3. O DIREITO PENAL DO TRABALHO NO BRASIL. ANACRONISMO, ATECNIA E RESISTÊNCIA
Quando se advoga a refundação do Direito Penal do Trabalho no Brasil, sugere-se, nas entrelinhas, que o atual quadro institucional de tutela penal laboral é inerme e insuficiente. Mas isso já havíamos demonstrado supra, ao introduzir este artigo. Resta desvelar, agora, os escaninhos dessa insuficiência, que ora recolhem a herança do anacronismo, ora se ocultam em episódios de atecnia, ora deixam transparecer a resistência ideológica do senso comum teórico brasileiro.
Vejamos.
3.1. ANACRONISMO (1): LEGISLAÇÃO E HERMENÊUTICA
No que diz com o anacronismo legislativo, merecem primeira menção os tipos penais do Título IV da Parte Especial do Código Penal («Dos Crimes contra a Organização do Trabalho»), que ainda mantêm ¾ à exceção dos artigos 203, 206 e 207 (por força das Leis n. 9.777/98 e n. 8.683/93) ¾ a mesma estrutura típica cunhada em 1940, sob inspiração corporativista (para não dizer totalitária), em pleno Estado Novo varguista (1937-1945 [25]). Já esse inexplicável abandono histórico bastaria para revelar, a propósito do Direito Penal do Trabalho, um surdo e vigoroso descaso legislativo.
Mas não é só.
Chama a atenção, por exemplo, o fato de o artigo 197, II, 2ª parte, do Código Penal (atentado contra a liberdade de trabalho, na modalidade "constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a participar de parede ou paralisação de atividade econômica") ainda constar, sem ressalvas, de todas as publicações nacionais do Código Penal. Dir-se-á que o tipo penal nada tem de corporativo ou totalitário, na medida em que a própria Lei de Greve (Lei n. 7.783/89) prevê, em seu artigo 15, que "a responsabilidade pelos atos praticados, ilícitos ou crimes cometidos, no curso da greve, será apurada, conforme o caso, segundo a legislação trabalhista, civil ou penal". É verdade. E é esse o problema. O piquete violento, que constrange o trabalhador não-alinhado a participar de movimento paredista mediante grave ameaça [26], sugere punição criminal, por vilipendiar, a um tempo, a liberdade de trabalho (artigo 5º, XIII, CF) e a liberdade de ir e vir (artigo 5º, caput e LXVIII, CF) da pessoa humana. A pluriofensividade e a especificidade da tutela penal reclamam, aqui, tratamento diferenciado, apartado das hipóteses dos artigos 146 e 147 do Código Penal (constrangimento ilegal e ameaça). Recorrer-se-ia, portanto, à hipótese do artigo 197, II, 2ª parte, do CP. Certo? Errado. A norma do artigo 197, II, 2ª parte, do CP foi revogada tacitamente pela Lei n. 4.330/64, substituindo-se a fattispecie original por aquela do artigo 29, VII, da «nova» lei de greve [27], havida na aurora da Revolução de Março (o que já antecipa a sua opção ideológica). Mas a Lei n. 4330/64 foi, por sua vez, expressamente revogada pela Lei n. 7.783/89 (artigo), que não previu crimes em espécie ¾ e, como se sabe, a regra vigente no Direito brasileiro veda a repristinação automática de dispositivos legais (artigo 2º, §2º, da LICC [28]) [29]. Quid iuris? Não há, hoje, solução inteiramente satisfatória no ordenamento penal brasileiro, o que torna a tutela penal da liberdade de trabalho e empresa (ambos fundamentos da República, ut artigo 1º, IV, CF), para dizer o mínimo, lacônica e inconsistente: será crime contra a organização do trabalho constranger o trabalhador liberal, mediante grave ameaça, a fechar o seu estabelecimento de trabalho; mas não o será constranger o trabalhador subordinado, ainda sob grave ameaça, a não ingressar em seu local de trabalho (instando-se o intérprete a recorrer, por subsidiariedade implícita, aos tipos dos artigos 146 e 147 do CP, o que significa desconhecer, na espécie, a lesão objetiva ao valor-trabalho).
De outra parte, divisa-se algum surrealismo na redação preservada do artigo 199 do Código Penal (atentado contra a liberdade de associação), que pune com detenção de um mês a um ano e multa quem "constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a participar ou deixar de participar de determinado sindicato ou associação profissional", tencionando tutelar a liberdade de associação e de filiação sindical ou profissional (BITENCOURT, 2008, p.372). Que liberdade é essa, porém, que desafia tutela penal em face da sociedade civil, mas não resguarda o cidadão dos efeitos indiretos de um modelo sindical que não albergou a plena liberdade sindical, nos moldes da Convenção n. 87 da Organização Internacional do Trabalho, notadamente em face da manutenção da unicidade sindical (artigo 8º, II, CF) e das contribuições sindicais compulsórias (artigo 8º, IV, CF)? Se o cidadão não sindicalizado ¾ por lídimo exercício de sua liberdade sindical negativa ¾ pode ser instado a recolher contribuição sindical (artigo 580/CLT), que reverte para o sistema sindical e para o próprio Estado (artigo 589/CLT), pode-se afirmar, em absoluto, que a sua liberdade sindical negativa está sendo respeitada pelo Estado brasileiro? Que sentido há em se «exercer» uma liberdade formal, se alguns efeitos inerentes ao fenômeno da associação sindical podem ser sentidos mesmo por quem decide não se associar? Aliás, tal inconsistência sistêmica não nasceu com a Constituição de 1988. É bem anterior a ela, como outrora ressaltou FRAGOSO (referindo-se ao panorama pós-1964): a «liberdade de associação» tutelada pelo artigo 199/CP é "liberdade inteiramente ilusória, pois o Ministério do Trabalho controla com mão de ferro a organização dos sindicatos, aplicando textos ditatoriais da CLT (arts. 528 e 530, «a»)" (FRAGOSO, 1988, p.652; BITENCOURT, 2008, p.373).
Não se quer, com isso, advogar a revogação do artigo 199 do Código Penal. Tem ele um papel social a cumprir, visto que a prática das «listas negras» por um lado (ofensa à liberdade sindical positiva), e das closed-shops por outro (ofensa à liberdade sindical negativa), devem desafiar reprimendas criminais efetivas, desde que o risco de desemprego e a perda da verba alimentar possam configurar, no ânimo da vítima, hipótese de «grave ameaça» (o que, sustentamos, há se ser avaliado caso a caso). Mas o Estado não pode ser hipócrita. Não pode, sem mais, exigir da sociedade civil um nível de liberdade que ele próprio malfere por vias oblíquas. Deve se adequar ao seu próprio discurso legal. Nesse encalço, refundar o Direito Penal do Trabalho pressupõe idealmente reorganizar alguns subsistemas juslaborais (como, in casu, o sindical), garantindo coerência no propósito universal de tutela daqueles valores por último referidos no tópico 2, supra (autonomia privada coletiva, direitos e liberdades individuais fundamentais da pessoa trabalhadora, garantias institucionais do trabalho e/ou do trabalhador).
Também merece alusão o artigo 201 do CP (paralisação de trabalho de interesse coletivo), igualmente revogado pela Lei n. 4.330/64, que já permitia a greve em atividades fundamentais (artigos 15 e 16). Com maior razão, não resiste ao cotejo com a vigente Lei n. 7.783/89, cujos artigos 10 a 13 regulam o exercício do direito de greve nas atividades essenciais. Como ponderam FRAGOSO (1988, pp.670 e ss.) e MIRABETE (1997, pp.417-418), tratou-se de incriminar uma hipótese de greve pacífica, o que hoje seria impensável. No atual contexto do ordenamento jurídico pátrio, "participar de suspensão ou abandono coletivo de trabalho, provocando a interrupção de obra pública ou serviço de interesse coletivo" (artigo 201/CP) ¾ conquanto o tipo prossiga igualmente reproduzido nas publicações editoriais do Código Penal, à falta de revogação expressa ¾ , já não é, per se, fato típico e antijurídico. Deu-se, por via reversa (i.e., pela consagração do direito de greve em atividades essenciais, que são, conceitualmente, ainda mais relevantes que as atividades meramente públicas ou de interesse coletivo [30]), a abolitio criminis da figura em comento, sob os inteiros efeitos do artigo 107, III, do CP (i.e., retroatividade absoluta e neutralização de todos os efeitos penais pretéritos, com alcance e extensão só equiparáveis aos da anistia). Talvez seja esse o melhor exemplo do entulho autoritário que ainda subjaz no Título IV da Parte Especial. E é mister apontar veementemente a sua revogação [31], mercê dos rudimentos do próprio garantismo penal (FERRAJOLI, 2000, pp.459-509; 2002, p.16 [32]), de forma a impedir que a excrescência sirva de instrumento ao empresariado ou ao próprio administrador público para tolher o lídimo exercício de um direito constitucional consolidado (artigo 9º CF).
A rigor, somente se praticada com violência à pessoa ou à coisa, a conduta tendente à interrupção de obra ou serviço público poderá atrair contornos criminais. Subsumir-se-á, porém, à fattispecie do artigo 200/CP, com pena detentiva de um mês a um ano e multa, mais a pena correspondente à violência (cúmulo objetivo de penas) [33].
3.2. ANACRONISMO (2): LACUNOSIDADE
Ainda no quesito anacronismo, releva encarecer, alfim, a necessidade de se legislar sobre a tutela penal dissuasória das condutas anti-sindicais de máxima gravidade. Para além do artigo 199/CP ¾ com as limitações já apontadas ¾ , nada mais há, no Brasil, a coibir penalmente as condutas anti-sindicais, assim compreendidos os atos que prejudiquem indevidamente o titular de direitos sindicais no exercício ou em função da sua atividade sindical, ou ainda aqueles atos tendentes a denegar, injustificadamente, as facilidades ou prerrogativas necessárias ao normal desempenho de suas ações coletivas (URIARTE, 1989, p.35). No fundo, a omissão legislativa parece fazer sentido, diante da opção constitucional por um modelo de liberdade sindical semiplena (artigo 8º, II e IV, CF). Mas um processo histórico de refundação do Direito Penal do Trabalho haverá de passar em revista, necessariamente, essa condição deficitária de tutela. Toma-se por padrão internacional, hoje, o caso francês, cuja legislação contempla uma larga tipificação do chamado délit d’entrave [34], pela qual se sancionam penalmente diversos comportamentos patronais tendentes a obstruir o funcionamento normal das instituições representativas dos empregados ou o legítimo exercício da ação sindical (BAYLOS et al., 1997, p.37). Aliás, o direito francês é dos mais desenvolvidos em matéria penal-laboral, a ponto de tipificar delitos de travail dissimulé (seja par dissimulation d''activité, seja ainda par dissimulation d''emploi salarié, nos termos dos artigos L. 324-10 e L 324-11 do Code du Travail de 1973 e dos artigos L. 8221-3 e L. 8221-5 do Code de 2007-2008) e de admitir efeitos penais à figura da delegação de poderes (délégation de pouvoirs) [35], com possível desoneração do superior hierárquico ¾ i.e., isenção de pena ¾ , caso haja aceitação pelo destinatário [36].
E nem se diga haver, no modelo francês, inclinação paleorrepressiva ou desídia para com o princípio da lesividade. Não há. Há, sim, coerência. Afinal, tratando-se de um estado republicano, democrático e social [37] que proclamou solenemente sua adesão ao sistema internacional dos direitos humanos [38], e tendo ratificado, entre outras, as convenções 87, 98 e 135 da OIT [39], aparelhar a tutela penal em favor das liberdades sindicais, em padrões razoáveis (em geral como délits e não como crimes [40]), não é mais que proporcionar concreção bastante às proibições mínimas necessárias (voltando a FERRAJOLI), eis que
"el principio de lesividad [...] tiene el valor de criterio polivalente de minimización de las prohibiciones penales. Y equivale a un principio de tolerancia tendencial de la desviación, idóneo para reducir la intervención penal al mínimo necesario y, con ello, para reforzar su legitimidad y fiabilidad" (2000, p.479 – g.n.).
Ora, se se tomam as liberdades sindicais como bens essenciais ao Estado Democrático de Direito, e se o aparato legal não-penal tem se revelado insuficiente para a prevenção adequada das condutas anti-sindicais, é forçoso reconhecer a legitimidade da intervenção penal, para resguardo da normatividade «mínima necessária» à pacificação das relações coletivas no âmbito da empresa e do sindicato. Daí a conclusão de BAYLOS e TERRADILLOS (1997, pp.37-38), após sopesarem prós e contras da reprimenda penal às condutas anti-sindicais:
"En general, […] la valoración indicativa mayoritaria se decanta por la poli-utilización alternativa de todos los procedimientos y formas de tutela de los intereses sindicales que brinda el ordenamiento jurídico. Mas ello sin desconocer los riesgos de supra-valorar la eficacia de tal vía sancionatoria; en su vertiente de «castigo» se critican las falsas ilusiones que puede producir y se destaca la ineficacia de la conminación legal de prisión, dado que no comporta efectiva privación de libertad [41]; por el contrario, lo importante, lo que hace eficaz este procedimiento, es su capacidad para actuar en el ámbito específicamente laboral, recomponiendo la correlación de fuerzas, ilegalmente descompensada, mediante el reconocimiento por el ordenamiento jurídico de las capacidades de normación y de tutela colectiva de los intereses de los trabajadores" (g.n.).
É, de fato, como pensamos.
Mas o debate não se encerra aqui.
3.3. ATECNIA
A par da sua condição anacrônica, a legislação penal do trabalho padece ainda, no Brasil, de quadros quase teratológicos de atecnia, tributários daquele mesmo descaso dos órgãos legiferantes (evitando-se, por agora, suposições em torno do propósito inconfesso de produzir legislação penal meramente simbólica, sem pretensões de efetividade). Exemplo paradigmático desta atecnia está no artigo 19, §2º, da Lei n. 8.213/91, que dispõe:
"Constitui contravenção penal, punível com multa, deixar a empresa de cumprir as normas de segurança e higiene do trabalho".
A norma é, a olhos vistos, inconstitucional. Também é inconveniente.
É inconstitucional, na medida em que o tipo penal é excessivamente aberto, o que compromete a sua função constitucional de garantia (ROXIN, 1997, p.277 [42]; BITENCOURT, 2003, p.202; JESUS, 20022, p.269) e contravém o princípio da taxatividade (mandado de certeza), consectário do princípio da legalidade penal (artigo 5º, XXXIX, da CRFB).
Não bastasse, a norma penal refere a «empresa» como sujeito ativo da contravenção, quando já se tem por adquirido, na doutrina nacional, que empresa não é pessoa; empresa é exercício profissional de atividade econômica para a produção ou a circulação de bens ou de serviços (artigo 966, caput, do NCC). Logo, uma «empresa» sequer em tese pode ser sujeito ativo de infração penal, mesmo à luz do artigo 225, §3º, da CRFB.
Objetar-se-á que o legislador recorreu à noção de empresa em seu perfil subjetivo (REQUIÃO, 2006, p.55 [43]), i.e., empresa como empresário (pessoa física ou jurídica), à maneira do artigo 2º, caput, da CLT. Se o fez, andou mal, porque os tipos penais devem ser tão claros quanto possível, deixando mínima margem a debates semânticos. É a secular exigência da "lex certa" (ROXIN, 1997, p.141; TOLEDO, 1991, p.29). E, para mais, a norma continuaria padecendo de parcial inconstitucionalidade, porque insinuaria, quanto ao empresário pessoa jurídica, uma modalidade de infração penal própria inadmissível no sistema penal vigente, que só reconhece responsabilidade penal de pessoa jurídica nos lindes do artigo 3º, caput, da Lei n. 9.605/98 (Lei dos Crimes Ambientais), ex vi do artigo 225, §3º, da CRFB [44].
Ademais, a norma em testilha é inconveniente do ponto de vista político-criminal, porque não prevê restrição de liberdade de qualquer ordem à pessoa, limitando-se à sanção pecuniária. Ora, o descumprimento das normas de saúde, higiene e segurança no trabalho é fattispecie que admitiria imensa matização, desde condutas de menor relevância (como, e.g., deixar de fornecer protetores auriculares durante certa semana) até condutas de grave periclitação, com perigo concreto à vida e/ou à integridade física do trabalhador (como, e.g., determinar operações em edificações elevadas sem pré-instalação de proteção contra queda de trabalhadores e/ou projeção de materiais a partir do início dos serviços necessários à concretagem da primeira laje [45]). Nesses derradeiros casos, seria de rigor definir tipos de crimes ¾ não contravenções ¾ e cominar penas detentivas, à maneira do que se fez no Código Penal de 1940 (artigos 130 a 136), mas com especificidade para o contexto labor-ambiental. Se, ao revés, a «mens legislatoris» era alcançar apenas os primeiros casos (condutas de mínimo potencial ofensivo), deixando os ensejos mais graves para o próprio Capítulo III do Título I da Parte Especial do Código Penal, então melhor seria optar pela infração administrativa, sem efeitos penais quaisquer (tais como reincidência penal, conversão secundária em dívida de valor, certificação do "an debeatur", etc.), seguindo-se a tendência contemporânea das legislações européias em sede contravencional (na Itália, e.g., confira-se o teor do artigo 32 da Legge n. 689/81). E para isso, aliás, teríamos já norma legal correlata, inclusive com majoração da penalidade administrativa em caso de reincidência (artigo 201 da CLT).
3.4. RESISTÊNCIA IDEOLÓGICA
Não é raro, ademais, colherem-se na doutrina e na jurisprudência lições que denotam evidente resistência ideológica à interpretação ordinária dos tipos penais já predispostos, contra a aparente vontade do legislador e o próprio aceno institucional no sentido de reverter o déficit de efetividade das normas de direitos sociais.
Assim se dá, p.ex., com a norma do artigo 168-A do CP (apropriação indébita previdenciária). Seguindo-se a linha dos debates havidos antes da Lei n. 9.983/2000, ao tempo do revogado artigo 95, «d», da Lei n. 8.212/91, discute-se se há ou não necessidade de dolo específico ¾ ou, na expressão de LUIZ FLÁVIO GOMES, «intencionalidade especial transcendente» (2001, p.48) ¾ consistente em se apropriar indevidamente ou fraudulentamente das contribuições sociais [46]. Ora, bem se sabe que essa prova é, no geral, impraticável. Como se demonstrar, no plano subjetivo, que a especial motivação de uma conduta omissiva era a de enriquecer, pessoal e imediatamente, às custas da segurança social dos trabalhadores? E, se por acaso fora outra a intenção ¾ como, e.g., a de pagar fornecedores e/ou fazer investimentos no parque produtivo, desconhecendo-se o privilégio relativo dos tributos em geral (entre os quais estão, na condição de contribuições especiais do artigo 149/CF, as contribuições sociais do artigo 195/CF) ¾ , é mesmo o caso de exonerar-se o sonegador?
Convém realçar, a esse propósito, que o tipo penal «a se», como disposto no artigo 168-A do CP, não exige expressamente qualquer especial intenção de agir. E seguiu, nisso, a tradição do tipo básico: acaso se discute a especial intenção de agir do sujeito quando se subsumem atos de expropriação, com inversão do ânimo da posse, à fattispecie do artigo 168, caput, do CP? Ou ¾ o que é coisa diversa ¾ se exige do delinqüente, como "modus operandi", expediente fraudulento à maneira do artigo 171 do CP (artifício, ardil ou outro meio fraudulento)? Não pode ele simplesmente se valer da posse mansa e desvigiada para alienar a coisa, a terceiro de boa-fé ou a receptador, sem que nisso haja qualquer expediente apto a iludir, no momento da conduta, o legítimo proprietário? É claro que pode [47]. E por que não seria assim com a figura análoga (artigo 168-A/CP)?
Eis aqui, manifesto, o traço inconfundível da resistência ideológica. Nem sempre se logra captá-lo na estrutura do discurso ou ao tempo da idéia; mas, consciente ou não, ela está lá. Quer-se poupar o empresário que, por dificuldades financeiras, deixa de repassar as contribuições sociais à União (ut Lei n. 11.457/2007), em prejuízo da segurança social de seus empregados. Mas decerto não se teria igual condescendência com o empresário que, diante das mesmas dificuldades financeiras, decidisse furtar ou recuperar suas finanças mediante aplicação de golpes na praça (estelionatos). É que, na percepção social mediana, frustrar o erário ou ¾ o que é pior ¾ o fundo de seguridade social do trabalhador hipossuficiente (porque o hiper-suficiente não lançará mão dos benefícios do RGPS) não é tão grave como frustrar o patrimônio individual de terceiros. São as bases individualistas do Direito Penal clássico, de feitio liberal, que projetam sua visão de mundo no exercício hermenêutico das cortes e dos pensadores (DOTTI, 1984, passim). E não há, nisso, propósito de crítica pessoal; há, sim, mera constatação. Mas com o foco da mudança ¾ donde se falar, desde o início, em refundação.
Contra-argumenta LUIZ FLÁVIO GOMES, porém, que o castigo penal, na hipótese do artigo 168-A do CP, só cobra relevância quando a apropriação estiver acompanhada de fraude, engano ou má-fé, sendo atribuível a um devedor fraudulento, contumaz ou relapso; do contrário, havendo mera inadimplência, não se poderia esgrimir com a sanção penal, pois "ao juiz, em cada caso concreto, cabe discernir (e bem) o inadimplente do delinqüente" (2001, p.55). Está coberto de razão. Mas isso nada tem com o tipo penal subjetivo (dolo genérico/dolo específico); tem, sim, com a possibilidade de agir-de-outro-modo (TOLEDO, 1991, p.229), que diz respeito à culpabilidade do agente, i.e., ao juízo concreto de censurabilidade social que recai sobre a sua conduta. Se, por razões econômicas e/ou financeiras, o empresário não puder recolher as contribuições sociais de certo mês, certamente estará isento de pena, por aplicação analógica do artigo 22 do Código Pena (dirimente extralegal de culpabilidade, por inexigibilidade de conduta diversa [48]). Será assim, ademais, para qualquer conduta omissiva tendente a frustrar direitos sociais fundamentais (apropriação indébita de gorjetas, retenção dolosa de salários ¾ quando finalmente se conferir concretude legal ao mandado de criminalização do artigo 7º, X, 2ª parte, da CRFB ¾ , etc.). Mas essa condição excepcional de quem, no momento da ação ou da omissão, não poderia ter agido de outro modo, "dentro do que é comumente revelado pela humana experiência" (TOLEDO, 1991, p.328), é algo que se pode aferir objetivamente ¾ não raro, por uma perícia contábil demonstrativa da incapacidade econômico-financeira da empresa no período do calote. Pensando-se desse modo, concilia-se a racionalidade da pena ¾ que não é mesmo de se aplicar onde não tem função ou papel a cumprir ¾ com a efetividade da norma penal e do seu valor subjacente; decidir-se-á, casuisticamente, se o desvio consciente e indevido das contribuições sociais (aperfeiçoando-se, portanto, os tipos penais objetivo e subjetivo do artigo 168-A/CP) podia ou não ser razoavelmente evitado por conduta diversa. Do contrário, situando-se tal discussão na esfera do tipo subjetivo, a regra será a impunidade, pela natureza geralmente indemonstrável de um qualquer «dolo específico» nesses casos.
Mais recentemente, outro nicho de resistência ideológica erigiu-se em torno do tipo do artigo 297, §4º, do CP, que pune como falsificador de documento público "quem omite, nos documentos mencionados no §3º, nome do segurado e seus dados pessoais, a remuneração, a vigência do contrato de trabalho ou de prestação de serviços". Por estar arrolada, entre os documentos do precitado parágrafo 3º, a própria Carteira de Trabalho e Previdência Social (artigo 297, §3º, III), pareceria óbvio a qualquer leitor mais atento que, a partir da Lei n. 9.983/2000, a conduta de omitir dolosamente anotação em CTPS configuraria crime equiparado ao falso público material [49], nos termos do artigo 297, §4º, do CP (como, de resto, já acontecia com a anotação dolosa de falsa data admissional, nos termos do artigo 49, V, da CLT). E é, de fato, como pensamos: conquanto mais restrita, a norma do artigo 297, §4º, do CP cumpre, no Brasil, funções correlatas àquelas exercidas, em França, pelo tipo de délit de travail dissimulé par dissimulation d''emploi salarié (L. 8221-5 do Code du Travail em vigor).
Diverge, porém, DAMÁSIO E. DE JESUS (20021, pp.483-488), entre outros. Para DAMÁSIO, a conduta de deixar de registrar empregado na carteira profissional, em vista dos artigos 41 e ss. da CLT e da Portaria 3.626/91 do Ministério do Trabalho, não configuraria o crime do artigo 297, §4º, do Código Penal, por força do princípio da taxatividade: a nova lei puniria tão-só a conduta do empregador que, firmando contrato de trabalho com o obreiro, registra-o em CTPS com dados falsos (§3º) ou, no ato do registro, omite dados com o desiderato de burlar o INSS (§4º); "a incriminação, porém, não passa disso, não prevendo como fato típico a simples omissão de registro". Por outro lado, em relação à CTPS, os objetos jurídicos do delito de falsidade documental, que são a autenticidade (função de garantia do documento), a perpetuação (incolumidade física do objeto material) e o valor de prova (função probatória do documento) ¾ aspectos que, reunidos, prefiguram, no tráfico jurídico, a noção da fé pública ¾ , não se sujeitariam a qualquer risco anormal com a mera omissão de registro, donde a impossibilidade de imputação objetiva da conduta, mercê do princípio do fim de proteção do tipo penal [50]. Diversamente, se o empregador registrasse o empregado sob remuneração inferior àquela efetivamente paga (= salário extrafolha), ou se omitisse parte do período de vínculo empregatício, afetaria as funções de garantia e de prova da CTPS, pois as instituições públicas (e.g., União, INSS, CEF e Ministério do Trabalho) e privadas (empresas e empregadores em geral) guiar-se-iam pelo conteúdo da carteira, com prejuízos os mais diversos.
Assim, porém, já não nos parece. A rigor, o discurso excludente da imputação objetiva lança mão de uma teoria inovadora ¾ à qual inclusive nos filiamos (FELICIANO, 2005, pp.184-198) ¾ para chegar, sem mais, a um axioma predefinido: deixar de anotar CTPS não pode ser crime. É que o mais vulgar dos cidadãos poderá sempre incorrer nesse «pecadilho», vez ou outra, se p.ex. omitir a anotação do contrato de trabalho de seu empregado doméstico nos primeiros meses... E, pelo senso comum teórico, o que é assim tão «ordinário» não deve desafiar reprimendas penais. Pressente-se, outra vez, aquela mesma resistência ideológica, calcada antes em uma suposição político-criminal míope que em razões de estrita técnica jurídica.
Com efeito, o fato de se omitir dolosa e integralmente a anotação do vínculo empregatício ¾ o que afasta, pela menção ao elemento subjetivo (dolo genérico), as hipóteses de relação jurídica dúbia (como se dá, o mais das vezes, com os representantes comerciais autônomos [51]) ¾ compromete igualmente as funções de prova e garantia da CTPS, uma vez que (a) o futuro empregador não terá meios para aferir a experiência profissional anterior do obreiro; (b) o trabalhador não terá como fazer prova do tempo de serviço junto ao INSS (prova pública), ou prova de renda junto a instituições bancárias ou empresas comerciais para fins de empréstimos, financiamentos ou crediários (prova privada); (c) a omissão de anotação funciona como ilícito conexo às sonegações previdenciárias (artigo 337-A, I, do CP) e às dissimulações de atividade [52] (i.e., empresas de fato), colaborando para a frustração da fiscalização do trabalho (MTE) e tributária (SRF [53]). Como afirmar, então, que a conduta de omitir dolosamente a anotação da relação de emprego crie riscos jurídicos não alcançados pelo fim de proteção do tipo penal (artigos 297, §4º, do CP)? Afinal, há evidente comprometimento à fé pública no tráfico jurídico, com a criação de riscos não-permitidos que se espraiam pela coletividade, em detrimento do trabalhador, do erário e de terceiros interessados [54].
Aliás, a própria Exposição de Motivos Interministerial n. 52 (Ministros de Estado da Justiça e da Previdência Social), dirigida ao Poder Legislativo Federal por meio da Mensagem n. 624, de 13.05.1999, declarava textualmente que o propósito do projeto de lei então encaminhado ¾ embrião da Lei n. 9.983/2000 ¾ era o de "dotar o aparelho repressivo e judiciário de instrumentos mais eficazes no combate a essa espécie de criminalidade" (sonegação e desvio de verbas previdenciárias). Está claro, portanto, qual fora a «mens legislatoris» (elemento fundamental para se investigar, na perspectiva histórico-sistemática, qual o devido fim de proteção da norma penal): garantir efetividade tanto às normas tributário-previdenciárias como àquelas normas que impõem deveres acessórios ligados à arrecadação previdenciária (como a anotação em CTPS, a informação anual na RAIS, etc.). Pois bem: se a omissão de anotação do vínculo empregatício, ao frustar a função de prova e garantia da CTPS, respalda os expedientes de sonegação previdenciária, como lhe negar pertinência ao âmbito de alcance do tipo penal?
Ademais, à luz da argumentação «a fortiori», soa incoerente afirmar, p.ex., que configure crime a conduta de omitir a anotação de seis meses de vínculo empregatício, malgrado anotados os restantes ano e meio, e que não o configure a conduta de omitir a anotação de todos os dois anos... Seria esse um Direito Penal de casuísmos, sem sentido para a mais comezinha intuição do justo; ou ¾ na expressão que outrora empregamos ¾ um desconcertante Direito Penal do insólito. Decerto não o queremos.
Por fim, ainda como indício dessa resistência ideológica ¾ se bem que, agora, no campo organo-procedimental ¾ , poderíamos cogitar da inteligência vazada na liminar deferida pelo Supremo Tribunal Federal em autos de ADI n. 3.684/2006 (relator Min. CEZAR PELUSO), quando se decidiu pela manutenção do «status quo», com o cerceio prévio de qualquer interpretação tendente a reconhecer, na leitura conjunta dos incisos I e IV do artigo 114 da CRFB, alguma sorte de competência penal exercitável pela Justiça do Trabalho (conquanto o próprio STF afirmasse, até meados da década de noventa, a natureza estritamente penal do habeas corpus [55], previsto no inciso IV do artigo 114). Caberia ainda cogitar, mais recentemente (CTASP [56], 07.11.2008), da rejeição ¾ por uma quase unanimidade ¾ do Projeto de Lei n. 2.636/2007 (Deputado EDUARDO VALVERDE), que dispunha sobre a competência penal da Justiça do Trabalho para o processo e o julgamento dos "crimes oriundos da relação de trabalho", nos termos do artigo 114, IX, da CRFB, à exceção daqueles atribuídos constitucionalmente à Justiça Federal comum [57]. Talvez se oculte, notadamente nesse derradeiro desfecho, agudo receio quanto à possível inflexão dos níveis de efetividade das normas penais laborais, caso trasladada a respectiva competência para os órgãos da Justiça do Trabalho. Mas de nada disso trataremos aqui, até porque já o fizemos em texto próprio (FELICIANO, 20061, passim). A ele remetemos o leitor interessado, para que de tudo tire suas próprias conclusões.