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A liberdade sexual do adolescente e a Lei nº 11.829/2008

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Um grande amigo me presenteou com um excelente livro que afirma que o povo assistiu bestializado nossa proclamação da república, isso em 15.11.1889 [01]. O livro me fez acordar para uma verdade:

"Todo sistema de dominação, para sobreviver, terá de desenvolver uma base qualquer de legitimidade, ainda que seja a apatia dos cidadãos." [02]

Há uma crise financeira mundial que atinge diretamente o Brasil, mas os governantes, irresponsavelmente, procuram manter o consumismo e manter o caos estabelecido por eles mesmos, eis que induziram o povo a contrair dívidas, consignando salários, vencimentos e proventos. Com isso, vivemos por um período meteórico o famoso "sonho americano". Todavia, a crise insiste em acabar com o sonho e com a possível sucessão presidencial, a ser entabulada pela atual Chefe da Casa Civil Dilma Rousseff. Por isso, eles precisam de discursos que afastem o fantasma da crise.

Os meios de comunicação de massa passaram, então, a veicular crimes graves, com abuso sexual, perpetrados contra crianças. Três meninas foram mortas em Curitiba e em Castro, cidades paranaenses, sendo que o suspeito do primeiro crime provavelmente dormia debaixo da cama da vítima; a segunda foi encontrada próxima de casa; e a última, foi levada do berço, por vingança contra a mãe [03]. Menos de dez dias depois surge a panacéia para toda criminalidade sexual contra criança e adolescente: a Lei 11.829, de 25.11.2008, publicada em 26.11.2009.

Tenho proferido palestras e os meus livros e artigos retratam os problemas decorrentes do exagero de causuísmos, freqüentes em matéria criminal [04]. Eles levam a imbróglios quase insuperáveis, enfrentados por aqueles que buscam criar mecanismos para aplicação do direito. Com efeito, as modificações pontuais da legislação criminal dão ensejo às incoerências que geram, por elas mesmas, reação à aplicação da lei.

No meio jurídico é possível encontrar com frequência a referência ao menor impúbere como sendo a pessoa natural menor de dezesseis anos de idade. Todavia, impúbere decorre do latim impubas, impuberis, significando "que não tem barba". Assim sendo, esse não é um conceito jurídico, cuja análise adequada será da medicina. De qualquer modo, procuramos criar um padrão para dizer que é impúbere aquele que, em razão da idade, não pode contrair justas núpcias [05]. A regra, no Código Civil é a de que o casamento pode ser contraído a partir dos dezesseis anos de idade (art. 1.517). No entanto, excepcionalmente, pode-se admitir o casamento, inclusive, da menor de 14 anos, isso no caso de gravidez (art. 1.520).

Ao meu aviso, casuisticamente, o casamento para elidir a punibilidade criminal do estupro perpetrado mediante violência presumida em razão da idade, foi tacitamente revogado pela Lei n. 11.106, de 28.3.2005 [06]. De qualquer modo, o verdadeiro sentido de puberdade é clínico e deve ser analisado particularizadamente, sendo certo que a regra geral do Código Civil é que o menor de dezoito anos casado obtém capacidade plena para os atos da vida civil (art. 5º, parágrafo único, inc. II), mas continua mantendo a qualidade de menor.

O dever de manter vida em comum, imposto aos casados, envolve a atividade sexual. Assim, para o adolescente casado, a atividade sexual é mais que um ato juridicamente possível. Ele é um ato jurídico obrigatório. Não obstante isso, a Lei n. 11.829/2008 alterou a ECA (ou melhor, o Estatuto da Criança e do Adolescente, mais "eca", em função de novas alterações), Lei n. 8.069, de 13.7.1990, dispõe:

"Art. 240. Produzir, reproduzir, dirigir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio, cena de sexo explícito ou pornográfica, envolvendo criança ou adolescente:

Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.

§ 1º Incorre nas mesmas penas quem agencia, facilita, recruta, coage, ou de qualquer modo intermedeia a participação de criança ou adolescente nas cenas referidas no caput deste artigo, ou ainda quem com esses contracena.

§ 2º Aumenta-se a pena de 1/3 (um terço) se o agente comete o crime: 

I – no exercício de cargo ou função pública ou a pretexto de exercê-la; 

II – prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade; ou 

III – prevalecendo-se de relações de parentesco consangüíneo ou afim até o terceiro grau, ou por adoção, de tutor, curador, preceptor, empregador da vítima ou de quem, a qualquer outro título, tenha autoridade sobre ela, ou com seu consentimento." (NR) 

Um marido de uma adolescente, tendo ele 18 anos, será imputável. Ele poderá praticar qualquer tipo de coito como ela, mas se fotografar a pena se assemelhará à do estupro. Também, nenhum estudo de política criminal poderá justificar a pena máxima cominada para uma simples fotografia do nu infantil, fixada em oito anos, quando o coito com a vítima, mediante violência presumida, teria pena máxima de dez anos [07].

O crime do caput é formal e, portanto, de perigo, mas tem pena máxima cominada próxima à do crime de dano do art. 213 do CP, não excepcionando sequer o(a) menor plenamente capaz para os atos da vida civil. Desse modo, em tese, um sogro conservador poderá levar seu genro à cadeia por ter tirado fotografias da esposa nua, tendo em vista que são crimes de ação de iniciativa pública incondicionada. E o pior, é que, mesmo que fosse de pessoa estranha não se poderia aproximar tanto a penas de tais crimes.

Revogado o art. 218 do CP (sedução), o adolescente é livre para a prática de sexo. Ele pode praticar atos sexuais livremente, mas jamais poderá fotografar o(a) parceiro(a), ainda que seja mais velho que ele (e ainda menor), visto que senão incorrerá em ato infracional. Também, o(a) maior poderá praticar qualquer espécie de coito com o(a) adolescente maior de dezesseis anos, mas se o(a) menor for fotografado, haverá crime equivalente ao estupro.

Pagar para um(a) adolescente virgem praticar consigo sexo será induzimento à prostituição (CP, art. 228); sendo a vítima maior de quatorze anos de idade, não se poderá falar em violência presumida, portanto, a pena máxima possível será de 2 a 5 anos. Assim, segundo a patética política criminal instituída, é melhor praticar relação sexual paga com menina virgem que oferecer valores para ela ser fotografada nua, ainda que a fotografia não se destine à utilização em local em que é possível o acesso de várias pessoas.

O absurdo maior é não ser necessária a prática de qualquer ato obsceno, bastando a simulação. Observe-se o que dispõe a Lei n. 11.829/2008:

"Art. 241-E. Para efeito dos crimes previstos nesta Lei, a expressão ‘cena de sexo explícito ou pornográfica’ compreende qualquer situação que envolva criança ou adolescente em atividades sexuais explícitas, reais ou simuladas, ou exibição dos órgãos genitais de uma criança ou adolescente para fins primordialmente sexuais."

A simulação por montagem ou qualquer outro meio tem tipo próprio com pena menor (art. 241-C). No entanto, tal preceito equivale a conduta de vender ou transferir a terceiro por qualquer título. Isso importa em nova irracionalidade porque equivale condutas potencialmente lesivas de gravidade muito distintas.

Roubar bancos em nome de uma ideologia, segundo nossos atuais governantes, é perdoável, não sendo perdoável a "fantasia" desenvolvida em nome do prazer. Não posso concordar com tais "fantasias", mas as considero menos doentias que exercer violência em nome de supostas ideologias de liberdade que se definharam com o tempo.

Os jovens revolucionários das décadas de 1960-1970, deram ensejo ao governo neo-liberal dos anos 1995-2002; Depois, à continuação das mesmas políticas econômica e financeira, o que vem desde 2003. As mesmas pessoas que lutavam por liberdade entenderam que leis criminais severas constituem bom "circo" para um povo que vive de parco "pão". Com efeito, criar uma montagem que inclua a imagem de adolescente, ainda que maior de dezesseis anos, sugerindo qualquer ato libidinoso, terá pena próxima do estupro.

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Sinceramente, não entendi a razão do art. 241 do ECA, tendo em vista que ele traz condutas assemelhadas, ao menos em rigor criminal, às do art. 240. Desse modo, como "vender" é crime plurissubsistente, a tentativa de venda terá pena menor que "fotografar", ainda que a fotografia seja apenas para memória de marido, namorado etc.

O art. 241-A tem em vista o crime perpetrado por meio da rede mundial de computadores, trazendo outra incongruência. Observe-se o texto legal:

"Art. 241-A. Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, distribuir, publicar ou divulgar por qualquer meio, inclusive por meio de sistema de informática ou telemático, fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente: 

Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa. 

§ 1º  Nas mesmas penas incorre quem: 

I – assegura os meios ou serviços para o armazenamento das fotografias, cenas ou imagens de que trata o caput deste artigo; 

II – assegura, por qualquer meio, o acesso por rede de computadores às fotografias, cenas ou imagens de que trata o caput deste artigo.

§ 2º  As condutas tipificadas nos incisos I e II do § 1º deste artigo são puníveis quando o responsável legal pela prestação do serviço, oficialmente notificado, deixa de desabilitar o acesso ao conteúdo ilícito de que trata o caput deste artigo.

Aqui se exige o dolo específico de favorecimento à divulgação da pornografia infantil. Ela é mais grave. Todavia, apenas a pena mínima é maior. A pena máxima é menor que aquela constante do art. 240. Outrossim, ratifico, também constitui crime de perigo que tem pena maior que o art. 228 do CP, o que é totalmente incoerente.

O art. 241-B do ECA traz a conduta privilegiada do pornográfico infantil, que é o consumidor final. O mínimo que se pode esperar da magistratura criminal é aplicação de tal preceito àquele que fotografar, possuir ou guardar imagem criança ou adolescente para guardar consigo. Também, o artigo traz, por vias transversas, a delação premiada, bem como a excludente de ilicitude pelo devido cumprimento do dever legal.

O crime do art. 241-D é subsidiário. Tal dispositivo expressa:

"Art. 241-D. Aliciar, assediar, instigar ou constranger, por qualquer meio de comunicação, criança, com o fim de com ela praticar ato libidinoso:

Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.

Parágrafo único.  Nas mesmas penas incorre quem:

I – facilita ou induz o acesso à criança de material contendo cena de sexo explícito ou pornográfica com o fim de com ela praticar ato libidinoso;

II – pratica as condutas descritas no caput deste artigo com o fim de induzir criança a se exibir de forma pornográfica ou sexualmente explícita".

A lei está em vigor. É péssima e precisa ser melhorada em vários aspectos. Se induzir, ato preparatório, criança à prática de ato libidinoso tem pena menor que extrair imagens dela nua ou praticando sexo, talvez seja melhor, do ponto de vista do agente, a última conduta de perigo, cuja pena é muito mais branda. Mais ainda: induzir a adolescente à prostituição, ou seja, oferecer dinheiro para que ela saia com o agente, terá pena de dois a cinco anos, enquanto se for criança, a pena será de um a três anos.

Todo o exposto só me leva a concluir que como "bestializados" que somos, assistimos discursos legitimadores de absurdos, mas nada podemos fazer contra eles porque nada mais somos, enquanto aplicadores da lei, que instrumentos para manutenção de uma máscara de poder.


Notas

  1. Mário, um grande Cientista Político, me agraciou com: CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1.987.
  2. CARVALHO, José Murilo de. Op. cit. p. 11.
  3. CARVALHO, Ana Paula de. PR: suspeito de matar menina dentro de casa nega acusação; delegado, versão é "fantasiosa". Rio de Janeiro: O Globo, 17.11.2008, 19h24. Disponível em: http://oglobo.globo.com. Acesso em: 27.11.2008, às 12h.
  4. Refiro-me a vários artigos que publiquei, os quais podem ser localizados em www.sidio.pro.br, bem como aos livros: MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa de. Comentários à lei antidrogas: lei n. 11.343, de 23.8.2006. São Paulo: Atlas, 2007; ______. Prescrição penal. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2007; ______. Execução criminal: teoria e prática. 4. ed.. São Paulo: Atlas, 2007.
  5. SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2.002. p. 417.
  6. MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa de. Prescrição... Op. cit. p. 32-42.
  7. Devo esclarecer que a jurisprudência dominante não admite o acréscimo de metade decorrente do art. 9º da Lei n. 8.072, de 25.7.1990, ao crime contra os costumes praticado com violência presumida.
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Sobre o autor
Sidio Rosa de Mesquita Júnior

Procurador Federal e Professor Universitário. Graduado em Segurança Pública (1989) e em Direito (1994). Especialista Direito Penal e Criminologia (1996) e Metodologia do Ensino Superior (1999). Mestre em Direito (2002). Doutorando em Direito. Autor dos livros "Prescrição Penal"; "Execução Criminal: Teoria e Prática"; e "Comentários à Lei Antidrogas: Lei n. 11.343, de 23.8.2006" (todos da Editora Atlas).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa. A liberdade sexual do adolescente e a Lei nº 11.829/2008. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1979, 1 dez. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12028. Acesso em: 16 nov. 2024.

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