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Flexibilização das normas trabalhistas e sua constitucionalidade

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13/01/2009 às 00:00
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2. PRINCÍPIOS

O estudo feito neste capítulo abrange os diferentes aspectos acerca dos princípios constitucionais, especificamente os do direito do trabalho, da dignidade da pessoa humana, da segurança jurídica e da proibição do retrocesso social.

2.1 Conceito

Antes de adentrar nos princípios que norteiam o direito do trabalho, mister se faz uma pequena conceituação do que seja princípio.

A palavra "princípio" flui do início da humanidade – "No princípio, criou Deus os céus e a terra." Ora, é o início, o começo, o baluarte, a viga-mestra de tudo que existe. Quando se fala em princípio jurídico, isso significa a base de onde partem os pilares que formarão o todo – a construção. Se se desmontar a base, o que sobrará ? Ruínas como quando passa um tsunami.

Vezio Crisafulli, citado por Almeida, conceitua princípio nos seguintes termos:

Princípio é, com efeito, toda norma jurídica, enquanto considerada como determinante de uma ou de muitas outras subordinadas que a pressupõem, desenvolvendo e especificando ulteriormente o preceito em direções mais particulares (menos gerais), das quais determinam, e portanto resumem, potencialmente, o conteúdo: sejam, pois, estas efetivamente postas, sejam, ao contrário, apenas dedutíveis do respectivo princípio geral que as contém (apud, ALMEIDA, 2004, p. 454).

Para Lima, princípio, "a despeito de ser uma noção bastante clara, não podemos deixar de lado que é um termo multifacetário, equívoco e polissêmico". (2005, p. 2). Esclarece Bandeira de Mello:

Violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma [rectius, regra]. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais. [...]

Dessume-se, por conseguinte, que, na atual classificação, de cunho pós-positivista, norma é o gênero do qual são espécies as regras e os princípios (e os valores, para os que aceitam essa tese), que se diferenciam lógica e qualitativamente. Não pode, pois, o estudioso do direito equiparar a norma jurídica às regras. Estas são apenas uma das faces das normas. O jurista, ao analisá-las, deve aferir-lhes a espécie (princípios ou regras) e a hierarquia (norma constitucional, legal ou mesmo infralegal) para bem entender seu posicionamento no ordenamento jurídico. (apud, LIMA, 2005, p.3-5).

Lima ainda destaca:

Ainda hoje, há juristas que não compreendem a verdadeira força normativa dos princípios. Assim, por exemplo, há quem entenda que a violação a um princípio não justifica a concessão de um mandado de segurança, porquanto, no caso, não haveria um ‘direito’ líquido e certo a ser protegido. Trata-se porém, de uma visão distorcida e desatualizada que, na verdade, retira grande parte da eficácia protetiva do mandado de segurança, vez que, na maioria dos casos, a violação a direito líquido e certo ocorre por transgressão a princípios. (LIMA, George, 2005, p. 7 – grifo nosso).

A densificação de um princípio não significa simplesmente dizer "isto é um princípio e ponto". É trabalho hercúleo e de grande dimensão e complexidade. Como explica Lima,

é uma tarefa complexa, que se inicia com a leitura isolada do texto que enuncia o princípio, passando, em uma segunda fase, por uma análise sistemática do texto constitucional, e, a partir daí, buscando os contornos capazes de preencher o significado do princípio. Esses ‘contornos’, portanto, podem ser encontrados tanto no próprio texto constitucional, quanto na lei, na doutrina, na jurisprudência etc. Ou seja, a densificação do princípio é qualquer atividade capaz de fornecer subsídios hábeis a compreensão do significado da norma. (LIMA, 2005, p. 8 - grifo nosso).

Os princípios, estejam ou não inscritos nas constituições, códigos ou leis, gozam de vida própria, como esclarece o autor:

Com efeito, os princípios jurídicos podem estar expressamente enunciados em normas explicitas ou podem ser descobertos no ordenamento jurídico, sendo que, neste último caso, eles continuam possuindo força normativa. Ou seja, não é por não ser expresso que o princípio deixará de ser norma jurídica. Reconhece-se, destarte, normatividade não só aos princípios que são, expressa e explicitamente, contemplados no âmago da ordem jurídica, mas também aos que, defluentes de seu sistema, são anunciados pela doutrina e descobertos no ato de aplicar o Direito.

[...]

Apesar disso, o mais prudente é que os princípios sejam, na medida do possível, expressos, a fim de que se prestigiem a segurança jurídica e a harmonia sistemática do direito, evitando-se, dessa forma, que os mais apegados aos formalismos de outrora neguem a existência de determinado princípio, tal como ocorre ainda hoje com o princípio da proporcionalidade, ou então que haja um ‘abuso principiológico’ por parte dos operadores do direito, levando o interprete a ‘encontrar’ um princípio que não esteja ‘descoberto’ no texto constitucional, ‘mas em instância valorativa fundada em subjetivismos, em posturas axiológicas, ideológicas, ou outras formas de subjetividade interpretativa, que frustrem a tendencial objetividade exigível na atividade de extração dos princípios da ordem constitucional positiva’, fazendo com que de forma arbitrária, sejam introduzidas normas exóticas, que poderão destruir a ordenação jurídica. (LIMA, 2005, p. 10 - grifo nosso).

É interessante notar que a Constituição Federal brasileira menciona que "os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotado" (parágrafo 2º, do artigo 5º). É esse um campo aberto, então, diga-se, para que outros princípios façam parte do ordenamento jurídico, mesmo não estando positivados, o que vem ao encontro do aqui exposto, ou seja, da não-necessidade da positivação dos princípios.

O mestre português José Joaquim Gomes Canotilho faz a seguinte distinção entre regras e princípios:

a-) Grau de Abstração: os princípios são normas com um grau de abstração relativamente elevado; de modo diverso, as regras possuem uma abstração relativamente reduzida.

b-) Grau de determinalidade na aplicação do caso concreto: os princípios, por serem vagos e indeterminados, carecem de mediações concretizadoras (do legislador, do juiz), enquanto as regras são susceptíveis de aplicação directa.

c-) Caráter de fundamentalidade no sistema das fontes de direito: os princípios são normas de natureza estruturante ou com um papel fundamental no ordenamento jurídico devido à sua posição hierárquica no sistema das fontes (ex.: princípios constitucionais) ou à sua importância estruturante dentro do sistema jurídico (ex.: princípio do Estado do Direito).

d-) ‘Proximidade’ da idéia de direito: os princípios são ‘standarts’ juridicamente vinculantes radicados nas exigências de ‘justiça’ (Dworkin) ou na ‘idéia de direito’ (Larentz); as regras podem ser normas vinculativas com um conteúdo meramente funcional.

[...]

Os princípios são normas jurídicas impositivas de uma optimização, compatíveis com vários graus de concretização, consoante os condicionalismos fácticos e jurídicos; as regras são normas que prescrevem imperativamente uma exigência (impõem, permitem ou proíbem) que é ou não cumprida [...] a convivência dos princípios é conflitual [...] a convivência de regras é antinômica; os princípios coexistem, as regras antinómicas excluem-se [...] as regras não deixam espaço para qualquer outra solução, pois se uma regra vale (tem validade) deve cumprir-se na exacta medida das suas prescrições, nem mais nem menos. [...] as regras contêm ‘fixações normativas’ definitivas, sendo insustentável a validade simultânea de regras contraditórias. Realça-se também que os princípios suscitam problemas de validade e peso (importância, ponderação, valia); as regras colocam apenas questões de validade (se elas não são corretas devem ser alteradas). (2003, p. 1160-1162).

Canotilho mostra também que não há critérios suficientes para distinguir princípios e normas. Portanto, a distinção entre os dois tipos de preceitos é meramente gradual, "não havendo critérios suficientemente seguros para uma determinação rigorosa." (2003, p. 1171-1172).

Há uma diferença tênue entre princípios e regras, eis que ambos fazem parte do gênero norma, no entanto os princípios têm um grau mais avançado de otimização. As regras determinam que se faça ou se deixe de fazer alguma coisa, isto é, descrevem o caso concreto e estão na inércia, latentes, esperando que o referido caso se realize para, então, incidir.

2.2 Princípios do direito do trabalho

Qualquer ciência tem seus princípios e, baseada neles, estrutura-se de forma que tudo o que venha posteriormente seja realizado em consonância com as emanações ditadas por aqueles, uma vez que existem para dar harmonia a todo o sistema jurídico. Assim, sendo o direito do trabalho uma ciência que trata das relações humanas, faz parte desse sistema.

Neste trabalho, abordam-se alguns princípios que se julgam os mais importantes, dando ênfase aos que vêm ao encontro do estudo proposto.

2.2.1 Princípio protetor

Segundo Américo Plá Rodriguez, "[...] o princípio de proteção se refere ao critério fundamental que orienta o Direito do Trabalho, pois este, ao invés de inspirar-se num propósito de igualdade, responde ao objetivo de estabelecer um amparo preferencial a uma das partes: o trabalhador." (RODRIGUEZ, 2002, p. 83). Alfredo J. Ruprecht, por sua vez, menciona que este princípio "[...] tem por objeto criar uma norma mais favorável ao trabalhador, procurando assim compensar as desigualdades econômicas e sua fraqueza diante do empregador." (RUPRECHT, 1995, p. 9).

Francisco Meton Marques de Lima trata desde princípio como "princípio tutelar", o qual "[...] Como um manto protetor contra a intempérie da desigualdade social, este princípio deve orientar o aplicador da norma trabalhista em todos os momentos processuais, inspirando-o tanto na apreciação material do Direito como na apreciação instrumental. [...]." (LIMA, 1997, p. 29).

Maurício Godinho Delgado colaciona que o princípio cria "[...] uma teia de proteção à parte hipossuficiente na relação empregatícia – o obreiro – visando retificar (ou atenuar), no plano jurídico, o desequilíbrio inerente ao plano fático do contrato de trabalho. [...]." (DELGADO, 2004b, p. 82).

2.2.2 Princípio da irrenunciabilidade de direitos

Por tal princípio tem-se a "[...] impossibilidade jurídica de privar-se voluntariamente de uma ou mais vantagens concedidas pelo direito trabalhista em benefício próprio. A renúncia equivale a um ato voluntário pelo qual uma pessoa se desliga de um direito reconhecido a seu favor e o abandona [...]." (RODRIGUEZ, 2002, p. 142).

Segundo Ruprecht "[...] é o remédio jurídico que o trabalhador, em determinadas situações e casos, pode utilizar para anular uma renúncia que tenha feito de certos benefícios ou direitos. Nem todos os direitos são irrenunciáveis, tanto em sua existência como em sua extensão. [...]." (1995, p. 32).

"[...] Em síntese, este princípio consiste em que o trabalhador não pode renunciar aos direitos a ele assegurados pela legislação do trabalho. Compreende no conceito irrenunciabilidade também a intransigibilidade. [...]" (LIMA, 1997, p. 88). No entanto, quanto à irrenunciabilidade de direitos, Lima esclarece que há exceções.

Delgado trata deste princípio como princípio da indisponibilidade de direitos trabalhistas, que envolve a renuncia, transação, composição, conciliação, indisponibilidade absoluta e relativa, Menciona também os requisitos para a renúncia e a transação. (2004b, p. 88-95).

2.2.3 Princípio da continuidade do contrato

Para Rodrigues, "[...] este princípio expressa a tendência atual do Direito do Trabalho de atribuir à relação de emprego a mais ampla duração, sob todos os aspectos. [...] já que, obviamente, continuar trabalhando é mais benéfico do que ficar desempregado.[...]" (2002, p. 244-245). Complementa Ruprecht, "[...] A tendência atual do Direito do Trabalho é a continuidade da relação laboral, evitando que, por qualquer circunstância ou fato, se produza a ruptura do vínculo que é, precisamente, o que esse princípio põe em prática. [...]" (1995, p. 56).

Analisando o princípio em estudo afirma Lima:

consiste em estabelecer presunção juris tantum da continuidade da vinculação de emprego. À sua sombra presume-se que o empregado não pediu demissão nem abandonou o emprego. Ao empregador cumpre provar esses fatos de forma a não suscitar qualquer dúvida. Nestes casos, analisa-se a causa do pedido de demissão ou do abandono e se não houve vício de consentimento. [...] O princípio da continuidade fundamenta-se na necessidade que o trabalhador tem de um emprego que lhe assegure o sustento próprio e da família. Outro fundamento, de ordem moral, é o direito que toda pessoa tem ao trabalho. Logicamente, todos necessitam de uma ocupação, para o bem do corpo e da alma, porque o ócio é o pai de todos os vícios. [...]. (1997, p. 100-101 – grifo do autor).

2.2.4 Princípio da primazia da realidade

Esse princípio implica a "[...] primazia dos fatos sobre as formas, as formalidades ou as aparências. Isso significa que em matéria de trabalho importa o que ocorre na prática, mais do que aquilo que as partes hajam pactuado de forma mais ou menos solene, ou expresso, ou aquilo que conste em documentos, formulários e instrumentos de controle.[...]" (RODRIGUEZ, 2002, p. 351-352). "[...] Esse princípio consiste na primazia da realidade sobre os fatos consignados, por escrito, no contrato. [...]." (RUPRECHT, 1995, p. 80).

Lima destaca que tal princípio "[...] consiste em que, no caso de discrepância entre o que ocorre na prática e o que emerge de documentos ou acordos, deve-se dar preferência ao primeiro, isto é, ao que sucede no terreno dos fatos. [...]". (1997, p. 134).

O princípio em comento, também é destacado por Delgado, segundo o qual "[...] o princípio da primazia da realidade sobre a forma constitui poderoso instrumento para a pesquisa e encontro da verdade real em uma situação de litígio trabalhista. [...]" (2004b, p. 102).

2.2.5 Outros princípios

Ainda há outros princípios a considerar, como princípio da razoabilidade, princípio da boa-fé, princípio da alienidade dos riscos, princípio da igualdade, princípio da não-discriminação (RODRIGUEZ, 2002, p. 20-21). Evidencia-se, portanto, que o aplicador do direito do trabalho deverá conduzir-se pela seara de tais princípios, sob pena de o núcleo das suas decisões conter o vício intransponível da nulidade.

Na seqüência, faz-se o estudo de três princípios que vêm ao encontro do estudo proposto, quais sejam, princípio da dignidade da pessoa, princípio da segurança jurídica e princípio da proibição do retrocesso social.

2.3 Princípio da dignidade da pessoa

O princípio da dignidade da pessoa vem enunciado na Constituição Federal de 1988 no Título I – "Dos Princípios Fundamentais", art. 1º inc. III. Ingo Wolgang Sarlet faz referência a tal princípio.

[...] o princípio da dignidade da pessoa humana, expressamente enunciado pelo art. 1º, inc. III, da nossa CF, além de constituir o valor unificador de todos os direitos fundamentais, que, na verdade, são uma concretização daquele princípio, também cumpre função legitimadora do reconhecimento de direitos fundamentais implícitos, decorrentes ou previstos em tratados internacionais, revelando, de tal sorte, sua íntima relação com o art. 5º, parágrafo 2º, da nossa Lei Fundamental. Cuida-se de posições exemplificativamente referidas e que expressam o pensamento de boa parte da melhor doutrina, de modo especial no que tange à íntima vinculação entre o princípio da dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais. (2004a, p. 107).

É interessante notar, primeiramente, que quando se fala em pessoa, obviamente, fala-se de pessoa humana. É prolixidade a palavra "humana", eis que não existe pessoa que não seja humana.

[...] a proteção da dignidade do homem pressupõe a efetiva atuação do Estado e da comunidade. Nesse sentido, no campo da hermenêutica jurídica trabalhista, é necessário que o intérprete busque no ordenamento jurídico mecanismos que lhe permitam solucionar conflitos entre o capital e o trabalho, de modo a preservar a dignidade do homem trabalhador.

De fato, diante do caso concreto, cumpre ao intérprete e ao aplicador do direito dar máxima eficácia aos princípios constitucionais, preservando a dignidade do homem, colocando o capital e trabalho a serviço do mesmo (e não o contrário), aproximando o direito da realidade da vida. Para atingir esse intento, a noção de sistema jurídico e o manejo da interpretação sistemática são imprescindíveis.

[...]

Dessa forma, nas tensões entre o trabalho e a livre iniciativa, é a dignidade da pessoa humana que deve prevalecer, uma vez que a dignidade do homem constitui núcleo central, inviolável, do sistema jurídico, assumindo, segundo os ditames da interpretação sistemática, o ápice da hierarquia de valores. Mais do que isso, o princípio da dignidade da pessoa humana possui um caráter de meta princípio, na medida em que informa a iteração, a interpretação e a aplicação dos demais princípios que convivem no sistema jurídico.

Não obstante as profundas mudanças no mundo do trabalho, ditadas pela globalização da economia, pela flexibilização dos princípios trabalhistas e pela desregulamentação das relações entre o capital e o trabalho, a dignidade da pessoa humana há de ser respeitada e protegida, cabendo ao Estado e a sociedade encontrar formas de assegurá-la e de promovê-la. (GOLDSCHMIDT, 2003, p. 134-137).

Rizzato Nunes, destacando o seu caráter absoluto, sustenta que o princípio da dignidade da pessoa "[...] é o primeiro fundamento de todo o sistema constitucional posto e o último arcabouço da guarida dos direitos individuais. [...]" (2002, p. 45).

Sarlet destaca ainda que o princípio da dignidade da pessoa encerra todos os direitos fundamentais, os quais encontram nele sua vertente: "[...] há que apontar, no mínimo, [...] no sentido de que todos os direitos fundamentais encontram sua vertente no princípio da dignidade da pessoa humana [...]." (2004a, p. 107-108). Menciona ainda o autor que a Constituição de 1988 foi a primeira na história do constitucionalismo pátrio a prever um título próprio destinado aos princípios fundamentais.

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A Constituição de 1988 foi a primeira na história do constitucionalismo pátrio a prever um título próprio destinado aos princípios fundamentais, situado – em homenagem ao especial significado e função destes – na parte inaugural do texto, logo após o preâmbulo e antes dos direitos fundamentais. Mediante tal expediente, o Constituinte deixou transparecer de forma clara e inequívoca a sua intenção de outorgar aos princípios fundamentais a qualidade de normas embasadoras e informativas de toda a ordem constitucional, inclusive dos direitos fundamentais, que também integram aquilo que se pode denominar de núcleo essencial da Constituição material. Igualmente, sem precedentes em nossa evolução constitucional foi o reconhecimento, no âmbito do direito positivo, do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III, da CF), que não foi objeto de previsão no direito anterior. Mesmo fora do âmbito dos princípios fundamentais, o valor da dignidade da pessoa humana foi objeto de previsão por parte do Constituinte, seja quando estabeleceu que a ordem econômica tem por fim assegurar a todos uma existência digna (art. 170, caput), seja quando, no âmbito da ordem social, fundou o planejamento familiar nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável (art. 226, parágrafo 6º), além de assegurar à criança e ao adolescente o direito à dignidade (art. 227, caput). Assim, ao menos neste final de século, o princípio da dignidade da pessoa humana mereceu a devida atenção na esfera do nosso direito constitucional. (SARLET, 2004a, p. 108-109).

Prosseguindo, Sarlet reconhece que o Estado existe em função da pessoa humana, não o contrário, já que o homem constitui a finalidade precípua. Assim,

com o reconhecimento expresso, no título dos princípios fundamentais, da dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do nosso estado Democrático (e Social) de Direito (art. 1º, inc. III, da CF), o constituinte de 1987/88, além de ter tomada uma decisão fundamental a respeito do sentido, da finalidade e da justificação do exercício do poder estatal e do próprio Estado, reconheceu expressamente que é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o homem constituí finalidade precípua, e não meio da atividade estatal.

Sem entrarmos, ainda, no significado (ou nos significados), que se pode atribuir ao princípio da dignidade da pessoa humana, cumpre ressaltar, de início, que a idéia do valor da pessoa humana encontra suas raízes já no pensamento clássico e na ideologia cristã. Tanto no Antigo quanto no Novo Testamento podemos encontrar referências no sentido de que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, premissa da qual o cristianismo extraiu a conseqüência de que o ser humano é dotado de um valor próprio e de que lhe é intrínseco, não podendo ser transformado em mero objeto ou instrumento (2004a, p. 110-111).

A idéia de dignidade humana vem de há muito tempo, quando já era reconhecida mesmo que de forma rudimentar. Relata Sarlet:

Para a afirmação da idéia de dignidade humana, foi especialmente preciosa a contribuição do espanhol Francisco de Vitória, quando, no século XVI e no início da expansão colonial espanhola, sustentou, relativamente ao processo de aniquilação, exploração e escravização dos índios e baseado no pensamento estóico (especialmente Cícero e Ovídio) e cristão, que estes, em função do direito natural e de sua natureza humana – e não pelo fato de serem cristãos, católicos ou protestantes – eram em princípio livres e iguais, devendo ser respeitados como sujeitos de direitos, proprietários e na condição de signatários dos contratos firmados com a coroa. (2004a, p. 112).

A dificuldade de se estabelecer um conceito de dignidade também é exposta por Sarlet, assim como a concepção do homem-objeto, o qual constitui a antítese da noção de dignidade da pessoa, visto que sem essa não há que se falar na construção dos demais princípios elencados no artigo 1º da Constituição brasileira de 1988, quais sejam: a soberania, a cidadania, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político. Todos pereceriam por falta do elo principal entre si, o que é feito pelo princípio da dignidade da pessoa. Ainda no magistério de Sarlet:

[...] não há como negar que uma definição clara do que seja efetivamente esta dignidade não parece ser possível, uma vez que se cuida de conceito e contornos vagos e imprecisos. Mesmo assim não restam dúvidas de que a dignidade é algo real, já que não se verifica maior dificuldade em identificar as situações em que é espezinhada e agredida. (SARLET, 2004a, p. 113).

[...] verifica-se que reduzir a uma fórmula abstrata e genérica aquilo que constitui o conteúdo da dignidade da pessoa humana, em outras palavras, seu âmbito de proteção, não parece ser possível, a não ser mediante a devida análise do caso concreto. Como ponto de partida, vale citar a fórmula desenvolvida na Alemanha por G. Dürig, para quem a dignidade da pessoa humana poderia ser considerada atingida sempre que a pessoa concreta (o indivíduo) fosse rebaixada a objeto, a mero instrumento, tratada como uma coisa, em outras palavras, na descaracterização da pessoa humana como sujeito de direitos. (2004a, p. 117).

[...]

O que se percebe, em última análise, é que onde não houver respeito pela vida e pela integridade física do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, onde a intimidade e identidade do indivíduo forem objeto de ingerências indevidas, onde sua igualdade relativamente aos demais não for garantida, bem como onde não houver limitação do poder, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana, e esta não passará de mero objeto de arbítrio e injustiças. A concepção do homem-objeto, como visto, constitui justamente a antítese da noção da dignidade da pessoa humana. [...] (2004a, p. 118).

Enoque Ribeiro dos Santos, professor de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, leciona que "[...] segundo as cláusulas pétreas da Constituição brasileira, é juridicamente sustentável estabelecer que a proteção da dignidade da pessoa humana perdura enquanto subsiste a República Federativa, posto seu fundamento. [...]" (SANTOS, 2005, p. 1). Lembra também que

[...] não basta a liberdade formalmente reconhecida, pois a dignidade da pessoa humana, como fundamento do Estado Democrático de Direito, reclama condições mínimas de existência, existência digna conforme os ditames da justiça social como fim da ordem econômica. É de lembrar que constitui um desrespeito a dignidade da pessoa humana um sistema de profundas desigualdades, uma ordem econômica em que inumeráveis homens e mulheres são torturados pela fome, inúmeras crianças vivem na inanição, a ponto de milhares delas morrerem em tenra idade. Não é concebível uma vida com dignidade entre a fome, miséria e a incultura, pois a liberdade humana com freqüência se debilita quando o homem cai na extrema necessidade. (SANTOS, 2005, p. 6 - grifo nosso).

O mesmo autor interroga: "Como podemos, afinal, definir, conceituarmos dignidade da pessoa humana?" Manifesta-se no sentido de que, no plano concreto, a dignidade da pessoa atingiu seu apogeu quando da promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Veja-se em seu relato:

A dignidade da pessoa humana pode ser concebida como uma conquista da razão ética e jurídica da humanidade, atribuída a todas as pessoas, como fruto da reação de todos os povos contra as atrocidades cometidas pelo homem contra o próprio homem, que marcaram a experiência do homem na Terra. As experiências bestiais do passado, que culminaram em verdadeiros atentados à pessoa humana, geraram a consciência de que se devia proteger, preservar, a dignidade da pessoa humana, a qualquer custo. É somente entendendo as violações praticadas contra a dignidade humana que podemos tentar defini-la. (SANTOS, 2005, p. 6).

[...]

Embora tenhamos algumas declarações de direitos humanos na França, nos Estados Unidos da América do Norte, devemos conceber que, no plano concreto, a declaração que veio promover a dignidade da pessoa humana foi a Declaração Universal dos direitos Humanos, de 10 de dezembro de 1948, data em que foi aprovada, de forma unânime, por 48 Estados, com 8 abstenções. A declaração consolida a afirmação de uma ética universal, ao consagrar um consenso sobre valores de cunho universal a serem seguidos pelos Estados. No preâmbulo encontramos uma eloqüente afirmação: ‘o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo. [...] Seus 30 artigos têm como meta dois pontos essenciais que se complementam mutuamente: incrustar o respeito da dignidade da pessoa humana na consciência da comunidade universal, e evitar o ressurgimento da idéia e da prática da descartabilidade do homem, da mulher e da criança. (SANTOS, 2005, p. 11-12).

Questão complexa e controvertida é saber se o Poder Legislativo poderá deliberar em proposta de emenda à Constituição brasileira fixando limites à dignidade da pessoa, visto que, pelo artigo 60, parágrafo 4º, somente a forma federativa de Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação dos Poderes e os direitos e garantias individuais são objeto de cláusula pétrea. "[...] Questão complexa e que inevitavelmente assume crucial importância diz com a possibilidade de se fixarem limitações a dignidade da pessoa humana. [...]." (SARLET, 2004a, p. 121).

Neste estudo trata-se do tema com maior profundidade no capítulo reservado à reforma trabalhista, subtítulo 3.3, onde se discorre acerca da constitucionalidade da flexibilização e da desregulamentação das normas trabalhistas.

2.4 Princípio da segurança jurídica

Em que Estado se vive? Poder-se-ia dizer que se vive no estado do Rio Grande do Sul. Contudo, o questionamento feito é com "E" maiúsculo, razão pela qual a resposta só pode ser que se vive num Estado democrático de direito, pois a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados, Municípios e do Distrito Federal, constitui-se num Estado democrático de direito.

Nesta parte do presente estudo, tenta-se desvendar o que seja segurança jurídica. Ingo Wolfgang Sarlet afirma que segurança jurídica constitui certa estabilidade das relações jurídicas, um valor fundamental de todo e qualquer Estado que detenha a pretensão de merecer o título de "Estado de direito". (SARLET, 2004b, p. 9).

A ordem jurídica não pode retroceder. E ponto final. Quanto tempo se levou para consolidar um Estado democrático de direito? Muito, para não divagar no tempo. Sarlet menciona que um Estado de direito é sempre, em princípio, um Estado da segurança jurídica, eis que um "governo das leis" é sempre a expressão da vontade política de um grupo, o que poderá resultar em despotismo e em toda a sorte de iniqüidades. (SARLET, 2004b, p.13).

A segurança jurídica é da própria essência de um Estado democrático de direito, fazendo parte do sistema constitucional:

É justamente em face da instabilidade institucional, social e econômica vivenciada (e não estamos aqui em face de um fenômeno exclusivamente nacional), que inevitavelmente tem resultado numa maratona reformista, igualmente acompanhada por elevados níveis de instabilidade, verifica-se que o reconhecimento, a eficácia e a efetividade do direito à segurança cada vez mais assume papel de destaque na constelação dos princípios e direitos fundamentais. Que, além disso, a segurança jurídica não pode ser encarada por um prisma demasiadamente formal e não quer, também, significar a absoluta previsibilidade dos atos do poder Público e a impossibilidade de sua alteração. (SARLET, 2004b, p. 16-17).

Quando o indivíduo confia no sistema jurídico vigente, tal confiança merece proteção do Estado, o qual poderá fazer os ajustes necessários - reformar tal sistema -, mas sempre garantindo aos cidadãos segurança jurídica. Esta nada mais é do que a confiança depositada por aqueles no Estado, que detêm o poder conferido pelo povo de regulamentar suas relações. Tal regulamentação, entretanto, que não pode extrapolar os princípios vigentes, como bem explica Sarlet:

[...] assume relevo a argumentação de que tanto maior deverá ser a garantia da segurança jurídica individual, quanto mais merecedora de proteção for a confiança depositada pelo individuo no sistema vigente, proteção esta vinculada também ao fator tempo. Em outras palavras, valendo-nos do exemplo da alteração das regras para aposentadoria e pensões, quanto mais alguém estiver contribuindo num determinado regime de aposentadoria, maior deverá ser sua segurança jurídica, já que mais merecedora de proteção a sua confiança, o que, por sua vez, deverá ser observado no âmbito das regras de transição a serem estabelecidas pelo legislador [...] fundamental proceder os ajustes necessários sempre que comprovadamente se fizerem indispensáveis, uma vez que a possibilidade de mudanças constitucionalmente legítimas e que correspondam às necessidades da sociedade como um todo (mas também para a pessoa individualmente considerada) carrega em si um componente de segurança que não pode ser desconsiderado. (2004b, p. 46-48).

O princípio da segurança jurídica, segundo Almiro do Couto e Silva, é o princípio norteador da lealdade e lisura, pelo qual as partes envolvidas devem proceder corretamente com o que se comprometeram e com a palavra empenhada que, em última análise, chama-se "boa-fé", que dá conteúdo ao referido princípio. O Estado deve assegurar estabilidade nas relações jurídicas, conduta essa que dará respeitabilidade ao Estado democrático de direito. (SILVA, 2004, p. 9).

Continuando, Silva alude que, quando o Estado atenta contra o aspecto subjetivo, que concerne à proteção à confiança depositada pelas pessoas nele, este princípio impõe limitações ao Estado na liberdade de alterar sua conduta e de modificar atos que produziram vantagens para os destinatários, mesmo quando ilegais. O mesmo ocorre quando atribui conseqüências patrimoniais por essas alterações (atos do poder público), porque os beneficiários administrados e a sociedade em geral sempre crêem que, quando tais atos partem de autoridades legalmente constituídas, supõe-se que sejam atos legítimos. (SILVA, 2004, p. 9-10).

Sobre o tema Silva ilustra com um belo exemplo narrado por Ulpiano:

[...] o grande jurista clássico narra o caso do escravo Barbarius Philipus que foi nomeado pretor em Roma. Indaga Ulpiano: que diremos do escravo que, conquanto ocultando essa condição, exerceu a dignidade pretória ? O que editou, o que decretou, terá sido talvez nulo ? Ou será válido por utilidade daqueles que demandaram perante ele, em virtude de lei ou outro direito ? E responde pela afirmativa. (SILVA, 2004, p. 11 - grifo nosso).

Merece destaque ainda que a realidade hoje não é outra, pois a humanidade mudou muito pouco. O poder público pratica, freqüentemente, atos de extrema ilegalidade e o povo confia em tais atos. Assim, depois, vendo-se na premência de ser responsabilizado pelos órgãos fiscalizadores – Poder Legislativo e Tribunais de Contas tenta a toda a sorte surrupiar a confiança depositada pelos administrados, "cassando" situações que já se convalesceram pela confiança daqueles que acreditaram no poder público, o que gera desconfiança e insegurança ao Estado de direito.

O Poder Público é como o pai que, por seus exemplos, educa os filhos, os quais crescem acreditando e confiando naquele. Acreditam e confiam que esse pai jamais os trairá.

Não é outra a solução que tem sido dado, até hoje, para os atos praticados por ‘funcionário de fato’. Tais atos considerados válidos, em razão – costuma-se dizer – da ‘aparência de legitimidade’ de que se revestem, apesar da incompetência absoluta de quem os exarou. Na verdade, o que o direito protege não é a ‘aparência de legitimidade’ daqueles atos, mas a confiança gerada nas pessoas em virtude ou por força da presunção de legalidade e da ‘aparência de legitimidade’ que têm os atos do Poder Público. (SILVA, 2004, p. 11 - grifo nosso).

Uma das primeiras decisões em que o princípio da segurança jurídica – proteção à confiança – foi hasteado e começou a se firmar foi quando o Superior Tribunal Administrativo de Berlim, de 14 de novembro de 1956, logo seguido por acórdão do Tribunal Administrativo Federal (BverwGE), de 15 de outubro de 1957, julgou o caso a seguir transcrito. A partir de então, gerou-se uma corrente contínua de manifestações jurisprudenciais no mesmo sentido. (SILVA, 2004, p. 14).

Na primeira dessas decisões tratava-se da anulação de vantagem prometida a viúva de funcionário, caso se transferisse de Berlim Oriental para Berlim Ocidental, o que ela fez. Percebeu a vantagem durante um ano, ao cabo do qual o benefício lhe foi retirado, ao argumento de que era ilegal, por vício de competência, como efetivamente ocorria. O Tribunal, entretanto, comparando o princípio da legalidade com o da proteção à confiança, entendeu que este incidia com mais força ou mais peso no caso, afastando a plicação do outro. (SILVA, 2004, p. 14 - grifo nosso).

Na atualidade, segundo Silva, "[...] os temas dominantes relacionados com o princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança, no direito comparado e no direito brasileiro, podem ser condensados nos seguintes pontos principais: [...]." (2004, p. 15).

a) a manutenção no mundo jurídico de atos administrativos inválidos por ilegais ou inconstitucionais (p. ex. licenças, autorizações, subvenções, atos pertinentes a servidores públicos, tais como vencimentos e proventos, ou de seus dependentes, p. ex. pensões, etc.) b) a responsabilidade do Estado pelas promessas firmes feitas por seus agentes, notadamente em atos relacionados com o planejamento econômico; c) a responsabilidade pré-negocial do Estado; d) o dever do Estado de estabelecer regras transitórias em razão de bruscas mudanças introduzidas no regime jurídico (p. ex. da ordem econômica, do exercício de profissões, dos servidores públicos. (SILVA, 2004, p. 15).

Em três acórdãos da lavra no ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, pioneiros na Suprema Corte brasileira, percebe-se que o princípio da segurança jurídica, depois de longo tempo ter ficado latente no ordenamento jurídico pátrio, volta hoje com a intensidade de ser proclamado pela mais alta Corte de Justiça do país. Em ambos, o referido ministro invoca que, "[...] em verdade, a segurança jurídica, como subprincípio do Estado de Direito, assume valor impar no sistema jurídico, cabendo-lhe papel diferenciado na realização da própria idéia de justiça material. [...]" (Mandados de Seguranças nº PET 2900/RS, MS 24628/MG e MS 22357/DF).

O referido ministro concedeu a segurança com base em tal princípio e mencionou além desse, os que tratam de proteger a boa fé e a confiança das pessoas.

No MS-24628/MG, esclarece o senhor ministro que "[...] o princípio da possibilidade de anulamento foi substituído pelo da impossibilidade de anulamento, em homenagem à boa fé e a segurança jurídica. [...]"

Décio Antônio Erpen, desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, traz importante contribuição ao tema: "[...] sabe-se que são dois os valores do Direito: a Justiça e a Segurança Jurídica. Enquanto a jurisdição tem por escopo promover justiça no caso concreto, a segurança jurídica objetiva dar estabilidade coletiva, isso porque um direito inseguro é um direito eminentemente injusto. [...]." (ERPEN, 2005, p. 1).

Paulo Eduardo de Figueiredo Chacon, pós-graduando em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, citando Paulo Bonavides, destaca o pensamento do mestre:

a democracia moderna oferece problemas capitais, ligados às contradições internas do elemento político sobre que se apóia (as massas) e à hipótese de um desvirtuamento do poder, por parte dos governantes, pelo fato de possuírem estes o controle da função social e ficarem sujeitos à tentação, daí decorrente, de o utilizarem a favor próprio (caminho da corrupção e da plutocracia) ou no interesse do avassalamento do indivíduo (estrada do totalitarismo). (apud, CHACON, 2005, p. 3).

O autor menciona também que a lei é fonte de segurança jurídica, no entanto sofre as influências externas visto que os representantes do povo, quando da sua elaboração, muitas vezes têm interesses opostos aos ideais que se comprometeram a defender. Nesse momento, surge a importância da interpretação pelo aplicador do direito. (CHACON, 2005, p. 9). Continua Chacon:

A lei é fonte de segurança jurídica e ao ser elaborada pelos representantes eleitos do povo que possuem influências externas aos ideais que prometeram defender, sofre determinadas distorções.

Nesse momento, entra a importância do aplicar do direito, que deverá afastar os possíveis desvirtuamentos legislativos, utilizando o melhor método hermenêutico na subsunção da norma ao caso para a busca da verdadeira justiça. [...]. (2005, p. 9).

Constata-se que em nenhum momento a Constituição Federal brasileira aludiu expressamente à segurança jurídica. No entanto, o Estado democrático de direito só se mantém e se manterá enquanto tal princípio sobreviver, visto que, juntamente com outros, é o baluarte dos cidadãos, os quais têm o direito subjetivo de verem e terem suas relações perenes no tempo, sem surpresas, sem interferências nos direitos já garantidos e nas relações jurídicas já realizadas ou direitos já adquiridos.

2.5 Princípio da proibição do retrocesso social

Encontram-se positivados constitucionalmente (CF/88) no Brasil o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, além dos demais direitos fundamentais.

O ponto nevrálgico, a saber, é até que ponto pode o legislador infraconstitucional reformar, flexibilizar ou desregulamentar direitos já garantidos constitucionalmente. Disserta, a respeito, Sarlet:

A respeito do conteúdo dos limites materiais à reforma constitucional e do alcance da sua proteção, especialmente demonstrando que também esta proteção não poderá ser absoluta, já que o nosso Constituinte vedou apenas uma abolição efetiva ou tendencial, que, em princípio, não impede ajustes e até mesmo algum tipo de flexibilização desde que respeitado o núcleo essencial do princípio e/ou direito protegido. (2004b, nota de rodapé nº 28, p. 22).

Necessário se faz, neste ponto, transcrever novamente lição de Sarlet:

Não se poderá, contudo, confundir o problema da concretização legislativa dos direitos fundamentais sociais – em que pesem suas inequívocas similitudes e seus aspectos comuns – com o da manutenção dos níveis gerais de proteção social alcançados no âmbito do Estado Social, já que esta problemática abrange toda e qualquer forma de redução das conquistas sociais, mesmo quando realizadas única e exclusivamente no plano da legislação infraconstitucional densificadora do princípio da Justiça e do Estado Social que, paralelamente com o princípio do Estado de Direito e com o princípio democrático, encontrou ampla e expressa guarida na nossa Constituição. Neste contexto, poder-se-ia indagar a respeito da possibilidade de desmontar-se, parcial ou totalmente (e mesmo com efeitos prospectivos), o sistema de seguridade social (incluindo os parcos benefícios no âmbito da assistência social e os serviços e prestações assegurados no já fragilizado e insuficiente sistema Único de Saúde), o acesso ao ensino público e gratuito, a flexibilização dos direitos e garantias dos trabalhadores, entre tantas outras hipóteses que aqui poderiam ser referidas a título ilustrativo e que bem demonstram o quanto tal problemática nos é próxima e está constantemente na ordem do dia. (SARLET, 2004b, p. 23 - grifo nosso).

Sarlet, comentando posição de José Joaquim Gomes Canotilho, manifesta-se no sentido de que, após a sua concretização,

[...] os direitos fundamentais sociais assumem, simultaneamente, a condição de direitos subjetivos a determinadas prestações estatais e de uma garantia institucional, de tal sorte que não se encontram mais na (plena) esfera de disponibilidade do legislador, no sentido de que os direitos adquiridos não mais podem ser reduzidos ou suprimidos, sob pena de flagrante infração do princípio da proteção da confiança (por sua vez, diretamente deduzido do princípio do Estado de Direito), que, de sua parte, implica a inconstitucionalidade de todas as medidas que inequivocamente venham a ameaçar o padrão de prestações já alcançado. (CANOTILHO apud, SARLET, 2004b, p. 28).

Argumentam alguns contra o princípio da proibição do retrocesso social, no sentido de que engessaria o legislador, o qual tem de ter "liberdade" para intervir e "voltar atrás no que diz respeito com as próprias decisões". Sarlet cita José Miguel Vaz ao comentar tal situação:

Contra o reconhecimento, em princípio, de uma proibição de retrocesso no que se refere às conquistas sociais, costuma esgrimir-se especialmente o argumento de que esta esbarra no fato de que o conteúdo do objeto dos direitos fundamentais sociais não se encontra, de regra, definido ao nível da Constituição, sendo, além disso, indeter-minável sem a intervenção do legislador, de tal sorte que este deverá dispor de uma quase absoluta liberdade de conformação nesta seara, que, por sua vez, engloba a autonomia para voltar atrás no que diz com as próprias decisões. Liberdade esta que, no entanto, se encontra limitada pelo princípio da proteção da confiança e pela necessidade de justificação das medidas reducionistas. (VAZ apud, SARLET, 2004b, p. 32). [...]

Com efeito, em se admitindo uma ausência de vinculação mínima do legislador (assim como dos órgãos estatais em geral) ao núcleo essencial já concretizado na esfera dos direitos sociais e das imposições constitucionais em matéria de justiça social, estar-se-ia chancelando uma fraude à Constituição, pois o legislador – que ao legislar em matéria de proteção social apenas está a cumprir um mandamento do Constituinte – poderia pura e simplesmente desfazer o que fez no estrito cumprimento da Constituição. Valendo-nos aqui da lição de JORGE MIRANDA (que, todavia, admite uma proibição apenas relativa de retrocesso), o legisla-dor não pode simplesmente eliminar normas (legais) concretizadoras de direitos sociais, porque isto equivaleria a subtrair às normas constitucionais a sua eficácia jurídica, já que o cumprimento de um comando constitucional acaba por converter-se em uma proibição de destruir a situação instaurada pelo legislador. (SARLET, 2004b, p. 33-34).

Luís Roberto Barroso traz abundante esclarecimento acerca da incorporação no patrimônio jurídico de determinados de direitos: "Por este princípio, que não é expresso, mas decorre do sistema jurídico-constitucional, entende-se que se uma lei, ao regulamentar um mandamento constitucional, instituir determinado direito, ele se incorpora ao patrimônio jurídico da cidadania e não pode ser absolutamente suprimido" (apud, SARLET, 2004b, p. 34).

O princípio em comento emana ordens ao legislador no sentido de não retroceder em relação a direitos já incorporados ao ordenamento jurídico e que trazem benefícios sociais à sociedade. Esclarece Sarlet:

[...] as normas constitucionais que reconhecem direitos sociais de caráter positivo implicam uma proibição de retrocesso, já que, ‘uma vez dada satisfação ao direito, este transforma-se, nessa medida, em direito negativo, ou direito de defesa, isto é, num direito a que o Estado se abstenha de atentar contra ele’ [...] verifica-se que, no âmbito do direito constitucional brasileiro, o princípio da proibição de retrocesso, como já sinalizado, decorre implicitamente do sistema constitucional, designadamente dos seguintes princípios e argumentos de matriz jurídico-constitucional: a-) o Princípio do Estado democrático e social de Direito [...]; b-) O princípio da dignidade da pessoa humana [...]; c-) No princípio da máxima eficácia e efetividade de direitos fundamentais contido no artigo 5º, parágrafo 1º, que abrange também a maximização da proteção dos direitos fundamentais.[...]; d) As manifestações específicas e expressamente previstas na Constituição, no que diz respeito à proteção contra medidas de cunho retroativo (na qual se enquadra a proteção dos direitos adquiridos, a coisa julgada e do ato jurídico perfeito) [...]; e-) O princípio da proteção da confiança, na condição de elemento nuclear do Estado de Direito (além da sua íntima conexão com a própria segurança jurídica) [...]; f-) os órgãos estatais[...] encontram-se vinculados[...] a uma certa auto-vinculação em relação aos atos anteriores[...]; g-) Negar reconhecimento ao princípio da proibição de retrocesso significaria, em última análise, admitir que os órgão legislativos, assim como o Poder Público de modo geral, a despeito de estarem inquestionavelmente vinculados ao direitos fundamentais e às normas constitucionais em geral, dispõem do poder de tomar livremente suas decisões mesmo em flagrante desrespeito à vontade expressa do constituinte. (2004b, p. 35-36).

Constata-se que o legislador não pode frustar ou elidir direitos sociais do sistema jurídico sem uma compensação a altura. Portanto, a reforma ou alteração de tais direitos tem de ocorrer nos estritos limites constitucionais, como explicita Sarlet:

Com efeito, como bem lembra Luis Roberto Barroso, mediante o reconhecimento de uma proibição de retrocesso está a se impedir a frustração da efetividade constitucional, já que, na hipótese de o legislador revogar o ato que deu concretude a uma norma programática ou tornou viável o exercício de um direito, estaria acarretando um retorno a situação de omissão (inconstitucional, como poderíamos acrescentar) anterior. Precisamente, neste contexto, insere-se a argumentação deduzida pelos votos condutores (especialmente do então Conselheiro VITAL MOREIRA) do referido leading case do Tribunal Constitucional de Portugal, versando sobre o serviço Nacional de Saúde, sustentando que ‘as tarefas constitucionais impostas ao Estado em sede de direitos fundamentais no sentido de criar certas instituições ou serviços não obrigam apenas a cria-los, obrigam também a não aboli-los uma vez criados’, aduzindo que ‘após ter emanado uma lei requerida pela Constituição para realizar um direito fundamental, é interdito ao legislador revogar esta lei, repondo o estado de coisas anterior. A instituição, serviço ou instituto jurídico por ela criados passam a ter a sua existência constitucionalmente garantida. Uma nova lei pode vir a alterá-los ou reformá-los nos limites constitucionalmente admitidos (grifo nosso); mas não pode vir a extingui-los ou revoga-los’ (2004b, p. 36-37).

Isso tudo demonstra razão para se sustentar vedação quanto a retrocesso em matéria de direitos sociais. Contudo, como tudo tem limites e o equilíbrio é fundamental, eis que os extremos são por demais perigosos, Sarlet, usando da razoabilidade, sentencia que

[...] o reconhecimento de um princípio da proibição de retrocesso não poderia [...] resultar numa vedação absoluta de qualquer medida que tenha por objeto a promoção de ajustes, eventualmente até mesmo de alguma redução ou flexibilização em matéria de segurança social, em que realmente estiverem presentes os pressupostos para tanto. (SARLET, 2004b, p. 40 - grifo nosso).

Com referência à anulação, revogação ou aniquilação de direitos já garantidos, o princípio da proibição de retrocesso social impede que a Constituição seja "rasgada" por uma maioria parlamentar espúria e arranjada de última hora. Os direitos dos cidadãos, constitucionalmente garantidos não são passíveis de aniquilamento, mesmo que essa turba de próceres queira extirpá-los, tudo porque se vive num Estado democrático de direito, onde a proibição do retrocesso social é imanente a tal regime. Explica Canotilho:

A "proibição de retrocesso social" nada pode fazer contra as recessões e crises econômicas (reversibilidade fáctica), mas o princípio em análise limita a reversibilidade dos direitos adquiridos (ex.: segurança social, subsídio de desemprego, prestações de saúde), em clara violação do princípio da protecção da confiança e da segurança dos cidadãos no âmbito econômico, social e cultural, e do núcleo essencial da existência mínima inerente ao respeito pela dignidade da pessoa humana. [...] A violação do núcleo essencial efetivado justificará a sansão de inconstitucionalidade relativamente a normas manifestamente aniquiladoras da chamada ‘justiça social’. Assim, por ex., será inconstitucional uma lei que extinga o direito a subsídio de desemprego ou que pretenda alargar despropocionadamente o tempo de serviço necessário para a aquisição do direito à reforma [...] A liberdade de conformação do legislador nas leis sociais nunca pode afirmar-se sem reservas, pois está sempre sujeita ao princípio da igualdade, princípio da proibição de discriminações sociais e de políticas anti-sociais. As eventuais modificações destas leis devem observar os princípios do Estado de direito vinculativos da actividade legislativa e o núcleo essencial dos direitos sociais. O princípio da proibição de retrocesso social pode formular-se assim: o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efectivado através de medidas legislativas [...] deve considerar-se constitucionalmente garantido sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam, na prática, numa ‘anulação’, ‘revogação’ ou ‘aniquilação’ pura e simples desse núcleo essencial. [...] a liberdade de conformação do legislador e inerente auto-reversibilidade têm com limite o núcleo essencial já realizado, sobretudo quando o núcleo essencial se reconduz à garantia do mínimo de existência condigna inerente ao respeito pela dignidade da pessoa humana (CANOTILHO, 2003, p. 339-340).

Para que o princípio da proibição do retrocesso social não venha a ser violado, inquestionavelmente, e em primeira mão, o legislador sempre terá de se interrogar: direitos que já estão garantidos não podem ser retirados do trabalhador sem a devida compensação.

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Sobre o autor
Paulo Cezar Jacoby dos Santos

Bacharel em Direito.Formado pela Universidade de Passo Fundo - RS Campus Lagoa Vermelha - RS.Diretor de Secretaria da Vara do Trabalho de Lagoa Vermelha - RS

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Paulo Cezar Jacoby. Flexibilização das normas trabalhistas e sua constitucionalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2022, 13 jan. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12200. Acesso em: 24 abr. 2024.

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