadual n°. 17.247, de 27 de dezembro de 2007 e o Decreto Estadual nº. 44.650, de 7 de novembro de 2007
O Estado de Minas Gerais, atento à brecha que lhe foi aberta, editou a Lei Estadual n°. 17.247, em 27 de dezembro de 2007, a qual alterou a redação do art. 6° da Lei Estadual n°. 6.763, de 26 de dezembro de 1975, incluíndo a alínea f ao §5°:
Art. 6º - [...]
§ 5º - O Estado poderá exigir o pagamento antecipado do imposto, com a fixação, se for o caso, do valor da operação ou da prestação subseqüente, a ser efetuada pelo próprio contribuinte, na hipótese de:
f) aquisição, por microempresa ou empresa de pequeno porte, de mercadoria destinada a comercialização ou industrialização, relativamente à diferença entre a alíquota de aquisição e a alíquota interna.
Com a alteração, passou o estado a ter a faculdade de exigir, das ME´s e EPP´s, o recolhimento do ICMS relativo à diferença entre a alíquota de aquisição e a alíquota interna, nas aquisições de mercadorias destinadas à comercialização ou à industrialização. Embora não haja menção à operação interestadual, fica implícita a condição em razão da referência à alíquota interna. Esta só pode ser confrontada pela alíquota interestadual.
A nova faculdade foi plenamente exercida com a edição do Decreto Estadual nº. 44.650, de 7 de novembro de 2007, o qual promoveu alterações no Regulamento do ICMS. Um detalhe curioso é o fato de que o decreto regulamentador é anterior à edição da lei, o que sugere que a lei tenha sido editada para legitimar a exigência instituída por meio de decreto.
Assim dispõe o decreto supracitado:
Art. 1º O Regulamento do ICMS (RICMS), aprovado pelo Decreto nº 43.080, de 13 de dezembro de 2002, passa a vigorar com as seguintes alterações:
"Art. 42. (...)
§ 14 Ficam a microempresa e a empresa de pequeno porte obrigadas a recolher, a título de antecipação do imposto, o valor resultante da aplicação do percentual relativo à diferença entre a alíquota interna e a interestadual e devido na entrada de mercadoria destinada a industrialização ou comercialização ou na utilização de serviço, em operação ou prestação oriunda de outra unidade da Federação, observado o disposto no inciso XXII do caput do art. 43 deste Regulamento.
§ 15 Na hipótese de não ocorrer operação interna subseqüente com a mercadoria objeto da antecipação tributária mencionada no parágrafo anterior, o contribuinte poderá solicitar restituição da importância recolhida a este título, para compensação em futura apuração da mesma espécie."
O decreto tornou exigível das ME/EPP a antecipação do ICMS devido na operação interna subseqüente, conforme se depreende da leitura do texto supracitado. Pretendeu o Estado de Minas Gerais instituir uma espécie de antecipação parcial do imposto.
Não pode haver dúvidas sobre a possibilidade de se exigir o recolhimento antecipado do ICMS, seja total, seja parcial, à luz do texto constitucional. Entretanto, há que se verificar se o mesmo pode se dar em relação a uma empresa optante e que recolha o ICMS no regime do Simples Nacional.
Um dos primeiros detalhes a serem notados é a aplicação do princípio da não-cumulatividade do imposto. No regime comum ele é de aplicação geral e obrigatória. No entanto, o ICMS recolhido no regime do Simples Nacional não observa tal princípio. A incidência do ICMS no Simples Nacional é cumulativa.
Outra característica diferenciadora, como conseqüência da anterior, é o fato do ICMS recolhido no Simples Nacional se configurar como tributo direto, enquanto no regime comum ele tem natureza de tributo indireto. Neste, podemos identificar as figuras do contribuinte de direito e o contribuinte de fato. Naquele estas duas figuras estão na pessoa do optante.
Feitas estas considerações, grandes conclusões podem ser formadas. Uma delas é o fato de que o regime de antecipação parcial somente se legitima em função do princípio da não-cumulatividade. Isso porque, o imposto parcialmente antecipado – relativo a fato gerador subseqüente – é lançado na escrita fiscal a título de crédito, a ser abatido do valor a recolher quando da ocorrência efetiva do fato gerador.
Vejamos um exemplo:
Determinada empresa sediada em Minas Gerais – e apura ICMS na sistemática débito/crédito - adquire mercadorias de São Paulo, mercadorias estas a serem revendidas.
Valor da compra: 10.000,00
Alíquota: 12%
ICMS destacado na NF: 1.200,00
No caso de se exigir a antecipação do ICMS relativo à operação subseqüente, no equivalente à diferença entre a alíquota interna e interestadual – considerando a alíquota interna como 18% - temos que a empresa se sujeitará à antecipação do equivalente à 6% sobre a base de cálculo do ICMS da compra.
Base de cálculo: 10.000,00
ICMS antecipado: 600,00
Posteriormente, considerando que as mercadorias tenham sido vendidas por 15.000,00, teremos a seguinte situação:
Valor da venda: 15.000,00
Alíquota: 18%
ICMS destacado na NF: 2.700,00
O valor a recolher efetivamente será os 2.700,00 diminuído do que foi antecipado e do crédito destacado na nota fiscal de compra. Logo, o valor a recolher será de 900,00 reais. Se não houvesse antecipação, o imposto a recolher seria de 1.500,00 reais. Há, apenas, antecipação de parte do ICMS que seria devido pelo contribuinte.
Portanto, o princípio da não-cumulatividade é essencial para a legitimidade da antecipação parcial do ICMS. Sem o abatimento do valor antecipado, não se tem antecipação de recolhimento, mas majoração de alíquota.