III - Sobre a normalidade da crise
A ausência de consciência hermenêutica, ou seja, do fato de que existe um horizonte de sentidos naturalizados no qual estamos inseridos, sendo o mesmo o responsável pelo entendimento que temos uns com os outros e sobre o mundo que nos cerca, ausência de consciência típica dos iluministas, o que explica a preponderância que os mesmos atribuíram ao momento de produção legislativa, esquecendo-se que é o "presente" e o intérprete que conferem sentido às leis gerais e abstratas, pode ser apresentada como fator determinante para a crise constitucional que vivenciamos em nosso país, crise esta caracterizada pela difusão da convicção de que a nossa Constituição não passaria de mera "folha de papel", pois o que realmente nos constituiria seriam os "fatores reais de poder" existentes na sociedade, tal como trabalhado por Lassale em sua famosa conferência de 1863.
Nessa linha de argumentação, realizando uma crítica por demais cética à Constituição de nosso país, em virtude do excessivo desrespeito à mesma, encontramos vários constitucionalistas brasileiros, como Fábio Konder Comparato, que elaborou um Réquiem para uma Constituição, afirmando que a Constituição de 1988 seria um "cadáver", um "corpo sem alma" (COMPARATO, 2001:77). Poderíamos escrever várias páginas apresentando os vários ângulos a partir dos quais é apresentado esse sentimento de quase anomia em relação à nossa ordem jurídico-constitucional, mas, ao contrário do que entende Celso Antônio Bandeira de Mello, não estamos aqui para assistir a "seus discretos funerais" (MELLO, 2001:35).
O fato é que todos os céticos diagnósticos partem de uma identificação entre Constituição e a literalidade do texto, ou seja, eles próprios identificam Constituição com a "folha de papel", com um documento escrito ideal que não foi concretizado, não se atentando para o fato de que a normatividade constitucional vincula-se a uma atribuição de sentido que se realiza no tempo, refletindo as contingências históricas, dependendo assim das leituras que serão realizadas pelos intérpretes quando de sua aplicação, não se configurando então como um ideal estabelecido em determinado momento do passado e que comandaria, de forma estanque, todo o futuro. Nessa linha, poderíamos dizer que toda sociedade projeta um conceito ideal de direito a partir de suas pré-compreensões, o que explica as várias configurações assumidas pelos princípios de liberdade e igualdade inerentes ao direito moderno.
Por outro lado, se, como diz Habermas, a própria realidade está impregnada de idealidades, se as normas jurídicas somente ganham pleno significado em situações concretas de vida, não podemos falar em real em oposição ao ideal, oposição esta que está subjacente às críticas dos juristas mencionados acima. O próprio fato dos constitucionalistas em questão recorrerem aos princípios constitucionais surgidos nos países ocidentais desde as Revoluções do século XVIII como padrão para a crítica da "realidade" dos países ditos "periféricos" demonstra como não se pode falar em um hiato entre ideal e real, entre texto e contexto, pois tais ideais estão subjacentes às análises das vivências constitucionais, sendo os mesmos utilizados como parâmetro normativo para a aferição dos abusos, das práticas ilegítimas.
Cabe ainda lembrar que até mesmo o termo "realidade" é questionado hoje em dia, haja vista que, na medida em que todo entendimento sobre o mundo e sobre nós mesmos se dá através da linguagem, não podemos pensar o "real" como algo que existe por si só, como o lócus das "essências", que, por ser compreendido de maneira imediata, não necessitaria da mediação lingüística.
Nessa linha, a própria classificação ontológica de Constituição adotada por Karl Loewenstein, que se apóia, implicitamente, no pressuposto platônico de existência de dois mundos, o ideal e o real, apresenta-se como inadequada para a análise do constitucionalismo atual e, nesse sentido, para a caracterização da história constitucional brasileira. Tal pensador argumenta que a Constituição escrita, cujos contornos foram estabelecidos a partir das Revoluções do século XVIII, apresenta configurações distintas dependendo dos contextos político-sociais nos quais se insere, ou seja, dependendo das relações de poder que determinam como os destinatários da mesma a aplicarão. Assim, a simples análise do documento constitucional escrito não seria suficiente para captar a "realidade" jurídico-constitucional dos diversos países, sendo que somente um "homem de marte" (LOEWENSTEIN, 1970:206), em suas próprias palavras, seria capaz de se abstrair das disparidades nas relações de poder existentes e perceber unicamente as semelhanças que os documentos das diversas constituições espalhadas pelos países ocidentais apresentam entre si.
Partindo de tais considerações, Loewenstein classifica as Constituições em normativa, que seria aquela na qual as relações fáticas de poder se conformam às normas constitucionais; a nominal, que se caracterizaria pela existência de um hiato entre as normas constitucionais positivadas e desejadas, ou seja, que correspondem ao senso de justiça da comunidade, mas que são inviabilizadas pelas práticas sociais, políticas e econômicas existentes; e a semântica, que seria plenamente aplicada por ser um instrumento utilizado pelos detentores do poder como um mecanismo de formalização de uma situação de domínio já configurada.
Se a Loewenstein pode ser atribuído o mérito de atentar para as especificidades dos contextos de aplicação, conseguindo ver que a aprovação de um documento constitucional não é garantia de normatividade, não sendo suficiente assim "vestir uma roupa nova" para se alterar as práticas jurídico-constitucionais de determinada comunidade política, tal pensador ainda cai na armadilha, construída pela tradição metafísica, de separar a idealidade da faticidade, o que acaba, como mencionamos anteriormente, contribuindo seja para a perpetuação de uma "realidade", esquecendo-se que esta é sempre construída, não existindo por si só, carregando consigo toda uma carga de idealidade, seja para a consideração da Constituição como um modelo ideal já estabelecido no passado e escrito em uma "folha de papel", modelo este que guiaria todo o processo de luta política que a ele se remeteria, esquecendo-se que é no presente, na "realidade", que as idealidades surgem, isto é, que as normas constitucionais se constituem.
Temo que estaríamos a qualificar normas ou comportamentos normativos abomináveis assim como os que reproduzem a escravidão, ainda que não formal, ou o desmando e o arbítrio das autoridades constituídas limitadamente pela Constituição como "realidades", quando, na verdade, normas só podem ser cumpridas ou descumpridas, legítimas ou ilegítimas, nunca, reais ou ideais. Qualquer norma comporta elementos idealizantes e, a um tempo, encontra algum enraizamento na sociedade da qual brotou. (CARVALHO NETTO, 2003c:44).
Se considerarmos a crua "realidade" como impossível de ser alterada, como certas práticas abusivas que se perpetuaram e que comandam, dessa forma, nossa vivência constitucional, o risco que corremos é de justificá-la, é de transformá-la em expectativas normativas da sociedade, isto é, em expectativas generalizadas de comportamento que resistem aos fatos. Dessa forma, seguindo o pensamento de Jürgen Habermas, afirmaríamos que sem as normas serem consideradas legítimas não há que se falar em generalização de expectativas normativas, sendo que toda prática social levanta pretensões de validade, sendo passível de gerar normatizações na medida em que tais pretensões não forem refutadas pelos participantes do discurso. Esse é então o perigo de pensamentos como o de certos autores brasileiros que, tendo em vista a "realidade" de exclusão social, política e econômica de nosso país, onde milhões de pessoas vivem na miséria, não possuem acesso à educação, saúde e emprego, situação precária esta que descabe aqui fazermos um relato minucioso, pois já faz parte de nosso mundo da vida, de nossas pré-compreensões sobre o que nos cerca, advogam a inexistência de um constitucionalismo, ou seja, não admitem que haja um parâmetro normativo universal subjacente a todas as descontinuidades regionais e históricas, caracterizado pelos ideais de liberdade e igualdade inerentes ao direito moderno.
Para finalizar essa questão, perguntaríamos: será que nos países onde primeiro apareceram os ideais modernos de liberdade e igualdade, como nos EUA e França, não havia também direitos descumpridos? A universalização de direitos não ocultava, ou justificava, a princípio, a sua restrição aos proprietários, aos burgueses? Estavam os negros americanos incluídos no "We the people" do preâmbulo da Constituição de 1787? Essas exclusões, derivadas do contexto em que os textos constitucionais foram densificados, levam-nos a negar a existência do Constitucionalismo? Ou simplesmente o caracterizam como uma linha de continuidade, como um parâmetro normativo ao qual sempre se recorre, mesmo a partir de "realidades" muito díspares?
IV - Brasil, um passado de frustrações?
Se, como ressaltamos anteriormente, o descompasso entre normas e fatos é intrínseco à própria estrutura do direito, como dizer que a Constituição na história jurídico-política brasileira foi apenas simbólica ou nominal, por nunca ter sido plenamente concretizada? Será que não podemos ter outra compreensão de nosso passado, já que o mesmo sempre pode ser relido a partir das indagações que nos surgem no presente? A reflexão que nos impulsiona no presente artigo, e que procuraremos tornar evidente nos recortes históricos que pretendemos realizar, é que essa crença em um passado de desilusões mascara todo um processo de luta por maior liberdade e igualdade que sempre esteve presente na construção de nossa identidade constitucional.
Por outro lado, a afirmação de que os textos constitucionais tiveram reduzido papel em nossa história, já que reiteradamente desconsiderados, pode ser refutada quando constatamos que até mesmo o Ato Institucional n.º 1, que resultou de um Golpe militar em 1964, fez referência, em seu preâmbulo, à eclosão de uma Revolução. Dizia tratar-se de uma Revolução por ser diferente de outros movimentos armados "pelo fato de que nela se traduz não o interesse e a vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da Nação". Também a Constituição de 1937 dispõe, em seu artigo 1.º, que o "poder político emana do povo e é exercido em nome dele". Se acreditarmos que a "realidade" foi bem diferente da afirmada em tais documentos, podemos entender essas declarações como desnecessárias? E será que na "realidade" não existiram manifestações emancipatórias nesses períodos? Como entender a resistência de idéias, e até mesmo o extremo da luta armada, levada a cabo nas décadas de 60/70 em nosso país? Não foi esse período um dos momentos no qual o Supremo Tribunal Federal apresentou-se como combativo, não se auto-restringindo em suas funções constitucionais, em virtude de pressões políticas ou econômicas, como pode ser visto em alguns casos julgados em sua história?
Para esclarecer a questão aqui subjacente, devemos entender como foi possível a coexistência da Constituição de 1824 e a escravidão no Brasil Imperial. Se adotamos os ideais burgueses, como conseguimos conciliá-los com um regime em que as pessoas não eram proprietárias sequer de si mesmas? É correto afirmarmos que a mencionada Constituição não passou de uma simples "folha de papel"? Será que a exigência de liberdade e igualdade, presente no citado documento constitucional, não esteve presente nesse momento de nossa história, ou foi somente uma quimera de um povo subserviente?
O fato é que, como já colocamos anteriormente, até mesmo na Europa, os ideais de liberdade e igualdade em questão não foram plenamente observados, basta somente lembrarmos da exploração desencadeada pela Revolução Industrial, o que acabou por ocasionar o próprio questionamento de todo um paradigma, ou seja, da concepção liberal de direito e política. Esclarecedora é a seguinte passagem de Roberto Schwarz:
A Declaração dos Direitos do Homem, por exemplo, transcrita em parte na Constituição Brasileira de 1824, não só não escondia nada, como tornava mais abjeto o instituto da escravidão. A mesma coisa para a professada universalidade dos princípios, que transformava em escândalo a prática geral do favor. Que valiam, nestas circunstâncias, as grandes abstrações burguesas que usávamos tanto? Não descreviam a existência – mas nem só disso vivem as idéias. (SCHWARZ, 2003:12)
O que podemos perceber é que no Brasil os ideais em tela foram falseados de maneira original, ou seja, a transposição de idéias européias fez com que elas próprias fossem deslocadas de maneira peculiar de acordo com o contexto no qual foram inseridas. "No universal que todos buscamos, a singularidade da experiência brasileira é o elemento central" (ODALIA, 1997:14). Assim, no Império, a abstração e generalidade das leis foram colocadas em questão pela prática do "favor", pela pessoalidade que surge em determinadas relações, prática essa transfigurada hoje no popularmente denominado e criticável "jeitinho brasileiro", ao passo que, na Europa, local onde os princípios de liberdade e igualdade primeiro apareceram, os mesmos foram negados de maneira diversa. Mais uma vez, podemos visualizar que concepções universais sempre adquirem particularidades dependendo da estrutura social, política e econômica onde são inseridas. Não há como desvencilharmos o universal do local, por isso desde já afirmamos que uma Teoria da Constituição única para todos os países não significa o desprezo das peculiaridades de cada qual.
Mas, e para que mais servem as idéias? Em primeiro lugar, cabe dizer que ao serem "importadas" essas concepções passam a fazer parte das pré-compreensões que estão subjacentes ao nosso modo de relacionarmos com as coisas e pessoas, ou seja, passam a fazer parte de nosso "mundo da vida", funcionando as mesmas como padrões normativos até mesmo para criticarmos a "realidade". Só sabemos assim que a escravidão foi uma prática repugnante porque possuímos ideais que são negados pela mesma. Nessa linha, sem a universalidade e generalidade das leis, surgidas na modernidade, quando se admitiu que todos são livres e iguais por nascimento, o tratamento de determinados seres humanos como coisa, como objetos passíveis de serem comercializados, não causaria tanto espanto, na verdade tal tipo de diferenciação foi natural em sociedades, como a grega da Antigüidade, nas quais alguns eram considerados cidadãos e tinham igual direito de participar da vida pública, ao passo que outros, os que não pertenciam àquela comunidade, os que não compartilhavam do modo de vida escolhido, eram relegados a servir os "incluídos", isto é, a trabalhar para que os "melhores" pudessem pensar.
Será, então, que num mundo globalizado como o atual, onde o desenvolvimento tecnológico propiciou uma alteração do espaço e do tempo, reduzindo distâncias e tornando viável o contato imediato entre os pólos opostos do globo, podemos ainda ansiar por padrões normativos exclusivamente brasileiros? Por outro lado, como dissemos acima, para levarmos a sério nossas tradições, nosso contexto histórico, é imprescindível que nos fechemos em nós mesmos, que não nos relacionemos com as outras nações? Conforme já ressaltamos, o perigo que corremos é acabarmos generalizando expectativas a partir das práticas abusivas, como se as mesmas, por configurarem nossa "realidade", não pudessem ser alteradas.
Tal foi o engano de Oliveira Vianna ao criticar o que ele próprio denominou de "idealismo utópico", que seria nada mais do que "todo e qualquer conjuncto(sic) de aspirações políticas em íntimo desaccôrdo(sic) com as condições reaes(sic) e organicas(sic) da sociedade que pretende reger e dirigir" (VIANNA, 1939:10). Para esse pensador, a causa da ineficácia de algumas de nossas Constituições, como a de 1824 ou a de 1891, seria a sua fundamentação em concepções estrangeiras, o que teve origem na educação européia de nossa primeira geração de políticos. Nessa linha, argumentou que só poderíamos ter "fecundos ideais" se os retirássemos da experiência, ou seja, os ideais a serem atingidos deveriam ser ante-visões elaborados a partir da organização concreta da sociedade. Dessa forma, percebe-se que há uma elevação da "realidade" a padrão normativo, perdendo-se com isso grande parte do potencial de questionamento que os ideais podem trazer consigo.
Ocorre que o próprio Oliveira Vianna, ao realizar tal reducionismo empirista, propondo como solução para a ausência de efetividade de nossos documentos constitucionais a sua elaboração a partir de nossas particularidades, ou seja, a resposta seria abandonar o "idealismo utópico" substituindo-o pelo "idealismo orgânico", esqueceu-se que ele próprio se utiliza, ao longo de toda sua obra, do pensamento de autores estrangeiros, como a doutrina Positivista e Empirista de Augusto Comte ou o Organicismo de Spencer.
Se a Oliveira Vianna pode ser creditado o mérito de ter visualizado a força dos contextos, criticando assim aqueles "espiritos(sic) que ainda cultivam a velha crença supersticiosa no poder das formulas(sic) escriptas(sic)" (VIANNA, 1939:111), já que considerava utópico pretender realizar alterações em nossas instituições políticas que não levem em consideração a nossa "realidade", o que, segundo o mesmo, explicaria o fracasso, por exemplo, do Ato Adicional de 12 de agosto de 1834, na medida em que se pretendeu uma maior descentralização em um país onde, de acordo com tal autor, as liberdades individuais são tradicionalmente defendidas pelo Poder Central, a ele porém faltou a consciência de que tradições podem ser refutadas, de que nem sempre o empírico é o que deve ser considerado como verdadeiro e elevado à categoria de um ideal.
Nessa linha, pode-se dizer que a própria aprovação da reforma constitucional em questão demonstra como a tradição centralizadora no Brasil já estava, de certa forma, sendo problematizada, tendo sido a edição do Ato Adicional uma necessária concessão dos conservadores na medida em que nada mais podiam fazer tendo em vista o curso dos acontecimentos, ou seja, a emenda em questão significou "um momento de transação e conciliação entre as elites, para evitar o que ameaçava se transformar em insurreição permanente. Como disse Evaristo na Câmara, foi preciso ‘fazer parar o carro da revolução’." (LIMA apud NOGUEIRA, 2001:66). A conciliação em questão pode ser visualizada pelo próprio hibridismo do Ato Adicional, pois ao mesmo tempo em que propiciou uma maior distribuição espacial do poder, adotou medidas centralizadoras como a criação da Regência Una ou a permanência da indicação dos presidentes das províncias pelo poder central.
Entretanto, se o Ato Adicional de 1834 abrandou a concentração do poder ao criar as Assembléias Legislativas Provinciais, com competências fiscais, legais e administrativas, em substituição aos Conselhos Gerais das Províncias, estes últimos órgãos somente consultivos, cujas sugestões necessitavam de aprovação do Poder Executivo e Legislativo, e ao suprimir o Conselho de Estado, entidade semelhante aos Conselhos Privados da Coroa típicos das monarquias européias, como a inglesa, e que no Brasil funcionou como um reforço do poder absoluto de D. Pedro I, ele não conseguiu barrar o retorno ao status quo advindo com a lei de interpretação, Lei n.º 105, de 12 de maio de 1840. Essa lei retirou as conquistas em autonomia local inseridas na Constituição de 1824 pelo Ato Adicional, tendo também restabelecido o Conselho de Estado, sendo que esse modo de interpretação, ou seja, interpretação autêntica, foi utilizado para praticamente revogar a mencionada emenda constitucional, ou seja, foi criada uma lei ordinária de interpretação que retirou grande parte dos efeitos do anterior Ato Adicional.
Resta então aprofundarmos o significado da edição do mencionado Ato Adicional, pois tal como outras reformas existentes em nossa história, seja em sentido amplo ou apenas jurídico, ele ilustra os vários momentos conciliatórios de nosso processo de luta por maior liberdade e igualdade, que, apesar de demonstrarem um avanço no sentido de uma aprendizagem político-jurídica, já que são realizadas alterações formais que não se caracterizam como meras concessões, mas sim como conquistas, por outro lado revelam uma permanente tentativa de se conter as mudanças estruturais que a própria sociedade requer, ou seja, trata-se de reformas que procuram encobrir as práticas abusivas na medida em que a atenção é destas desviada e dirigida para a elaboração de um novo documento escrito, seja constitucional ou não. É dentro dessa linha de questionamento que perguntamos se a Lei Áurea, Lei n.º 3.335, de 13 de maio de 1888, acabou com a escravidão no Brasil ou se é possível apagar as marcas desse instituto abominável através de um simples decreto, tal como pretendeu o ilustre Rui Barbosa, enquanto Ministro da Fazenda na República Velha, ao editar o interessante Decreto do Esquecimento, mais uma prova de que nossa crença na força dos textos não é um fator recente, ou seja, desde nossos primórdios enquanto comunidade jurídico-política estamos envolvidos pela aura que os documentos escritos emanam, como se esses tudo pudessem por serem obra de indivíduos perfeitos que passaram a ocupar o lugar do "deus dessacralizado", nas palavras de Schmitt, diríamos que "o Deus todo poderoso tornou-se um legislador onipotente" (SCHMITT, 1996:109).
Todos estes exemplos são marcos importantes em nossa reconstrução porque nos permitem ver como não é suficiente mudarmos os documentos constitucionais escritos se as nossas práticas permanecem inalteradas, configurando-se tais reformas como novas formas para o mesmo, ou seja, como "mudanças" que apontam muito mais para a manutenção de determinada estrutura social, na direção do sentido etimológico de tal palavra, do que para a alteração revolucionária da mesma.
Nessa linha, devemos nos lembrar de José Honório Rodrigues, já que para este historiador as reformas em nosso país, entendidas aqui em sentido amplo, como mudanças político-institucionais, e não somente alterações do documento constitucional, sempre representaram uma forma de conciliação entre as forças dominantes para impedir a ocorrência de mudanças profundas na sociedade, por isso tal pensador chega a afirmar que nós nunca vivenciamos uma revolução. Entretanto, este
... velho jogo de querer as reformas, mas não promovê-las, este pensamento de que se desejava a reforma sem revolução, não evita as rebeldias, pois todo o país é sacudido por crises, desordens e agitações violentas. A estrutura econômica permanece a mesma, sobrevivem os restos feudais, as reformas são formais, as oligarquias possuem o Poder, os privilégios continuam e continua o divórcio entre o Poder e a Sociedade. Consegue-se, assim, evitar a Revolução, que promoveria a mudança das relações sociais. (RODRIGUES, 1982:50)
O que devemos ressalvar é que da mesma forma que não se podem realizar alterações na sociedade através da simples edição de leis, pela mesma razão não podemos compartilhar da opinião de que as "elites", aqueles que tradicionalmente exercem o poder em nosso país, conseguirão impedir as mudanças que são buscadas em processos de luta quotidiana por direitos. Nesse sentido, a título ilustrativo do raciocínio nesta parte desenvolvida, podemos dizer que apesar da conciliação política que esteve subjacente à rejeição da proposta de Emenda Constitucional "Dante de Oliveira", esse momento de nossa história foi importante para a ruptura institucional advinda com a Constituição de 1988, na medida em que a grande mobilização do Movimento das Diretas-já foi que legitimou todo o processo constituinte, ou seja, a não aprovação de uma emenda que seria, a princípio, "revolucionária", não impediu que fosse instaurada uma nova ordem jurídica e política que questionou e buscou romper com os fundamentos autoritários do regime constitucional anterior, antes pelo contrário, foi tal rejeição que aguçou nos cidadãos brasileiros o desejo de mudanças e o instigou a participar ativamente da construção do novo ordenamento constitucional.
Além de reformas libertárias que vêem encobrir as práticas abusivas continuístas, tornado-se ineficazes em razão disso, encontramos também em nossa história reformas que, pelas alterações que propõem, representam tentativas de restauração de uma tradicional configuração do poder que vem sendo abalada com o curso do tempo, tal como a Reforma de 1926, proposta pelo Presidente Arthur Bernardes, em pleno Estado de Sítio, com o intuito de fortalecer "o controle autocrático do país pelo Presidente Federal – em três direções: enfraquecendo a autonomia dos Estados; facilitando a aplicação do veto presidencial; e impondo ainda maiores restrições à liberdade do cidadão" (HAMBLOCH, 1981:85). O poder dos Estados-Membros foi diminuído ao se ampliar as hipóteses de intervenção federal e foram concedidas maiores prerrogativas ao Presidente através da permissão do veto parcial, permissão esta que não impediu sua utilização abusiva, seja através de seu uso como mecanismo para arbítrio na área das finanças, já que a não aprovação de lei orçamentária significava a prorrogação da vigência da lei do ano anterior, seja por meio do entendimento de que se poderia simplesmente vetar o "não" presente em uma lei submetida a apreciação, o que mudava radicalmente o conteúdo desta.
Entretanto, é o parágrafo 5.º do artigo 60 e o parágrafo 22 do artigo 72 que melhor demonstram a pretensão, do Chefe de Estado e Governo, de adquirir poderes discricionários, na medida em que se impossibilitou o acesso ao judiciário para se aferir a legalidade de atos como a intervenção federal ou a declaração de Estado de Sítio, e se reduziu o âmbito de abrangência do Habeas Corpus, restringindo-o aos casos de violenta privação da liberdade de locomoção, desconsiderando-se a original "Doutrina Brasileira do HC", a qual possibilitava o impedimento ou reparação de toda agressão ou violência às liberdades individuais, sejam elas quais forem. Todavia, como texto algum é capaz de regular o contexto, resta lembrar que o Supremo Tribunal Federal continuou "pouco a pouco, determinando limites ao total poder discricionário que se atribuira(sic) ao Executivo" (RODRIGUES, 1991:244).
De fato, podemos perceber que, no resgate de fragmentos da história do Pretório Excelso realizado por Lêda Boechat Rodrigues, apesar da Reforma de 1926 ter proibido uma interpretação mais ampla ao instituto do HC, o entendimento mais abrangente sobre as liberdades que constituiriam direito líquido e certo a serem tutelados por meio de Habeas Corpus continuou proeminente no Supremo Tribunal Federal. Até mesmo com relação ao Estado de Sítio, que o parágrafo 5.º do art. 60 da Emenda Constitucional em questão retirava da apreciação do Poder Judiciário, reconheceu o STF sua competência para julgar as medidas tomadas em tal circunstância excepcional, no sentido de averiguar a existência ou não de excessos e decidir pela responsabilidade civil do Estado. Cabe ainda lembrar que o "número de habeas-corpus fôra aumentando muito com o decorrer dos anos e era, em 1930, a espécie judicial mais numerosa, atingindo a casa de quase 24.000 processos originários ou em grau recursal" (RODRIGUES, 1991:245).
Outro exemplo de reforma em nossa história jurídico-política que traz consigo a pretensão de conter as transformações que estavam germinando em nossa sociedade é o "Pacote de Abril" editado pelo Presidente Geisel em 1977. Em síntese, podemos dizer que as emendas 7 e 8 desse ano representam tentativas de controlar o processo de distensão do regime imposto em 1964, processo esse iniciado pelo próprio governo, mas que não pode ser visto como uma atitude benevolente dos então detentores do poder, pois os mesmos foram, de certa forma, pressionados a assim agir em virtude dos vários movimentos reivindicatórios que eclodiram naquele período, contestando o fato da ditadura se auto-intitular como uma democracia. Como movimentos que criticaram o regime em questão podemos citar as várias greves desencadeadas no período, como a dos operários do ABC paulista, da construção civil em Belo Horizonte, de funcionários públicos, médicos, etc; além das demandas formuladas pelos movimentos feministas e manifestações de insatisfação dos favelados diante de serviços públicos inadequados.
Nessa linha de argumentação, conseguimos perceber, aos trabalharmos fragmentos de nosso passado, que os ecos do mesmo estão sempre ressoando no presente, apresentando-se constante em nossa história constitucional a crença nos textos legais, o que se traduz na convicção de que através da aprovação de emendas ao documento constitucional escrito seria possível tanto realizar transformações profundas da sociedade quanto impedi-las, estando subjacente a ambas as pretensões o desconhecimento com relação à força dos contextos, ao poder das tradições que carregamos conosco por sermos seres hermenêuticos, por nos constituírmos em sociedade e não estarmos imunes com relação às experiências vividas, com relação aos encontros e desenganos que nos ensinam a todo tempo, mesmo que não o notemos.
A questão central aqui é que a alteração formal do documento constitucional, em grande parte da nossa história, foi usada para abafar o processo de permanente busca por direitos em curso na sociedade, seja aprovando-se emendas em sentido contrário ao dos movimentos reivindicatórios, seja institucionalizando suas demandas com a conseqüente difusão da convicção de que o objetivo a ser alcançado já teria sido conseguido, não se atentando para o fato de que não é o texto que nos constitui, pois o direito é vida concreta, não se resumindo a uma formalização em um documento escrito. Resta dizer, com Oliveira Vianna, mesmo assumindo uma perspectiva radicalmente contrária no que diz respeito às conseqüências que tal autor atribui a tal constatação, que "o problema da nossa organisação(sic) politica(sic) é muito mais complexo do que parece áquelles(sic) que pensam poder resolve-lo(sic) com simples reformas constitucionaes(sic)" (VIANNA, 1939:111).