Artigo Destaque dos editores

A assistência jurídica gratuita aos pobres nos Estados Unidos

Exibindo página 3 de 4
29/12/2008 às 00:00
Leia nesta página:

4. A Assistência Jurídica em Causas Cíveis

Dois traços marcantes precisam ser lembrados, logo de início, àqueles que buscam ter uma compreensão mais efetiva acerca do sistema norte-americano de assistência jurídica aos pobres em causas não criminais. Diferentemente do que ocorreu na maioria dos países considerados desenvolvidos, especialmente os da Europa Ocidental [80], até o presente, em pleno século XXI, não se reconheceu – seja no âmbito federal, seja no âmbito de qualquer das unidades federativas – como sendo direito do cidadão economicamente desfavorecido o de contar com assistência técnica de um advogado para promover sua representação em Juízo em causas de natureza cível [81]. Tal direito, consoante já explicitado na primeira parte deste capítulo, somente é reconhecido nas causas criminais. Em razão disso emerge o segundo traço marcante acima aludido: embora os Estados Unidos contem hoje com um amplo, complexo e diversificado sistema de assistência jurídica cível para as pessoas pobres, financiado com recursos dos cofres públicos [82], um papel decisivo para garantir efetivo acesso à prestação jurisdicional ainda é deixado sob a responsabilidade ética da classe dos advogados, mediante trabalho voluntário, caritativo, a título pro bono publico. Consideramos que esses traços característicos do sistema de legal aid nos Estados Unidos, por si só, seriam suficientes para que se reconhecesse que a maior potência industrial e econômica do mundo ainda possui um sistema de assistência jurídica (na área cível) típico do que poderíamos chamar de ‘pré-história’ da, assim denominada, ‘primeira onda’ do movimento mundial de acesso à Justiça.

Como salientado, a idéia de igualdade de ricos e pobres no acesso à Justiça era vista como uma garantia meramente formal no Estado de Direito de cunho liberal que fora o paradigma de organização política nos países do Ocidente a partir de fins do século XVIII. Não cabia ao Estado qualquer responsabilidade no sentido de promover ações e políticas para dar efetividade a tal princípio. A questão era deixada inteiramente à consciência ética dos profissionais do Direito, notadamente da classe dos advogados, lastreando-se em práticas de caráter honorífico que remontavam às mais antigas tradições da advocacia, e também nos princípios e valores religiosos do cristianismo. Nesse contexto, a assistência jurídica aos pobres era considerada questão de ‘caridade’, ou, como disse Cappelletti, um "dever moral e meritório do homem piedoso" [83]. Essa fase poderia ser considerada como uma espécie de ‘pré-história’ do movimento mundial de acesso a Justiça. Com efeito, a noção de assistência jurídica aos pobres, como requisito indispensável para a garantia de efetivo acesso igualitário de todos à Justiça, passou por intenso processo evolutivo no últimos dois séculos. Primeiramente mudou o status de mera obrigação ‘moral e honorífica’, para assumir um caráter de dever jurídico imposto pelo Estado como encargo a ser suportado pela classe dos advogados [84]. Posteriormente, passou a ser reconhecida como dever do próprio Estado, que tomou para si o ônus de remunerar os profissionais jurídicos pelos serviços prestados aos pobres, iniciando-se ai, propriamente, o que Mauro Cappelletti chamou de ‘primeira onda’ do acesso à justiça.

Pois bem, no plano normativo-jurídico-constitucional, os Estados Unidos ainda se encontram nesse estágio ‘pré-histórico’ visto que a assistência jurídica aos pobres ainda é tida como mero dever honorífico da classe dos advogados, que atuam pro bono publico quando aceitam patrocinar um cliente em Juízo. Não há, como já foi assinalado, no campo cível, nenhuma lei ou decisão da Suprema Corte [85] reconhecendo como ‘obrigação’ da União ou dos Estados o provimento de assistência jurídica gratuita para os que não puderem arcar com despesas de advogados. Por isso, embora o governo invista, por ano, mais de 900 milhões de dólares [86] para financiar os diversos programas de assistência jurídica na área cível existentes pelo país afora, na medida em que não se reconhece ao cidadão desfavorecido economicamente o ‘direito’ de exigir que o poder público lhe assegure a assistência técnica de um advogado para patrocinar seus interesses em Juízo, todo esse sistema não deixa de se caracterizar por uma dimensão mais de cunho caritativo do que propriamente jurídico [87]. Em última análise, tal como consta de uma decisão judicial do ano de 1965 de uma Corte Federal, nos Estados Unidos a designação de advogado para causas cíveis é "um privilégio e não um direito" [88].

A esse respeito, eis o que afirma Earl Johnson Jr., um dos próceres do movimento de acesso à justiça nos Estados Unidos:

The United States has not even reached the first stage of providing a formal legal guarantee of some form of legal representation, compensated or uncompensated, in most civil cases. England and most other European countries entered this stage a century or more ago. The US has relied on charity – private charity for ninety years and legislative charity for the past thirty-two – to furnish the limited supply of free legal representation available in civil law [89].

O mais grave é que o não reconhecimento do direito de assistência jurídica aos pobres em causas cíveis não consiste em mera questão teórica, de cunho acadêmico que, de qualquer modo, por si só, já poria em cheque os próprios conceitos e fundamentos do modelo político institucional tão orgulhosamente proposto pelos Estados Unidos como paradigma para o mundo. A denegação de assistência jurídica aos pobres para tornar efetivo o acesso à Justiça freqüentemente representa uma denegação de efetividade aos outros direitos tidos como fundamentais e indispensáveis à dignidade da pessoa humana, tais como alimento, moradia, condições humanas de trabalho, saúde, educação, etc.

Apesar da injustificável falha que pesa sobre o sistema de assistência jurídica cível norte-americano, conforme acima explicitado, não se pode deixar de reconhecer que de fato – a despeito de todas as dificuldades conceituais existentes e da ausência de um respaldo normativo mais sólido – nas últimas décadas o país conseguiu estruturar um sofisticado arranjo institucional destinado a amparar muitos de seus cidadãos menos favorecidos na luta pela efetividade do igual acesso de todos à Justiça. Em vários aspectos esse sistema foi capaz de gerar idéias e modelos organizacionais que tiveram grande influência em âmbito internacional, tal como ocorreu com as famosas neighborhood law firms.

Para permitir uma visão mais clara acerca do funcionamento atual do sistema norte-americano de assistência jurídica cível, torna-se imprescindível uma análise na perspectiva histórica, ainda que isto não possa ser feito de modo muito aprofundado dados os limites deste trabalho.

4.1. A omissão estatal e o papel decisivo das organizações da sociedade civil na formatação do modelo de assistência jurídica em causa cíveis

O direito norte-americano tem suas raízes no direito inglês que, muito remotamente [90], já reconhecia a necessidade de se garantir às pessoas pobres assistência profissional de advogado para patrocinar seus interesses em litígios judiciais (não só os de natureza penal, mas também cível). Mesmo assim, como já assinalado na parte inicial deste capítulo, os artífices que moldaram a estrutura jurídico-política do novo país nascente não estabeleceram tal garantia como requisito necessário para a efetiva igualdade nos procedimentos judiciais mais relevantes para os pobres. Seja no primitivo texto constitucional de 1787, ou nas emendas que lhe seguiram, em especial a Declaração de Direitos de 1791, não há nenhum dispositivo assegurando direito de assistência jurídica aos pobres em procedimentos cíveis.

Com esse quadro jurídico-político como pano de fundo, transcorreu todo o século XIX – e quase todo o século XX – sem que nenhuma iniciativa oficial fosse tomada no sentido de prover algum serviço público destinado a prestar assistência jurídica aos cidadãos sem condições econômicas para custear tal despesa. Isto somente foi ocorrer no ano de 1964, quando se lançou as bases de um programa de serviços jurídicos em favor dos pobres financiado pelo governo federal. Tal programa se tornou o eixo principal de um sistema que – por fatores diversos, mas principalmente pela ausência de respaldo normativo-constitucional consagrando o direito de assistência jurídica – acabou vindo a assumir contornos bastante complexos e intricados, como se procurará evidenciar mais adiante.

A inércia de quase duzentos anos por parte do governo federal e dos governos estaduais (que durou até os anos sessenta do século XX), não impediu, entretanto, o surgimento de diversas iniciativas da sociedade civil, com o apoio da entidade representativa da classe dos advogados; essas iniciativas foram determinantes na configuração do modelo hoje existente no país. Assim, ainda no século XIX, mais precisamente no ano de 1876, surgia em Nova York a primeira entidade de assistência jurídica civil dos Estados Unidos, criada pela ‘Sociedade Germânica’. O objetivo inicial era o de ajudar e dar proteção jurídica aos imigrantes alemães que chegavam ao país, os quais, em razão da pobreza, das dificuldades de comunicação e de adaptação à nova cultura ficavam vulneráveis a diversas formas de exploração. Tal entidade, alguns anos depois, teve ampliado o universo de público destinatário de seus serviços, não mais se restringindo aos de origem tedesca, passando a denominar-se ‘Legal Aid Society’ de Nova York. Teve um progressivo desenvolvimento no correr dos anos e tornou-se paradigma para uma série de organizações que surgiram em diversas outras grandes cidades norte-americanas já nas primeiras décadas do século XX. Tipicamente essas organizações eram entidades privadas, sem qualquer vinculação oficial com agências governamentais. Os fundos para seu funcionamento provinham essencialmente de doações de empresários e grandes escritórios de advocacia da cidade ou da região a que tais entidades serviam.

Um importante marco na história do chamado ‘legal aid movement´ nos Estados Unidos, já assinalado na parte inicial deste capítulo, foi o lançamento da obra ‘Justice and the Poor’, em 1919, por Reginald Heber Smith. Em seu livro Smith denunciou vigorosamente a iniqüidade decorrente da exclusão quase total de grande parte do povo norte-americano de efetivo acesso ao sistema judicial do país. Isto causou grande impacto na comunidade jurídica do norte-americana. Uma das propostas de Smith era a criação de um organismo nacional capaz de articular e racionalizar o trabalho que vinha sendo desenvolvido de modo difuso pelas pouco mais de quarenta ‘legal aid societies’ existentes naquela época. Essa proposta se tornou realidade em 1923, quando foi criada a National Association of Legal Aid Organizations [91], que mais tarde veio a se tornar a NLADA – National Legal Aid and Defender Association, ainda hoje o mais importante organismo representativo das entidades que prestam serviços de assistência jurídica aos pobres nos Estados Unidos [92], com a peculiaridade de que congrega as duas vertentes do sistema nacional que, melhor dizendo, se traduz efetivamente em ‘dois’ sistemas distintos: o cível e o criminal [93].

O desafio proposto na obra de Reginald Smith, embora tenha causado muita controvérsia no seio da comunidade jurídica, despertou a consciência de muitos de seus membros que se mobilizaram num esforço para ampliar as possibilidades de garantia de efetivo acesso à Justiça aos pobres. Todavia muitas eram as dificuldades para o alcance de resultados mais efetivos por intermédio dessas Sociedades de Assistência Legal. Isto foi bem pontuado por Alan Houseman e Linda Perle:

In part, because of inadequate resources and impossibly large number of eligible clients, legal aid programs generally gave perfunctory service to a high volume of clients. Legal Aid lawyers and volunteers rarely went to court for their clients. Appeals on behalf of legal aid clients were virtually nonexistent. No one providing legal aid contemplated using administrative representation, lobbying or community legal education to remedy client’s problems. As a result, the legal aid program provided little real benefit to most of individual clients it served and no lasting effect on the client population as a whole. [94]

Um forte impulso na criação de novas ‘Legal Aid Societies’ocorreu após a II Guerra Mundial, notadamente nos anos cinqüenta. Com efeito, o número de 41 entidades no final dos anos vinte, que passou para cerca de 70 no final dos anos quarenta, multiplicou-se para mais de 200 no início dos anos sessenta. Isto ocorreu não propriamente por um aumento da consciência de responsabilidade profissional e cívica da classe dos advogados. Resultou, sobretudo, do fato de que no ano de 1949 foi aprovada a Lei que instituiu o novo sistema britânico de assistência jurídica. E a classe dos advogados queria evitar a adoção, nos EUA, de qualquer proposta similar, que eles entendiam como uma espécie de ‘socialização’ da profissão da advocacia, consoante já noticiado na parte inicial deste capítulo.

Apesar do incremento das ações por parte das entidades representativas da classe dos advogados, mencionadas no parágrafo anterior, um novo modelo de assistência jurídica na área cível começava a despontar no início dos anos sessenta, em contraponto ao modelo tradicional das ‘sociedades de assistência legal’. Sob marcante influência dos esforços reformistas do Direito capitaneados por organizações como a National Association for the Advancement of Colored People – NAACP e a American Civil Liberties Union – ACLU, diversas iniciativas e projetos experimentais foram implantados com o objetivo de utilizar estratégias planejadas de contencioso judicial (os test cases e class actions) para produzir mudanças no ordenamento jurídico [95]. Outra tendência que se verificava nesse momento era a de fomentar a abertura de escritórios jurídicos populares localizados nas periferias, mais próximos do público alvo, sendo que as sociedades de ‘legal aid’ até então existentes normalmente costumavam funcionar nas regiões centrais das cidades, próximas dos escritórios tradicionais de advocacia e, especialmente, dos prédios onde estavam instalados os órgãos judiciais. Surgia assim o modelo das chamadas neighborhood law firms, em boa parte baseadas nos experimentos e nas reflexões teóricas de Edgar e Jean Cahn [96].

O quadrante histórico-político dos primeiros anos da década dos sessenta do século XX nos Estados Unidos era plenamente favorável ao enfrentamento dos diversos problemas que afetavam as classes mais pobres da população. Todas as forças vivas da sociedade foram conclamadas pelo governo a unir esforços e trabalhar ‘proativamente’ em prol da melhoria das condições de vida dos que estavam à margem do sistema social. Estava lançada a ‘Guerra contra a Pobreza’. Num célebre discurso pronunciado em junho de 1964 na Conferência sobre ‘Law and Poverty’, promovida pelo governo federal em Washington, D.C., o Procurador Geral (Attorney General of U.S.) Nicholas Katzenbach descreveu com precisão as expectativas dos dirigentes da nação a respeito do papel que poderia ser cumprido pelos serviços de assistência jurídica nesse projeto. Era preciso algo novo, sem descartar o mérito de tudo o que já existia. Eis um pequeno trecho do referido discurso, onde isso fica bem evidenciado:

"There has been long and devoted service to the legal problems of the poor by legal aid societies and public defenders in many cities. But, without disrespect to this important work, we cannot translate our new concern (for the poor) into successful action simply by providing more of the same. There must be new techniques, new services, and new forms of interprofessional cooperation to match our new interest… There are signs, too, that a new breed of lawyers is emerging, dedicated to using the law as an instrument of orderly and constructive social change". [97]

O governo federal, através do então recém criado ‘Office of Economic Opportunity – OEO’, resolveu subsidiar programas de assistência jurídica na área cível. Na disputa pelos recursos financeiros que passariam a ser direcionados para esses novos programas que seriam subsidiados pelo governo federal surgiram, como era de se esperar, grandes controvérsias entre os defensores do modelo tradicional de prestação de assistência jurídica, que se traduzia basicamente na antiga estrutura das ‘Legal Aid Societies’ existentes, e os que pugnavam por um novo modelo mais ‘agressivo’ de luta por um direito reformista [98]. Para neutralizar as resistências ao novo programa [99], e garantir o importante apoio das organizações de classe dos advogados, foi estabelecido um consenso no sentido de que as antigas sociedades de assistência legal não seriam impedidas de participar do novo programa. Outrossim, estabeleceu-se que os proponentes de projetos que se candidatassem ao recebimento de verbas federais deveriam contar com o respaldo da ordem dos advogados do local onde iriam operar. Isto permitiu o necessário suporte político institucional para a consolidação do novo programa vinculado ao OEO. Sem o apoio da ABA – American Bar Association certamente esse programa federal de financiamento de serviços jurídicos para os pobres não seguiria adiante [100].

Assim, o formato do programa acima referido, implementado pelo Governo Federal norte-americano durante a década dos sessenta, foi, não se pode negar, fruto de uma engenhosa capacidade de conjugação do modelo dito tradicional (caracterizado pelas ‘legal aid societies’), cujas origens remontavam a quase um século, e que já estava sedimentado na cultura jurídica do país, com o novo modelo de vanguarda (caracterizado pelas ‘neighborhood law firms’), concebido a partir de um ativismo social que deitava suas raízes em reflexões teóricas e ideológicas comprometidas com a mudança do status quo da situação de pobreza enfrentada por grande parte da população norte-americana.

Alguns aspectos eram considerados fundamentais para conferir um novo perfil aos projetos de serviços de assistência jurídica que deveriam ser implementados com os recursos provenientes do governo federal, dentro do contexto da ‘guerra contra a pobreza’. Primeiramente uma noção de responsabilidade em face da população pobre vista não na perspectiva individual, mas coletiva; a idéia era de o que se denominava ‘client community’ e não de um mero grupo justaposto de indivíduos que, por acaso, tinham em comum o fato de serem indigentes. Um outro aspecto, bastante polêmico, era a proposta de um protagonismo dos clientes no controle das decisões: os clientes é que deveriam determinar qual o ‘uso’ seria feito dos advogados que tinham a sua disposição. O objetivo dos serviços deveria ser prioritariamente o de suprir a histórica falta de efetividade de direitos – especialmente os de cunho social e econômico – promovendo quando necessário medidas de ‘law reform’. Um outro aspecto de diferenciação com os serviços até então existentes era o fato de se pautarem não tanto pela demanda que fosse trazida pelos destinatários, mas sim por uma postura ‘proativa’ de se antecipar na descoberta e no atendimento das efetivas necessidades, pois muitas vezes nem mesmo os pobres tinham consciência a respeito de quais eram as suas reais necessidades que poderiam ser supridas através das vias judiciais. Enfim, sustentava-se a que os novos projetos deveriam ser capazes de prestar "a full range of services and advocacy tool", ou seja, um rol de serviços jurídicos da mesma amplitude daqueles que os advogados particulares normalmente prestavam para as classes dominantes [101]. Para o alcance desses objetivos, prevaleceu o modelo de entidades sem fins lucrativos, de natureza jurídica privada, que mantinham advogados empregados – em sua maioria trabalhando sob regime de tempo contínuo – ou seja ‘staff attorneys working full time’ e não o modelo de advogados privados participando de programas de judicare [102]. Também faziam parte integrante do novo sistema em implantação os chamados ‘back up centers’, entidades que atuavam exclusivamente na advocacia recursal (‘appellate litigation’) e na realização de estudos e pesquisas destinados a fornecer apoio à rede de prestadores diretos dos serviços de assistência jurídica aos pobres.

Em poucos anos o programa federal se expandiu enormemente atingindo mais de 300 agências ou projetos subsidiados no ano de 1967 [103]. O sucesso na obtenção dos resultados, especialmente no campo de ‘law reform’, começou logo a incomodar, gerando sérios embates com políticos e grupos de advogados que tinham algum tipo de interesses contrariados. Isto ocorreu, por exemplo, na Califórnia, onde o então Governador Ronald Reagan tentou vetar a destinação de recursos para um dos projetos de assistência jurídica que vinha sendo financiado pelo governo federal. Também através do Senador George Murphy, da Califórnia, já havia sido tentada anteriormente a aprovação, no Congresso Nacional, de emendas à lei que regia o funcionamento do OEO, restringindo sua atuação. A primeira tentativa ocorreu em 1967, e tinha como objetivo o de proibir as entidades afiliadas ao programa de assistência jurídica (o Legal Services Program) do governo federal de ajuizar ações contra quaisquer agências públicas da União Federal, dos Estados ou de qualquer subdivisão política a eles vinculadas. Essa emenda não chegou a ser aprovada, mas ficava patente que muitas dificuldades ainda estavam para surgir [104]. Paralelamente, o novo governo republicano que ascendera à Casa Branca passou a tomar uma série de medidas com o intuito de enfraquecer as ações do ‘Office of Economic Opportunities – OEO’, do qual o programa de assistência jurídica aos pobres dependia diretamente.

4.2. A criação da Legal Services Corporation e sua missão como órgão estatal de financiamento e controle do sistema de assistência jurídica em causas cíveis

Esses embates políticos no Congresso Nacional evidenciaram a fragilidade do modelo institucional em vigor despertando a consciência de que seria necessário um novo embasamento normativo capaz de conferir maior estabilidade para assegurar a continuidade do programa federal de assistência jurídica. Estudos foram realizados propondo a apresentação de projeto de lei para criar uma entidade independente, sem fins lucrativos, à qual seriam, anualmente, destinados recursos orçamentários pelo Congresso Nacional para serem aplicados no financiamento dos serviços de assistência jurídica na área cível. Tal entidade deveria ser "imune às pressões políticas... e parte permanente do sistema de Justiça", como reconhecia o próprio Presidente da República na época [105]. Depois de idas-e-vindas no Congresso Nacional nos primeiros anos da década dos setenta, em 25 de Julho de 1974 foi criada, através da Lei nº 93-355 sancionada pelo Presidente Nixon, uma entidade que ficaria encarregada de gerir o programa federal de assistência jurídica na área cível. Foi um dos últimos atos de Nixon antes de renunciar do cargo de Presidente da República. Esta lei, denominada de Legal Services Corporation Act, definiu mais precisamente a natureza jurídica da entidade que estava sendo criada estabelecendo o seguinte:

"Sec. 1003. ESTABLISHMENT OF CORPORATION

(a) There is established in the District of Columbia a private nonmember ship nonprofit corporation, which shall be known as the Legal Services Corporation, for the purpose of providing financial support for legal assistance in noncriminal proceedings or matters to persons financially unable to afford legal assistance."(grifamos) [106]

Do teor desse dispositivo, verifica-se que a Legal Services Corporation, é entidade de direito privado (ou seja, embora criada pelo governo, não é um órgão integrante da administração direta), de natureza ‘fundacional’ (posto que, como acentua a palavra ‘nonmembership’, não é constituída de sócios ou membros, mas sim de um patrimônio afetado especificamente ao cumprimento de sua missão legal, nos moldes do que no Brasil corresponderia a uma fundação pública de direito privado ou mesmo a uma autarquia), sem fins lucrativos (no que se diferencia de outros entes integrantes da administração indireta que atuam no mercado, e auferem lucros), estando inclusive imune de tributos, como expressamente estabelecido na alínea ‘c’ desse mesmo dispositivo.

Parece oportuno reproduzir aqui a linha de fundamentação expressamente declarada pelo Congresso Nacional para justificar a criação da Legal Services Corporation (ou LSC, como doravante se mencionará). Isto porque, como foi dito anteriormente, embora os Estados Unidos contem com um complexo e intricado sistema destinado à prestação de serviços de assistência jurídica aos pobres, sistema esse cujo funcionamento depende em grande medida de expressiva contribuição de recursos financeiros provenientes dos cofres públicos da União, através da LSC, em nenhum momento a lei que dá respaldo federal a tal sistema reconhece que tais serviços sejam um ‘direito’ do cidadão. Como se verá na fundamentação abaixo transcrita, o que se reconhece é apenas que tais serviços são "necessários" e importantes; mas em nenhum momento se admite que sejam ‘direito’. Vejamos o que diz a respeito a referida Lei:

"Sec. 1001. The Congress finds and declares that

1.there is a need to provide equal access to the system of justice in our Nation for individual who seek redress of grievances;

2.there is a need to provide high quality legal assistance to those who would be otherwise unable to afford adequate legal counsel and to continue the present vital legal services program;

3.providing legal assistance to those who face an economic barrier to adequate counsel will serve best the ends of justice and assist in improving opportunities for low-income persons consistent with the purposes of this Act;

4.for many of our citizens, the availability of legal services has reaffirmed faith in our government of laws;

5.to preserve its strength, the legal services program must be kept free from influence of or use by it of political pressures; and

6.Attorneys providing legal assistance must have full freedom to protect the best interest of their clients in keeping with the Code of Professional Responsibility, the Cannons of Ethics, and the high standards of the legal profession." [107]

A Lei nº 93-355 que criou a LSC disciplinou expressamente o modo pelo qual a entidade deveria ser gerida: foi criado um Conselho de Diretores [108] composto de 11 membros indicados pelo Presidente da República e aprovados pelo Senado, observado o limite máximo de 6 membros integrantes de um mesmo partido político. Isto foi determinado para evitar a ‘partidarização’ das ações a serem implementadas pela LSC [109]. Também foi determinado que dentre os membros do Conselho, a maioria absoluta deve ser de advogados devidamente licenciados para a prática da profissão perante a Suprema Corte do respectivo Estado de origem; determinou-se ainda a proibição de que qualquer dos membros indicados seja servidor público federal.

Após uma demora de quase um ano para a formação do primeiro Conselho Diretor da LSC, em 14 de julho de 1975 seus membros foram devidamente empossados. Este primeiro Conselho contava com democratas e republicanos dentre seus integrantes, embora houvesse uma sintonia de todos quanto às finalidades que deveriam ser perseguidas pelo programa de assistência jurídica subsidiado pelo governo federal. Isto permitiu que o modelo de organização e prestação de serviços de assistência jurídica que havia sido estruturado na década precedente (entre 1964 e 1974, durante o período em que esteve vinculado ao Office of Economic Opportunity) fosse quase que integralmente mantido pelo Conselho de Diretores da LSC. Assim, os esforços iniciais puderam ser concentrados na estruturação da nova entidade, especialmente a formação de um corpo de funcionários e elaboração de normas regulamentares e rotinas de trabalho necessárias para o pleno cumprimento de sua missão estabelecida pela Lei 93-355, de 1974.

O clima político favorável estabelecido pelo novo governo democrata, que ascendeu ao poder após a queda de Nixon, permitiu um expressivo incremento do volume de recursos destinados aos programas de assistência jurídica, passando seu orçamento anual de um valor de cerca de 70 milhões de dólares em 1975 para mais de 320 milhões de dólares em 1981 [110]. Naquele ano, a rede de entidades que recebiam verba da LSC atingiu o número recorde de 325, com 1450 escritórios e mais de 6000 advogados, espalhados por todos os cinqüenta Estados da federação, além do Distrito de Colúmbia (Washington), Porto Rico, Ilhas Virgens, Micronésia e Guam. Como registrado no Relatório Anual da LSC do ano de 1981, em todos os Condados dos Estados Unidos as pessoas pobres passaram a dispor de efetivo acesso a programas de assistência jurídica gratuita; naquele ano de 1981 foi atingida a meta do "acesso mínimo" que fora estabelecida, alcançando-se a média de dois advogados para cada grupo de 10.000 pessoas pobres em todo o país [111]. Esta foi a fase áurea da história dos serviços jurídicos para os pobres nos Estados Unidos.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Apesar dessa significativa expansão dos recursos públicos aplicados no programa federal de ‘legal aid’, a LSC jamais deixou de apoiar e estimular o envolvimento dos advogados privados no esforço de garantir igualdade no acesso à Justiça para todos, sobretudo através de engajamento em prestação de serviços jurídicos a título pro bono publico. Esse trabalho voluntário e caritativo dos advogados sempre foi considerado de grande importância para suprir, ou eventualmente complementar, deficiências circunstanciais do programa mantido pelas entidades governamentais.

Após o período de grande ascensão – que teve seu cume, em termos orçamentários, no ano de 1981 – o programa federal de assistência jurídica iniciou uma nova fase de crise que acabou vindo a comprometer seriamente a continuidade de inúmeros projetos pelo país afora. A eleição, em 1980, de um histórico o ferrenho opositor do programa federal de ‘legal aid’ para a Presidência da República, o republicano Ronald Reagan – ex-governador da Califórnia - indicava perspectivas sombrias, com risco efetivo de total extinção da LSC. Já no ano de 1982, por pressão do Poder Executivo, o Congresso Nacional fez um corte de 25% no orçamento da entidade. Isso provocou o fechamento de inúmeros escritórios pelo país afora, demissão de muitos advogados e, conseqüentemente, a perda significativa do nível de qualidade dos serviços prestados. Foram também estabelecidas várias restrições legais no rol de serviços que podiam ser prestados pelas entidades subsidiadas pela LSC.

Havia um propósito não explícito de se modificar totalmente a estrutura do sistema em vigor, passando-se para o modelo de judicare, em que a prestação dos serviços seria feita por advogados particulares avulsos e não mais pelos advogados assalariados, dedicados integral e exclusivamente aos serviços de ‘legal aid’; a ênfase deveria passar a ser focada apenas nas questões estritamente de interesse individual, cessando toda espécie de trabalho social voltado para a defesa dos interesses coletivos da classe pobre. A hostilidade chegou a tal ponto que foi contratado um consultor para elaborar um parecer sustentando a inconstitucionalidade da LSC.

O clima hostil, por parte do Poder Executivo e dos novos gestores da LSC nomeados pelo Presidente Reagan, contra o sistema então em funcionamento começou a encontrar resistência mais firme no Congresso norte-americano a partir de meados dos anos oitenta. Firmou-se, então, uma base parlamentar de sustentação bipartidária para garantir a continuidade do programa federal de assistência jurídica. Também a American Bar Association assumiu uma posição decisiva de apoio à manutenção do modelo de assistência jurídica existente.

A crise no financiamento do programa federal de assistência jurídica em causas cíveis, verificada nos anos oitenta, suscitou a criatividade dos integrantes da comunidade jurídica no sentido de buscar novas fontes de financiamento, de modo a não ficar inteiramente dependente das oscilações que viessem ocorrer no quadro político nacional. Dentre essas iniciativas, a mais bem sucedida foi a captação de receitas do IOLTA – Interest on Lawyer Trust Account – no âmbito dos Estados para apoio aos programas regionais/locais de ‘legal aid’. A obtenção dessa nova fonte de recursos ocorre do modo adiante explicitado: todas as quantias recebidas pelos advogados de seus clientes para o custeio de despesas relacionadas com serviços de advocacia devem obrigatoriamente ser depositadas em contas bancárias especificamente criadas para esse fim; por determinação legal no âmbito dos Estados, os juros pagos pelos bancos que mantém essas contas passaram, então, a ser revertidos para um fundo destinado a financiar serviços de assistência jurídica às pessoas pobres. Isto é o que se denomina de IOLTA, sigla formada pelas iniciais da expressão em inglês: Interest on Lawyer Trust Account [112], que aos poucos se tornou a segunda maior fonte de financiamento para as entidades que antes dependiam quase que exclusivamente das verbas federais repassadas pela LSC.

No final da década dos oitenta, com a eleição de George Bush (pai) para a Presidência da República, o clima de hostilidade contra o programa federal de assistência jurídica começou a se abrandar. As esperanças de retomada do processo interrompido em 1982 se reacenderam com a eleição de Bill Clinton, em 1993. Os ventos favoráveis representados pela maioria democrata no Congresso geraram a expectativa de que seria possível reestruturar a Legal Services Corporation, atualizando a legislação que lhe dava suporte. Entretanto, com as eleições legislativas de 1994 um novo cenário sombrio se configurou para os serviços de assistência jurídica financiados pelo governo federal. Alguns parlamentares republicanos que assumiram posição de liderança no Congresso, especialmente na Câmara de Deputados, voltaram a defender a idéia de promover a completa extinção da LSC. O orçamento previsto para 1996 sofreu redução de um terço em seu valor nominal. Apesar disso, a bancada parlamentar bipartidária que dava sustentação à continuidade do programa federal de assistência jurídica ainda subsistia. Surgiram, porém, propostas no sentido de se efetivar mudanças no sistema até então implantado, estabelecendo-se a obrigatoriedade de ‘licitação’ para distribuir os recursos disponíveis entre as entidades prestadoras de serviço, inclusive para renovação dos subsídios das entidades já credenciadas [113].

4.3. As recentes transformações do sistema de assistência jurídica em causas cíveis e as perspectivas para o futuro

Embora não tenha ocorrido – como chegou a ser cogitado – a eliminação do programa federal de assistência jurídica na área cível, nem a extinção da Legal Services Corporation, o fato é que a conjuntura política do Legislativo Federal acarretou uma profunda alteração no perfil desse programa, a partir de 1996. Como destaca Alan Houseman e Linda Perle:

"More fundamentally, the Congressional majority was determined to redefine the role of federally funded legal services by refocusing legal services advocacy away from law reform, lobbying, policy advocacy, and impact litigation and toward basic representation of individual clients. Congress set out to accomplish this goal by restricting the broad range of activities that programs had engaged in since the early days of OEO, many of which had been mandated in the past." [114]

As reformas do ano de 1996 representaram, assim, um completo redimensionamento do sistema de assistência jurídica civil financiado com recursos públicos. Perdeu força a peculiaridade que distinguia o sistema, tal como fora concebido nos anos sessenta, de conciliar a defesa, dita ‘tradicional’, dos interesses individuais dos clientes, na base do ‘caso-a-caso’, com uma atuação mais orgânica ou sistêmica, de enfrentamento – mediante judicialização – das questões estruturais que agravam o quadro de pobreza.

Dentre as restrições estabelecidas na reforma de 1996 [115], que subsistem até o presente, cabe destacar: a proibição de prestar serviços a certas categorias de clientes [116] e as limitações nas modalidades de atuação permitidas às entidades vinculadas à LSC como, por exemplo, a proibição de participarem de programas de ‘class actions’ e de outras atividades similares ligadas diretamente à postura proativa de busca de medidas de impacto coletivo, para a reforma do direito em prol das classes menos favorecidas economicamente [117]. Outra séria restrição estabelecida consistiu na proibição de recebimento de honorários advocatícios por parte das entidades responsáveis por programas de ‘legal aid´ subsidiado pela LSC [118], vedando-se inclusive a aceitação de causas do tipo denominado ‘fee generating cases’, em que há a possibilidade de algum advogado particular assumir a representação aceitando ser remunerado, ao final, por honorários de resultado. E, mesmo que a entidade subsidiada pela LSC disponha de outras fontes de financiamento para o custeio dessas atividades proibidas pelas novas regras do governo federal, somente poderá fazê-lo se abdicar totalmente das verbas repassadas pela LSC [119]. Esse quadro hostil levou efetivamente muitas entidades a desistirem de receber subsídios federais da LSC, para não verem comprometida sua autonomia e independência que lhes permita livremente prestar a mais ampla e completa assistência jurídica cabível em prol dos que dela necessitam [120].

Vale notar que, além dessas restrições acima mencionadas, no correr dos anos inúmeras outras limitações já vinham sendo impostas relativamente à atuação das entidades vinculadas ao programa federal de assistência jurídica. Em 1978, por exemplo, haviam sido estabelecidas regras proibindo qualquer envolvimento dos advogados empregados nas entidades que prestam o serviço de ‘legal aid’ com atuação político partidária [121].

Enfim, apesar das críticas e protestos veementes dos que consideram absurdas e injustificáveis essas limitações impostas pelo Congresso norte-americano na esfera de atuação das entidades subsidiadas pela LSC, pode-se dizer que há um consenso no seio da própria comunidade jurídica envolvida com os programas de assistência jurídica aos pobres no sentido de que esse quadro de restrições dificilmente será revisto no futuro próximo.

É inequívoco que o novo cenário que se configurou a partir das reformas de 1996 provocou uma transformação paulatina no sistema norte-americano de assistência jurídica civil [122], em que o protagonismo do governo federal foi cada vez mais cedendo lugar a uma nova conjuntura, na qual diversos atores coadjuvantes passaram a desempenhar papel decisivo. Se o quadro já era intricado e complexo anteriormente, essa complexidade se tornou ainda maior, na medida em que a tendência tem sido no sentido de fomentar uma nova estruturação do sistema não mais em âmbito nacional, mas no âmbito de cada um dos Estados da Federação, mais ou menos nos mesmos moldes do que já ocorre no sistema de assistência jurídica na área criminal. Essa tendência tem encontrado o apoio não apenas da própria Legal Services Corporation, mas também de outras organizações-chave do sistema, como é o caso da NLADA, do CLASP [123], e da ABA. O novo cenário é descrito com clareza por Alan Houseman e Linda Perle:

"The state planning initiative is already fundamentally changing how civil legal assistance is organized in this country. Instead of a diverse group of separate, locally controlled, and fully independent LSC-funded programs, loosely linked by a network of state and national support centers, each state is now attempting to develop a unified state justice system that includes LSC and non-LSC providers, law schools, pro bono programs, other human services providers, and key elements of the private bar and the state judicial system, working in close collaboration to provide a full range of legal services throughout the state. Instead of a philosophy of local control, programs have been urged to think in terms of collective responsibility for the delivery of legal services in each state. The focus is no longer on what an individual program can do to serve the clients within its service area, but on what a state justice community can do to provide equal access to justice to all of the eligible clients within the state." [124]

Assim, nos últimos anos verificou-se uma rápida expansão do número de estruturas formais, no âmbito dos diversos Estados norte-americanos, criadas expressamente com o objetivo de estabelecer sistemas orgânicos e integrados de assistência jurídica a pessoas de baixa renda [125], em questões jurídicas de natureza não criminal. Essas estruturas formais, normalmente denominadas de "Comissões de Acesso à Justiça", congregam um amplo espectro de entidades incluindo representantes do Poder Judiciário, da Ordem dos Advogados (as Bar Associations), das Faculdades de Direito e da comunidade regional dos prestadores de serviços jurídicos (tanto os subsidiados pela LSC quanto os ‘independentes’), além de outros representantes da sociedade civil em geral. Segundo relatório publicado em maio de 2005 [126], tais comissões já estavam em pleno funcionamento em dezesseis dos cinqüenta Estados norte-americanos, sendo que em três outros os respectivos projetos de criação estavam prestes a serem aprovados. Esse mesmo relatório informa que em outros dezoito Estados existiam outros tipos de estruturas que estariam formalmente vinculadas às Bar Associations (Ordens dos Advogados) das respectivas regiões, embora sejam bastante similares às "Comissões de Acesso à Justiça"; todas essas comissões estariam também empenhadas no fortalecimento de um sistema estadual capaz de integrar e articular os diversos organismos que atuam na prestação de serviços jurídicos às pessoas de baixa renda. Em outros dez Estados norte-americanos existem igualmente, segundo o citado Relatório, estruturas formais variadas que também desempenham papel de liderança na integração e articulação das diversas iniciativas, congregando esforços para fomentar a complementaridade e a harmonia entre as instituições que atuam no campo da assistência jurídica cível em favor dos pobres. Isto foi o que pudemos constatar, por exemplo, no Estado de Maryland, onde tivemos oportunidade de realizar parte das pesquisas de campo que dão base ao presente trabalho.

Tem havido consenso entre os que militam nos diversos programas de assistência jurídica cível que um dos maiores desafios a serem superados para garantir a expansão do acesso igualitário de todos à Justiça é a falta de conscientização do público, dos políticos e até de integrantes das profissões forenses a respeito das necessidades jurídicas das pessoas de baixa renda que não são adequadamente atendidas no atual sistema. Trata-se de verdadeira ‘denegação’ de Justiça, já diagnosticada há quase cem anos na célebre obra de Reginald Smith, mencionada no início deste capítulo. Assim um esforço primordial que tem sido enfrentado no âmbito dos Estados consiste em despertar essa consciência do público através de estudos, campanhas e eventos, especialmente com o objetivo de produzir impacto na mídia. Outro esforço considerado de importância fundamental é no sentido de incrementar as fontes de financiamento para garantir o funcionamento e a expansão dos serviços de assistência jurídica já existentes, de modo a assegurar o menor grau possível de dependência dos recursos provenientes do governo federal. Também têm sido promovidos esforços no sentido de buscar, de maneira criativa, a simplificação dos procedimentos e formalidades judiciais, sobretudo com o uso de recursos tecnológicos, de modo a facilitar e estimular a atuação dos litigantes em causa própria, sem necessidade de representação e assistência por advogado. Por fim, diante das limitações financeiras, e da ausência de norma ou de decisão judicial reconhecendo como obrigação do Estado a garantia do direito de representação por advogado, os norte-americanos ainda não podem prescindir de apelar ao sentimento de filantropia dos advogados privados no sentido de se engajarem na prestação gratuita de serviços jurídicos aos pobres, a título pro bono publico.

De acordo com Alan Houseman e Linda Perle, algumas das marcas que caracterizam o novo formato de base estadual do sistema de prestação de assistência jurídica são as seguintes:

"capacity for state-level advocacy; a single point of entry for all clients into the legal services system through a centralized telephone intake system; integration of LSC and non-LSC legal services providers; equitable allocation of resources among providers and geographic areas in the state; representation of low-income clients in all forums; and access to a full range of legal services, regardless of where the clients live, the language they speak, or the ethnic or cultural group with which they identify." [127]

Afora esses traços marcantes, um fenômeno bastante peculiar tem sido a tendência no sentido de estimular a fusão de entidades de pequeno porte que atuam na prestação de serviços de assistência jurídica, entre si ou com outros organismos de maior porte, com o objetivo de consolidar estruturas de maior abrangência, de âmbito regional ou até mesmo de âmbito estadual; isto porque há um entendimento de que os programas com estrutura de maior porte são capazes de apresentar maior eficiência pela possibilidade de otimizar o emprego dos escassos recursos disponíveis, evitando superposição de atividades e duplicidade de esforços em muitas áreas. Assim, de certo modo perde força o modelo centrado nos escritórios jurídicos de bairro – neighborhood law offices – isolados e autônomos entre si. Mesmo que a filosofia de trabalho e atuação desses organismos – caracterizada pelo envolvimento direto com as comunidades destinatárias dos serviços na definição de prioridades e estratégias de ação – não esteja sendo posta em cheque, é preciso que tais escritórios busquem atuar de modo mais integrado com os demais programas, o que é necessário para provocar a maximização da capacidade de prestar a assistência jurídica aos que necessitam.

Em suma, concluído esse percurso evolutivo histórico até chegarmos ao quadro que está em vias de se configurar na atualidade, fica cada vez mais patente a complexidade que caracteriza os programas de assistência jurídica cível aos pobres nos Estados Unidos. Em comunicação proferida durante uma audiência pública promovida pela ABA no início de dezembro de 2004, Alan Houseman, Diretor Executivo do Center for Law and Social Policy - CLASP, traçou um quadro preciso dessa complexidade do sistema:

"Our civil legal system, unlike those in virtually all other advanced democracies, is a highly decentralized system that provides grants to independent providers who then set their own substantive and functional priorities. As a result, civil legal aid programs are not all alike. They have widely differing priorities and case mixtures. Some do considerable consumer work and others do virtually none. Some have substantial emphasis on housing, while others have a substantial emphasis on public benefits. In addition, they emphasize different functions. Some focus on one subject area or one client group of clients. Some primarily or substantially utilize hotlines and provide advice, brief service and referral to other providers. Others emphasize extended representation in court and before administrative agencies. Some do all of these functions." [128]

Além de serem integrados por uma enorme diversidade de tipos de prestadores de serviços, cujo foco de atuação muitas vezes difere grandemente entre uns e outros como mencionado acima, os sistemas de assistência jurídica civil nos Estados Unidos também se caracterizam pela extensa variedade de fontes de financiamento, o que torna extremamente difícil qualquer tentativa de enquadramento sistemático para permitir uma visão esquemática do conjunto. Na verdade, no contexto nacional, no que se refere às fontes de financiamento, é possível vislumbrar a existência não de um único sistema, mas de três subsistemas a saber: a) o que é formado pelas entidades subsidiadas e, por esse motivo, totalmente submetidas ao controle da LSC - Legal Services Corporation; b) o que é formado por entidades totalmente independentes da LSC, fazendo parte, entretanto, do sistema de prestação de assistência jurídica que está sendo estruturado no âmbito dos Estados; c) e um terceiro grupo formado por entidades que não recebem recursos da LSC nem tampouco estão integrados nos sistemas de âmbito estadual.

Paralelamente às entidades que prestam serviços – digamos, ‘típicos’ – de assistência jurídica abrangendo orientação, aconselhamento e eventualmente representação em Juízo, majoritariamente através de advogados assalariados, há também um enorme quantitativo de programas em caráter pro bono, estimado em mais de 600 pelo país afora. O sistema é ainda integrado por organizações que atuam perante instâncias legislativas e administrativas advogando, no campo das deliberações de ordem política, em favor dos interesses das pessoas de baixa renda. Algumas dessas organizações também atuam ministrando treinamento e proporcionando suporte técnico para o desenvolvimento do trabalho cotidiano levado a efeito pelas entidades que atuam na ‘linha de frente’, com a prestação direta da assistência jurídica.

Mas, como diz Deborah Rhode, é imprescindível que o governo se conscientize da necessidade de ampliar os recursos destinados ao financiamento do sistema de assistência jurídica, não só na área criminal, mas sobretudo na área cível. Segundo ela, mesmo que triplicado o volume de recursos anualmente destinado aos serviços de assistência jurídica cível, tal montante não ultrapassaria um bilhão de dólares: para uma nação que gastou mais de cento e sessenta bilhões de dólares para "garantir o Estado de Direito" (sic!) no Iraque, esse acréscimo de recursos em prol da consolidação do Estado de Direito "em casa" não deveria ser desconsiderado. [129]

4.4. Os Standards da ABA e sua importância para a normatização e sistematização dos programas de assistência jurídica em causas cíveis

Do mesmo modo como foi feito na parte inicial deste capítulo, dedicada ao estudo do sistema de assistência jurídica específico para a defesa em questões criminais, consideramos ser importante registrar a existência de um outro conjunto de diretrizes ou standards propostos pela American Bar Association – ABA como parâmetros nacionais de qualidade mínima aos quais os programas de assistência jurídica em questões cíveis deveriam procurar se ajustar. Embora não sejam objeto de consenso [130] no seio da comunidade jurídica a que se destinam, sem jamais ter alcançado o mesmo grau de reconhecimento e aceitação que os standards propostos para os serviços de assistência jurídica criminal atingiram no âmbito do sistema penal, os Standards for Providers of Civil Legal Services to the Poor propostos pela ABA representam, ainda assim, um conjunto importante de normas de referência para a sistematização e a disciplina do funcionamento dos programas de ‘legal aid’ pelo país afora.

É importante lembrar que, diferentemente do Brasil e da França, não há nos Estados Unidos uma cultura tão aferrada à necessidade de detalhamento regulamentar por intermédio de normas estabelecidas em textos legislativos formais. Assim, em muitos aspectos os Standards propostos pela ABA, embora não tenham o caráter cogente e obrigatório inerente aos provimentos legislativos [131], acabam servindo de explicitação e de complemento para os escassos dispositivos legais e regulamentares existentes em âmbito nacional, quais sejam a Lei nº 93-355, de 25 de Julho de 1974, que dispõe sobre a Legal Services Corporation e respectivo regulamento (ou seja, o Capítulo XVI do Código de Regulações Federais).

Esses standards que adiante serão analisados foram aprovados pela ABA em 1986, ou seja, há duas décadas atrás. Desde então o sistema de assistência jurídica cível norte-americano sofreu significativas alterações, já registradas anteriormente na retrospectiva histórica apresentada neste capítulo. Exatamente em virtude de todas essas mudanças na estrutura do sistema, foi instituída uma ‘força tarefa’ especialmente dedicada aos trabalhos de revisão desses standards de 1986, com o objetivo de ajustá-los ao contexto atual. Tendo em vista que as revisões que estão sendo propostas não importam em mudanças radicais, mas em ajustes de atualização e inclusão de novas questões que emergiram nos últimos vinte anos, decidimos tomar como base da análise, para efeitos do presente estudo, o texto dos standards atualmente em vigor, fazendo eventuais referências às propostas de modificação que estão sendo estudadas.

De início torna-se necessário reiterar que, devido à ampla diversidade existente entre os vários tipos de programas e entre os inúmeros prestadores de serviços existentes, é extremamente difícil estabelecer paradigmas genéricos e universais a serem seguidos por todos; tal circunstância é reconhecida expressamente no texto introdutório de apresentação dos referidos standards [132]. Mesmo assim, consideramos válido um breve estudo do conteúdo desses standards uma vez que expressam uma determinada visão sistemática de como deveriam operar no seu dia-a-dia os programas de assistência jurídica aos pobres na área cível.

Parece importante salientar, de início, que os Standards for Providers of Civil Legal Aid to the Poor, estabelecidos pela ABA em 1986, estão agrupados em sete grupos ou áreas distintas, a saber: 1) relações com os clientes; 2) sistemas e procedimentos internos; 3) garantia de qualidade; 4) funções genéricas de representação; 5) funções específicas de representação; 6) efetividade da atuação do prestador de serviço; 7) administração e gestão dos programas. Vejamos, em linhas gerais, as principais recomendações de cada um desses grupos.

No que se refere aos Standard for Relations with clients, destacamos alguns aspectos que parecem muito pertinentes para este trabalho. Primeiramente a preocupação no sentido de que seja estabelecida uma relação de proximidade e confiança entre o advogado e o cliente. Uma atenção especial para construir esse vínculo deve ocorrer no primeiro atendimento. São destacadas questões como, por exemplo, o tratamento respeitoso do cliente, evitando a necessidade de longo período de espera para o atendimento, além do oferecimento de uma atmosfera e ambiente "profissional" nos escritórios, garantindo-se condições de conforto e de confidencialidade [133] para o contato entre o advogado e o cliente. Salienta-se ainda a necessidade de treinamento do pessoal de apoio que atue em contato direto com o cliente para reforçar a importância de se tratar o cliente com dignidade e respeito. Recomenda-se ainda que seja elaborada uma espécie de ‘termo de compromisso’ a ser entregue ao cliente informando de modo claro e objetivo as obrigações e expectativas a serem cumpridas de parte a parte [134]. Nesse mesmo termo, se recomenda que deveriam constar informações expressas ao cliente sobre procedimentos a serem adotados para formalizar reclamação caso não se sinta satisfeito com o atendimento e com serviços que lhe estejam sendo prestados [135]. Também se recomenda que sejam explicitados com clareza nesse mesmo documento: o compromisso de confidencialidade e sigilo profissional, as eventuais obrigações de cunho financeiro que devam ser suportadas pelo cliente, e o destino de eventuais honorários advocatícios [136] decorrentes da causa.

Um outro ponto de destaque diz respeito à garantia do direito do cliente de ser informado sobre o andamento da causa e de participar de todas as decisões que interfiram de maneira relevante no curso do processo [137]; em contra-partida, salienta-se o dever do cliente de informar ao advogado sobre qualquer alteração no quadro fático que tenha ensejado o litígio, assim como de manter atualizados seus dados pessoais e meios de contato para permitir que seja facilmente encontrado pelo advogado quando necessário.

A preocupação no sentido de garantir padrões adequados de qualidade na prestação dos serviços está presente inclusive no que se refere às condições de infra-estrutura física oferecidas pelo prestador dos serviços de assistência jurídica às pessoas de baixa renda. Assim, o Standard 1.6. dispõe que o local [138] e o horário de funcionamento [139], as instalações [140], e os serviços em geral devem ser organizados de modo a facilitar o acesso de todos os clientes [141], garantindo-se o pleno atendimento de suas necessidades de cunho jurídico.

Um segundo grupo de standards que a ABA propõe para os Prestadores de Serviços Jurídicos aos Pobres é apresentado sob o título Standards for Internal Systems and Procedures. Trata-se de um conjunto de recomendações ligadas à estruturação interna do serviço, com vistas à definição de critérios objetivos para promover a eficiência e garantir efetiva representação dos clientes que sejam admitidos. Assim, devido ao elevado número de pessoas que procuram o atendimento e as limitações existentes para dar conta de toda essa demanda, torna-se necessário estabelecer orientações e diretrizes (ou seja, as guidelines) fixando os critérios de admissibilidade ou ‘elegibilidade’ (numa tradução literal do termo em inglês ‘eligibility’) de novos clientes e uma política para a aceitação de novas causas. Nesses aspectos, os Standards da ABA encontram total sintonia com o que dispõe o próprio texto da Lei que rege a Legal Services Corporation [142]. Destarte, recomenda-se que essas ‘guidelines’ para a admissão de um novo cliente sejam fixadas por escrito, abrangendo uma variedade de critérios dentre os quais: a renda auferida pelo pretendente, seu patrimônio líquido, sua situação familiar, suas despesas regulares com tratamento de saúde, etc. Há que se levar em conta, naturalmente, os eventuais critérios de ‘elegibilidade’ fixados pelos organismos que fornecem os recursos financeiros usados pelo prestador de serviços de assistência jurídica; respeitados os tetos fixados por tais organismos [143], subsiste boa margem de autonomia para que no âmbito de cada programa sejam estabelecidos critérios próprios, compatíveis com a realidade local.

Diretamente ligada à questão dos critérios de ‘elegibilidade’ para admissão de novos clientes está a definição de uma política de prioridades para aceitação de novos casos. Como já exaustivamente repetido neste capítulo, os Estados Unidos não reconhecem a seus cidadãos o direito de contarem com assistência de advogado para aconselhamento e patrocínio de interesses em processos cíveis; apesar disso, aquelas pessoas que não puderem (ou não quiserem) se fazer representar por advogado em Juízo não ficam – pelo menos formalmente – impedidos de acesso aos Tribunais, pois podem litigar em causa própria.

Destarte, diante da séria limitação de recursos públicos disponíveis para financiar os programas de assistência jurídica em favor das pessoas de baixa renda, tais programas muitas vezes vêm-se na contingência de denegar a prestação de serviços para uma expressiva parcela de pessoas que batem às suas portas. São dramáticas as situações concretas vividas no cotidiano dos balcões de atendimento dos referidos programas, em que os funcionários responsáveis pelo contato inicial com o público freqüentemente se vêm compelidos a recusar o atendimento [144] a pessoas que – sem a assistência de um advogado – certamente vão encontrar graves dificuldades na defesa de seus direitos que estão sendo violados. Assim, para evitar ainda maior agravamento do quadro de injustiças, não se justificaria a adoção de uma política simplista, na base apenas do atendimento "por ordem de chegada". Além da determinação de critérios objetivos relacionados com o grau de carência econômica dos possíveis clientes, há necessidade de uma avaliação ponderada do conjunto das necessidades jurídicas mais candentes na área geográfica coberta pelo prestador de serviços, de modo que – em função da capacidade efetiva de atendimento da demanda – se adote uma política transparente e racional de prioridades para a aceitação de novos casos a serem contemplados pelo respectivo programa. Essa política deve ser constantemente re-avaliada de modo a ajustá-la às possibilidades efetivas da infra-estrutura e da carga de trabalho máxima que pode ser suportada pelos advogados que atuam no programa. Em último caso, não havendo alternativa, a solução acaba sendo a de suspender o totalmente o atendimento até que o volume de trabalho retorne a níveis suportáveis [145].

Também dentro deste segundo grupo de standards, referentes a critérios de gerenciamento e controle das rotinas internas para garantir maior eficiência no alcance dos objetivos de prestação de um serviço de alta qualidade, encontram-se recomendações a respeito da necessidade de se manter arquivos e registros de informações dos clientes e dos casos em andamento, devidamente atualizados com o histórico completo das ações e intervenções levadas a efeito em cada caso; exige-se também a manutenção de eficiente sistema para controle de prazos processuais e, eventualmente, um criterioso controle de valores monetários eventualmente entregues pelo cliente para custeio de despesas específicas relacionadas ao processo [146].

Tudo isto se torna especialmente importante em razão de vários fatores que são uma constante na realidade cotidiana dos serviços de assistência jurídica: grande número de casos e clientes, elevada carga de trabalho jurídico, e rotatividade muito freqüente na composição do quadro de advogados (o que eles chamam de turnover). Esses fatores exigem a adoção de sistemas de controle e registros internos que assegurem o correto acompanhamento de cada caso, garantindo-se a agregação de informações necessárias para seu correto encaminhamento, que facilitem a reconstituição das fases já percorridas com vistas a evitar qualquer solução de continuidade na prestação de uma assistência jurídica de elevada qualidade, que seja capaz de atingir os objetivos desejados pelo cliente. Com isto também se evita indesejáveis conflitos de interesse entre pretensos clientes que possam vir a se tornar ex-adversos em juízo, o que é ainda mais grave no contexto norte-americano, pois – pelas normas da ética profissional – não se admite que advogados vinculados um mesmo programa de assistência jurídica possam defender partes contrárias num mesmo processo. Não há dúvida de que, com a evolução dos recursos tecnológicos nos últimos anos, a observância das recomendações decorrentes desse Standard fixado pela ABA se tornou mais simples, embora isso acarrete um significativo incremento dos custos operacionais do respectivo programa de assistência jurídica.

Uma última questão que também é objeto de um dos standards deste segundo grupo diz respeito à política interna a ser observada no que se refere ao custeio das despesas colaterais inerentes à representação processual dos clientes cujos casos tenham sido admitidos pelo programa de assistência jurídica. Não se pode esquecer que o sistema processual norte-americano é de natureza ‘adversarial’, o que significa dizer que a produção das provas fica sob inteira responsabilidade das partes; o órgão julgador – seja o júri ou o juiz monocrático – se limita a apreciar as provas que são produzidas pelos interessados durante a sessão de julgamento. E, se não há sequer o reconhecimento do direito de assistência jurídica gratuita prestada por advogado, custeado pelo poder público, igualmente inexiste qualquer garantia de gratuidade para produção de provas, sejam elas de que espécie for.

Assim, da mesma forma como ocorre com relação ao advogado particular, em caso de impossibilidade de pagamento dos honorários pela prestação de seus serviços, não resta alternativa senão a de apelar para o sentimento de caridade do profissional técnico capaz de atuar como perito, solicitando-se seus serviços a título pro bono publico [147]. Ora, se isto já é difícil com relação aos advogados, ainda mais o será com relação aos demais profissionais. Esse problema surgirá sempre que haja necessidade de produção de prova pericial, se a entidade que tiver assumido a responsabilidade pela representação judicial do cliente não dispuser de recursos para arcar com todas as despesas correspondentes à produção da prova (no caso, os honorários do perito). Naturalmente, é provável que o custo respectivo também não poderá ser suportado pela própria parte interessada. Na prática haverá um impasse, pois sem a prova pericial não será possível prestar um serviço de assistência jurídica de qualidade, como prescrevem os standards da ABA. Por isso, considerando as limitações orçamentárias dos programas de ‘legal aid’, será necessário estabelecer políticas bem detalhadas para otimizar a aplicação dos escassos recursos disponíveis, de modo que sejam direcionados prioritariamente para causas em que haja perspectiva favorável sob o ponto de vista do custo-benefício. Até porque não faz parte da tradição jurídica norte-americana a idéia de impor ao vencido os ônus sucumbenciais. Cada parte tem que arcar com suas respectivas despesas. Isto quer dizer que somente valerá a pena litigar quando uma causa for capaz de gerar vantagem econômica que supere significativamente os prováveis custos e despesas do litígio. Pode parecer irônico, mas o fato é que mesmo nos EUA – um país que se diz ‘campeão de democracia e justiça’ – às vezes a única solução que resta é suportar inerte a injustiça, pois o causador da lesão do direito age consciente de que a vítima não terá condições econômicas para custear as despesas com a produção das provas que seriam necessárias para ter êxito num litígio judicial.

Muitas vezes as despesas com a produção das provas em juízo são extremamente altas. E nem sempre é possível prever de modo preciso o montante de recursos que serão necessários para garantir uma boa preparação e sustentação da causa em juízo. Uma vez aceita a causa, é dever do ente prestador da assistência jurídica valer-se de todo o instrumental possível para alcançar um resultado favorável em prol do seu cliente. Por isso, antes de aceitar a causa, é preciso que se faça uma avaliação judiciosa a respeito das perspectivas de despesas que possam ser necessárias para levar o caso a bom termo [148], notadamente no caso de perícias e também quando haja necessidade de investigações [149]. E, depois de aceita a causa, impõe-se ao prestador de serviços o constante gerenciamento para monitorar as despesas e custos de modo que possa com a devida antecedência ajustar seu orçamento, buscar recursos financeiros adicionais, reduzir ou suspender a admissão de novos casos, para evitar incorrer em violação de suas responsabilidades éticas para com o cliente ou de correr o risco de ter inviabilizada sua subsistência, por se tornar insolvente.

O terceiro grupo de standards propostos pela ABA estabelece parâmetros relacionados com a garantia da qualidade dos serviços prestados (Quality Assurance). Na verdade esse escopo de assegurar uma prestação de assistência jurídica de qualidade é o pano de fundo [150] de todo o conjunto dos sete grupos de standards, e emana diretamente do texto da própria Lei que criou a Legal Services Corporation, quando afirma que a LSC deve garantir a manutenção de "highest quality of service and professional standards (...) in furnishing legal assistance to eligible clients" [151].

Para garantir essa "high quality representation" considera-se primordial que os empregados e advogados sejam profissionalmente competentes, sensíveis às necessidades dos clientes e comprometidos com a prestação de serviços de alto nível. Isto requer um processo criterioso de seleção e recrutamento de pessoal, o oferecimento de boas condições de trabalho, especialmente uma política remuneratória compatível com as exigências do trabalho desenvolvido, além de oportunidades para o desenvolvimento profissional. É necessário, igualmente, que sejam tomadas medidas para evitar a sobrecarga excessiva de trabalho, seja mediante a ampliação do quadro funcional, quando necessário e possível ou, como já visto anteriormente, mediante o estabelecimento de limites para aceitação de novos casos. Propugna ainda que a distribuição das tarefas e dos casos que ficarão sob a responsabilidade de cada advogado não seja feita de modo aleatório: fatores como, por exemplo, o nível de experiência, treinamento e ‘expertise’ do profissional precisam ser levados em conta.

Os problemas decorrentes da excessiva sobrecarga de trabalho afetam não apenas o nível de qualidade dos serviços prestados, comprometendo seriamente a imagem e a credibilidade externa do respectivo programa de assistência jurídica; além das implicações e responsabilidades no campo da ética profissional [152] e até no campo propriamente da responsabilidade civil e criminal, esta sobrecarga acarreta também a perda subjetiva de confiança na capacidade de realização dos próprios profissionais envolvidos [153].

Outro fator considerado de extrema importância para a manutenção da qualidade dos serviços prestados é a existência de mecanismos efetivos de supervisão e controle do trabalho desenvolvido pelos advogados [154]. A mentalidade subjacente na estrutura dos programas de assistência jurídica gratuita aos pobres é a mesma que se faz presente nos grandes escritórios privados de advocacia dos Estados Unidos: todos fazem parte de uma equipe, e devem trabalhar de modo integrado e uniforme. Mesmo porque, a responsabilidade jurídica e ética pelos resultados auferidos não é imputada apenas ao advogado individualmente considerado; recai também sobre a ‘law firm’ que é dotada de personalidade jurídica própria [155]. Esta supervisão do trabalho por advogados ‘seniores’ não é considerada interferência na autonomia funcional de cada advogado integrante da equipe; pelo contrário, é uma determinação que emana dos preceitos ético-profissionais reconhecidos pela ABA. Paralelamente ao dever de supervisionar está também o dever de oferecer treinamento e capacitação profissional continuada, como expressamente indicado no Standard 3.5.

Uma última recomendação proposta neste grupo de Standards for Quality Assurance diz respeito à necessidade de se criar mecanismo de avaliação institucional periódica do próprio programa no seu conjunto. A cultura da avaliação institucional é uma realidade na sociedade norte-americana. No texto dos comentários ao Standard 3.7. consta a seguinte recomendação:

"A legal services provider should periodically review its entire operation to determine if it is providing high quality representation to its clients and is accomplishing its objectives as determined by its priorities and other policies, and as agreed with its funding sources. The goal of such an assessment should be to encourage forward-looking and judicious management of the organization which attends to program weakness and reinforces program strengths." [156]

Tais avaliações devem abranger técnicas de controle e mensuração interna do alcance dos objetivos do programa, além de verificação externa do nível de satisfação dos clientes e da comunidade jurídica em geral a respeito do serviço prestado [157].

O quarto e o quinto grupos de standards dizem respeito principalmente a questões metodológicas de atuação profissional diretamente ligadas ao modo de condução das ações concretas do dia-a-dia no desempenho das obrigações e responsabilidades próprias dos advogados no contexto específico do sistema processual adversarial adotado nos Estados Unidos. São diretrizes que podem ajudar o advogado a aprimorar suas habilidades técnicas e ético-profissionais que serão de extrema importância para a entrevista inicial com o cliente a fim de permitir um correto diagnóstico das questões fáticas e jurídicas, prosseguindo-se com a reunião de todos os elementos e informações necessárias para preparação do caso, o estudo aprofundado da matéria sob a perspectiva legal, doutrinária e jurisprudencial, o planejamento do modo como será conduzido o caso em juízo, além do desempenho da obrigação de permanente aconselhamento e orientação do cliente. Não se tratam, na verdade, de questões peculiares aos serviços de assistência jurídica gratuita; referem-se efetivamente a requisitos normalmente exigidos de quaisquer advogados no desempenho de seu ‘múnus’ profissional.

Nesse grupo de standards consta também o elenco das formas de atuação que, conforme o caso, devem ser promovidas pelos órgãos prestadores dos serviços de assistência jurídica abrange as seguintes modalidades: aconselhamento, negociação, representação judicial, representação e assistência em procedimentos extrajudiciais, educação jurídica comunitária, representação e defesa dos interesses dos pobres perante as instâncias legislativas, dentre outras. O mais importante é estar sempre focado no alcance dos legítimos objetivos dos clientes, usando-se todos os mecanismos que forem adequados. Por exemplo, salienta-se expressamente nos comentários ao Standard 5.1.Non Adversarial Representation que "onde existir possibilidade de resolver os problemas dos clientes através de meios alternativos de solução de conflitos, como mediação, conciliação, e arbitragem, o profissional deve utilizá-los, se for o melhor meio para atingir de modo efetivo as expectativas do cliente". Enfatiza-se a necessidade de uma postura combativa e dedicada especialmente na representação do cliente em litígios judiciais, especialmente na produção das provas e na preparação da audiência de julgamento. Também se recomenda que esteja atento para a necessidade de medidas de impacto coletivo. Tudo isso com o propósito também de assegurar o melhor custo-benefício de suas ações.

Tendo em vista a carência de recursos financeiros e humanos para prestação de serviços em todos os campos onde seriam, em tese, admissíveis, como por exemplo nas instâncias administrativas, recomenda-se que os prestadores dos serviços de assistência jurídica estabeleçam com objetividade os critérios de prioridade para sua atuação também nas esferas não judiciais. Um dos campos onde esse tipo de atuação pode se mostrar mais eficaz é o da ‘advocacia legislativa’ ou ‘lobby’. O Standard 5.6.Legislative Representation ressalta a importância desse mecanismo para a defesa dos interesses jurídicos das pessoas de baixa renda. Eis, ipsis litteris, o que consta do comentário respectivo:

"The legislative process is an essential part of the legal system. At times, it may present the most efficient way to represent the interests of clients. By representing clients before a legislative body while a law is being enacted, for example, a provider may be able to avoid repetitive litigation to interpret a statute which affects its clients. In some situations, only legislative action will resolve the client’s problem." [158]

Apesar dessas recomendações do Standard proposto pela ABA, existem inúmeras restrições estabelecidas pela legislação federal no sentido de que os programas subsidiados pela LSC não possam se engajar em atividades de lobby perante instâncias legislativas. Apenas se admite a intervenção de advogados ou técnicos vinculados aos programas subsidiados pela LSC em audiências e discussões levadas a efeito no curso de processo legislativo perante a instância parlamentar nacional, estadual ou local na hipótese de ter sido formalmente convidado/solicitado a fazê-lo pelo órgão legislativo correspondente [159].

Ainda segundo estabelecem os Standards da ABA, um papel importantíssimo que precisa ser desempenhado pelos programas de assistência jurídica aos pobres diz respeito à promoção de esforços no sentido de proporcionar educação jurídica para a comunidade. O efeito multiplicador desse tipo de trabalho é enorme, e por isso contribui eficazmente para assegurar o respeito aos direitos das pessoas pobres, evitando-se o surgimento de conflitos que venham aumentar ainda mais a sobrecarga do trabalho de representação judicial que é sempre muito dispendioso. É verdade que não se pode descartar, eventualmente, que a educação jurídica e a conscientização a respeito dos direitos provoquem um aumento ainda maior dessa sobrecarga, pois muitas pessoas que não procuravam defender seus direitos antes de serem informadas a respeito dos mesmos assim agiam devido à falta de conhecimento sobre as possibilidades de recorrer à Justiça. Por isso, é necessário que esse trabalho de educação jurídica seja feito de modo articulado com o oferecimento de mecanismos adequados para atender a nova demanda que possa vir a surgir. Assim, por exemplo, no contexto específico dos Estados Unidos, em que não se exige capacidade postulatória especial para estar em juízo, o trabalho de educação jurídica comunitária muitas vezes pode ensinar os próprios cidadãos a litigarem em causa própria nas questões de menor complexidade, como tivemos a oportunidade de acompanhar no Legal Aid Bureau, em Baltimore, na forma mencionada no relatório que se acha publicado no anexo.

Finalmente denota-se dos standards da ABA uma preocupação não apenas com os problemas estritamente jurídicos dos pobres, mas também com aspectos de ordem econômica e social que quase sempre estão diretamente ligados à condição da pobreza e dos problemas jurídicos dela decorrentes. Por isso, chega a ponto de estabelecer uma recomendação formal no sentido de que os programas de assistência jurídica estejam atentos para prestar colaboração no campo do desenvolvimento econômico [160], apoiando seus virtuais clientes em procedimentos de criação e operacionalização de entidades ou associações, enfim, de pessoas jurídicas que sejam capazes de contribuir para a promoção social e econômica das populações de baixa renda [161].

O penúltimo grupo dos Standards for Providers of Civil Legal Services to the Poor diz respeito à ‘Eficácia’ da atuação dos programas. Essa eficácia seria mensurada a partir de fatores como os seguintes: a) capacidade de identificar as necessidades reais e os objetivos da população destinatária de seus serviços e conseqüentemente planejar o direcionamento dos (escassos) recursos disponíveis de modo a atender as demandas consideradas prioritárias [162]; b) efetiva estrutura de funcionamento e operação dos serviços, observadas as realidades e o contexto específicos em que estejam inseridos; c) maximização dos recursos humanos mediante utilização de equipe de profissionais de apoio ‘parajuridicos’(ou ‘paralegals’) [163]; d) os efetivos resultados favoráveis – e duradouros – em prol dos clientes, alcançados na prestação dos serviços; e) a credibilidade e a reputação [164] alcançadas no seio da comunidade onde atuam em especial com relação a sua capacidade de cumprimento de suas finalidades institucionais.

A identificação das necessidades e objetivos dos clientes, para definir as prioridades a serem atendidas, exige uma postura bastante difícil por parte dos profissionais vinculados aos programas de assistência jurídica. Isto porque os advogados majoritariamente são egressos de um estrato social diferente daquele em que se encontra a população destinatária dos serviços. Daí a necessidade de interação profunda com a comunidade, e de se desenvolver uma sensibilidade especial para reconhecer os problemas mais sérios não apenas do ponto de vista dos advogados, mas também do ponto de vista dos clientes. Isto é ainda mais difícil porque os clientes muitas vezes não conseguem reconhecer e perceber a interface ‘jurídica’ dos seus problemas cotidianos. Por essa razão, segundo os standards da ABA, os profissionais vinculados aos programas de assistência jurídica para as pessoas de baixa-renda precisam estar alertas e comprometidos com esse esforço de integração e intercâmbio, participando intensamente da vida da comunidade para se familiarizar com os problemas por eles enfrentados.

Ainda dentro dessa meta de ‘eficácia’ dos serviços prestados, uma atenção especial é dedicada à questão da infra-estrutura voltada para a prestação dos serviços, seja no aspecto físico (das instalações físicas, do layout interno, etc), seja no aspecto funcional (organização e métodos de trabalho, distribuição dos trabalhos por áreas de especialização [165]). Um especial destaque é dado para a problemática relativa ao número e ao tamanho dos escritórios onde ocorrerá a efetiva prestação dos serviços. Um dilema entre centralização e descentralização, que deve ser decidido em função principalmente do fator custo-benefício. Quanto maior a capilaridade da rede de escritórios disponíveis mais fácil será o acesso físico dos potenciais clientes. Entretanto, inúmeros aspectos ligados à qualidade do serviço podem ser comprometidos com essa excessiva descentralização [166]. Além do mais, há realidades específicas que precisam ser consideradas, como por exemplo a assistência às populações rurais, normalmente dispersas por extensas áreas territoriais.

Consideramos oportuno também dedicar uma certa atenção para a recomendação do referido Standard no que diz respeito à maximização dos recursos humanos. No contexto dos serviços jurídicos nos Estados Unidos foi possível perceber uma extraordinária importância da atuação dos "paralegals". Isso está expressamente registrado por Cappelletti e Garth na sua clássica obra sobre acesso à Justiça, embora aparentemente os que vêm estudando e comentando o tema não costumam dar a esse ponto a devida consideração. Ao falar sobre as medidas vinculadas àquela que chamam de terceira onda do acesso à Justiça, os referidos autores salientam a importância do uso dos profissionais parajurídicos afirmando o seguinte:

"Os ‘parajurídicos’ – assistentes jurídicos com diversos graus de treinamento em Direito – assumiram nova importância no esforço de melhorar o acesso à Justiça. É cada vez mais evidente que muitos serviços jurídicos não precisam necessariamente ser executados por advogados caros e altamente treinados. (…) Desde 1970, os parajuridicos têm sido crescentemente utilizados, principalmente nos Estados Unidos, para fazerem pesquisa, entrevistar clientes, investigar as causas e preparar os casos para julgamento" [167]

Nos Estados Unidos, assim como no Brasil, as profissões jurídicas, no caso a advocacia possuem uma forte influência de caráter corporativo. Se por um lado a defesa de certos princípios e garantias jurídicas realmente dependem em grande medida da atuação de um profissional formalmente habilitado, sujeito aos rígidos controles e fiscalização dos organismos da advocacia a fim de preservar o maior interesse público, também não se pode negar que há um incontável número de situações em que seria totalmente dispensável a intervenção de um advogado [168]. Nesse tipo de casos, e sobretudo no trabalho de apoio operacional ao advogado, revela-se de grande importância a existência de um corpo permanente de ‘parajurídicos’ que poderão multiplicar eficazmente os resultados em prol dos clientes, evitando também o aumento de custos com a contratação de mais advogados.

O último grupo dos standards da ABA diz respeito à gestão administrativa dos programas de assistência jurídica cível. O modelo que emana dos dispositivos legais que disciplinam o sistema norte-americano do ‘legal aid’ supõe que a responsabilidade direta pela prestação de serviços não seja feita por entidades integrantes da própria estrutura estatal. Tais entidades são, normalmente, pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos e devem ser governadas por Conselhos Diretores cuja composição deve conter maioria absoluta de advogados regularmente inscritos na ordem de advogados respectiva [169]. Também se recomenda que haja, dentre os conselheiros, representantes da própria população destinatária dos serviços [170]. Recomenda-se ainda que as entidades prestadoras de serviços contem com um Diretor Executivo – ou equivalente, de acordo com a realidade do programa – que será escolhido pelo Conselho Diretor, dentre pessoas com atributos de liderança e habilidades de gerenciamento e que demonstrem compreensão e sensibilidade à causa da assistência jurídica aos carentes.

Os Conselhos Diretores devem ser os responsáveis por definir as diretrizes gerais de atuação e velar pelo cumprimento dos objetivos estatutários do programa respectivo. Seu papel se concentra, sobretudo, no campo orçamentário e administrativo, fiscalizando a aplicação dos recursos. Espera-se também que os conselheiros sejam capazes de mobilizar a comunidade local, com vistas à ampliação das receitas necessárias para o prosseguimento do programa respectivo. Para cumprir com suas obrigações, os novos conselheiros quando passem a integrar o órgão, devem receber orientação e treinamento adequado. O Conselho Diretor jamais deve interferir na autonomia funcional assegurada à equipe de advogados empregados pela instituição [171]. Uma atenção especial deve haver para evitar qualquer interferência nos casos de possíveis conflitos entre os interesses individuais de membros do Conselho Diretor e eventuais interesses individuais ou coletivos dos clientes assistidos pelo programa.

Ainda no contexto da gestão administrativa, um dos standards trata especificamente da responsabilidade que cabe aos Conselhos Diretores de estabelecer a política e os procedimentos administrativos para recebimento de queixas e reclamações dos clientes, relativas a falhas na qualidade de prestação dos serviços; assevera-se a obrigação de que, ao final da sindicância realizada, seja enviada ao cliente, por escrito, uma resposta acerca das conclusões e respectivas medidas tomadas para equacionar o problema [172]. Para assegurar maior transparência e abertura para a comunidade, recomenda-se expressamente que as reuniões do Conselho Diretor sejam públicas, e devem ocorrer em dias e horários que permitam a participação não apenas dos conselheiros, mas também de membros das comunidades destinatárias dos serviços e do público em geral. Tanto as convocações para as reuniões como as respectivas atas devem ter a maior publicidade possível.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Cleber Francisco Alves

Defensor Público no Estado do Rio de Janeiro, Professor Universitário, Doutor em Direito pela PUC-RJ

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES, Cleber Francisco. A assistência jurídica gratuita aos pobres nos Estados Unidos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 2007, 29 dez. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12139. Acesso em: 20 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos