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Flexibilização das normas trabalhistas e sua constitucionalidade

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13/01/2009 às 00:00
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3. REFORMA TRABALHISTA

A análise dos fenômenos do neoliberalismo e da globalização é tema deste capítulo com objetivo de se entender o porquê da crescente defesa da flexibilização das normas trabalhistas.

3.1 Neoliberalismo e globalização

José Martins Catharino na sua obra Neoliberalismo e seqüela, trata do tema dispondo-o em quatro partes, quais sejam: privatização, desregulamentação, flexibilização e terceirização. (CATHARINO, 1997). Quando trata do liberalismo, o autor mostra que "liberalista" não é o mesmo que "liberal". Ensina que o "[...] adepto do liberalismo é acima de tudo um individualista. Tanto que liberalismo e individualismo têm sinomínia quase perfeita". Segue esclarecendo que o liberal é permeável, poroso, tolerante, generoso, dadivoso, até pródigo, "mão aberta", ao passo que o liberalista, por ser individualista, pode até ser "unha de fome", "ter cobra no bolso". (1997, p. 8).

Segundo Antônio Fabrício de Matos Gonçalves, a ordem do neoliberalismo é o declínio da intervenção estatal nas regras do mercado. Menciona o autor:

Com o declínio do welfare state, o intervencionismo estatal vem perdendo força, avançando, então, as políticas neoliberais. Muda o referencial, quem tem que dar as cartas no jogo da economia é o mercado. Neste quadro, importa diminuir o tamanho do Estado, a ordem é privatizar. (PIMENTA, 2004, p.215-216).

Para que o capital estrangeiro adentre nas fronteiras nacionais do Estado neoliberal, este faz do possível ao impossível: "[...] Há redução de impostos para o capital externo, admite-se a precarização do emprego, o avanço da terceirização e a flexibilização das leis trabalhistas [...]." (PIMENTA, 2004, p. 216).

O neoliberalismo penetrou profundamente no Direito do Trabalho, intensificando princípios que reclamavam a emergência da cidadania moderna, ao lado da figura de um trabalhador vendedor de mão-de-obra, estruturalmente cidadão, e retirando-lhe sua condição essencial fixada no princípio da proteção, bem como seu caráter político. [...] assim, uma empresa moderna, hoje, instala-se nos estados que lhe garantam a anulação das conquistas sociais, do poder dos sindicatos e das associações civis, que insistem em defender melhorias salariais, condições de trabalho e o meio ambiente. [...] surge a discussão acerca da flexibilização das relações de trabalho (SILVA, 2002, p. 17-18).

É interessante a colocação que traz Gonçalves quando cita Ethan B. Kapstein: "Justamente no momento em que os trabalhadores mais necessitam do Estado-Nação como amortecedor, para absorver os choques da economia mundial, ele os está abandonando."(KAPSTEIN apud, PIMENTA, 2004, p. 216).

O neoliberalismo "[...] é, sem dúvida, a tentativa de alterar a lógica protetiva do Direito do Trabalho para uma lógica flexível. [...]" (PIMENTA, 2004, p. 216). Segundo Vieira,

a visão dominante entre os neoliberais é de que a recessão representa uma curva cíclica e temporária, e que o mecanismo de livre mercado assegurará a recuperação econômica. A pobreza, a fome, as guerras civis são negligenciadas como algo próprio dessas sociedades em transição, um estágio evolutivo doloroso rumo à democracia e ao livre mercado. Nenhuma conexão é feita entre o colapso das economias nacionais e o subjacente processo de reestruturação global. (2001, p. 89).

Com efeito, o Estado neoliberal distancia-se do cidadão e o faz refém do capitalismo selvagem, que, na busca incessante do lucro, transforma o trabalhador num objeto ou, mais precisamente, numa res (coisa).

A globalização é, por seu turno, na lição de Giddens, "a intensificação de relações sociais em escala mundial que ligam localidades distantes de tal maneira, que acontecimentos locais são modelados por eventos ocorrendo a muitas milhas de distância e vice-versa." (GIDDENS apud, VIEIRA, 2001, p. 73). Segundo Liszt Vieira,

O ponto de partida da globalização é o processo de internacionalização da economia, ininterrupta desde a Segunda Guerra Mundial. Por internacionalização da economia mundial entende-se um crescimento do comércio e do investimento internacional mais rápido do que o da produção conjunta dos países, ampliando as bases internacionais do capitalismo (incorporação de mais áreas e nações) e unindo progressivamente o conjunto do mundo num circuito único de reprodução das condições humanas de existência. (2001, p. 76-77).

Vieira destaca ainda que "[...] quem comanda a economia global é cada vez mais o mercado financeiro: em última análise, são grandes corporações, e não os governos, que decidem sobre câmbio, taxa de juros, rendimento da poupança, dos investimentos, preços de comodities etc. [...]." (2001, p. 81). Sustenta, também, que uma das dimensões da globalização é a exclusão social e a transformação dos trabalhadores em população descartável (2001, p. 90). Salienta que, simultaneamente à acumulação de capitais e ao poder de coerção assentado no domínio das informações, do saber e das novas tecnologias, com a globalização ocorre

[...] uma transferência espacial de investimentos para o Terceiro Mundo (mão-de-obra mais barata), 20% da população mundial sobrevivem com uma renda diária de menos de 1 dólar. O salário por hora de um operário chinês pode valer US$ 0,03, enquanto que na Alemanha é de US$ 12,32. Índia, Indonésia, Malásia, Vietnã, México e Rússia tem salários (por hora) inferiores a US$ 1. (VIEIRA, 2001, p. 90-91).

Fazendo um comparativo com o descrito por Vieira, trazem-se à baila manifestações do ex-presidente do Brasil Fernando Henrique Cardoso e do ex-ministro da Fazenda Antônio Delfim Neto. Para Fernando Henrique Cardoso

a globalização está multiplicando a riqueza e desencadeando forças produtivas numa escala sem precedentes. Tornou universais valores como a democracia e a liberdade. Envolve diversos processos simultâneos: a difusão internacional da notícia, redes como a internet, o tratamento internacional de temas como o meio ambiente e direitos humanos e a integração econômica e global. (CARDOSO apud, PIMENTA, 2004, p. 214).

Para Antônio Delfim Neto,

a globalização é a revolução do fim do século. Com ela a conjuntura social e política das nações passa a ser desimportante na definição de investimentos. O indivíduo torna-se uma peça na engrenagem da corporação. Os países precisam se ajustar para permanecer competitivos numa economia global – e ai não podem ter mais impostos, mais encargos, ou mais inflação que outros. (apud, PIMENTA, 2004, p. 214-215).

Percebe-se que neoliberalismo e globalização andam imbricados. No entanto, o que se tem visto é que trabalhadores estão sendo descartados do mercado de trabalho e que o Estado neoliberal e globalizado tenta, de toda a forma, mais ainda, flexibilizar ou desregulamentar as relações laborais mantidas em seus ordenamentos jurídicos, adentrando, assim, neste mundo onde o futuro encontra-se em lugar incerto e não sabido.

3.2 Flexibilização e desregulamentação

Primeiramente, conceitua-se "flexibilização" visto que, por tratar-se de neologismo, ainda não é de domínio público tal conceito. No entanto, sabe-se que ser flexível é ser maleável e, no fundo, é isso que "flexibilização" traz como núcleo essencial. Etimologicamente, segundo Antônio Álvares da Silva,

o verbo português "flexibilizar" provém do latino "flecto, flectis, flectere, flexi, flectum", que significa curvar, dobrar, fletir. Depois, por complementação semântica, possui vários sentidos conexos ou paralelos, tais como fazer voltar, dirigir o rumo, tornear, mover, comover, mudar, modificar.

Flectere arcus – disender o arco. Flectere gemina acies – voltar os dois olhos. Flecti cursos ou iter – ter o curso mudado, desviar, afastar, etc.

A palavra tem, portanto, dois sentidos. Um, o etimológico, que é o básico: dobrar. O outro, figurado, mudar de curso, de posição, etc. De fato, toda vez que flexibiliza, inclusive no Direito, muda-se de situação. (SILVA, 2002, p. 52).

Sérgio Pinto Martins explica que, para estudar determinado tema, deve-se, primeiro, fazer uma "[...] análise da sua denominação, que poderá ajudar a compreender aquilo que se pretende estudar. [...]." (2002, p. 21). E continua o autor:

A denominação flexibilização parece mais adequada. Flexibilidade é qualidade de flexível; elasticidade, destreza, agilidade, flexão, flexura; faculdade de ser manejado; maleabilidade; aptidão para variadas coisas ou aplicações; é o que pode dobrar ou curvar; é o contrário de rigidez. Flexível vem do latim flexibile. Na prática, os estudiosos acabaram preferindo o termo flexibilização.

A palavra flexibilização é um neologismo, não encontrado nos dicionários. É originária do espanhol flexibilización.

[...]

O certo não seria falar em flexibilização do Direito do Trabalho, mas em flexibilização das condições de trabalho, pois estas que serão flexibilizadas.

[...]

Prefiro dizer que a flexibilização das condições de trabalho é o conjunto de regras que tem por objetivo instituir mecanismos tendentes a compatibilizar as mudanças de ordem econômica, tecnológica, política ou social existentes na relação ente capital e o trabalho. (MARTINS, 2002, p. 21-25).

Traz-se ainda definição formulada por Oscar Ermida Uriarte, a qual é muito ampla, como o próprio autor esclarece:

Em termos muitos gerais e no âmbito do Direito do Trabalho, a flexibilidade pode ser definida como eliminação, diminuição, afrouxamento ou adaptação da proteção trabalhista clássica, com a finalidade – real ou pretensa – de aumentar o investimento, o emprego ou a competividade da empresa. (URIARTE, 2004, p. 217-252).

Ives Gandra da Silva Martins Filho assinala:

A flexibilização representa a atenuação da rigidez protetiva do Direito do Trabalho, com a adoção de condições trabalhistas menos favoráveis do que as previstas em lei, mediante negociação coletiva, em que a perda de vantagens econômicas poderá ser compensada pela instituição de outros benefícios de cunho social, que não onerarão excessivamente a empresa, nos períodos de crise econômica (efeito da globalização) ou de transformação na realidade produtiva (efeito do avanço tecnológico). (MARTINS FILHO, 1999, p. 589).

José Martins Catharino, de forma didática e esclarecedora, conceitua "flexibilização" de modo a não deixar dúvidas:

Flexibilidade é o mesmo que ductibilidade e maleabilidade, que pressupõem elasticidade. [...] Flexibilizar é fazer do rígido flexível, ou o que já o é mais ainda. [...] Em amplo sentido, a "flexibilização" é maneira de adaptação de normas jurídicas para atender alterações verificadas na economia. Em sentido estrito, ... de normas jurídicas trabalhistas para atender às alterações na economia, refletidas nas relações entre trabalho e capital. [...] Flexibilizar não é desregular. É regular de modo diferente do que se acha regulado. [...] Variável, também, o grau de ‘flexibilização’, do mínimo ou máximo, podendo, por conseqüência, ser de pouca relevância, de alguma, ou até chegar perto de ruptura ou fratura de norma existente. Dando-se isto, ocorrerá "desregulação", com ou sem regulação substitutiva. (CATHARINO, 1997, p. 49-51 – grifo nosso).

Numa análise preliminar, constata-se que a "flexibilização" normativa é assunto que tem posto estudiosos a discorrer sobre o tema.

Flexibilizar significa tornar flexível, entendendo-se, como tal, aquilo que se pode dobra ou curvar. Flexibilização é pois, o contrário de rigidez, e visa, portanto, tornar o Direito do Trabalho maleável, capacitando-o a se modelar, segundo a realidade do contexto social e das relações trabalhistas da atualidade. A flexibilização tem por escopo, exatamente, propiciar o rápido ajustamento do complexo normativo laboral às mudanças decorrentes das flutuações econômicas, evoluções tecnológicas ou quaisquer outras alterações que requeiram imediata adequação da norma jurídica. [...] a teoria da flexibilização das condições de trabalho, suas causas, conseqüências, tendências e limitações são um campo aberto à análise reflexiva sob diferentes abrangências, especialmente aquela que contempla o ponto de vista jurídico, de vez que suscita antagônicos posicionamentos, sendo muitos radicais quando entendem flexibilização como desregulamentação das leis trabalhistas – distinção mister a ser colocada. (SILVA, Silvano, 2002, p. 17-19).

Priscila Campana, tratando de desregulamentação e flexibilização, menciona – e com razão – a distinção que se faz acerca de tais institutos, visto que o que se quer, seja com flexibilização, seja com ou desregulamentação, é a retirada do Estado das relações laborais. Segundo a autora,

muitos autores fazem a distinção entre o conceito de flexibilização e o conceito de desregulamentação, traçando critérios para a sua comparação e elaborando classificações.

Contudo, como a finalidade a ser alcançada aqui é a de trazer o cunho ideológico e político das flexibilizações, as diferenças terminológicas são de menor importância, já que tanto o que seria a flexibilidade quanto o que seria a desregulamentação servem ao mesmo plano neoliberal, fazendo parte, como um todo, do processo de supressão das conquistas obtidas no Estado social. [...]

Infelizmente, o que muitos autores acabam fazendo quando elaboram as diferenciações entre desregulamentação e flexibilização é apenas mascarar o fator ideológico desse processo de ‘retirada dos direitos sociais’, sem questionamentos políticos e filosóficos. [...]

A flexibilização é simples reformatio in pejus, [...].

Em outras palavras, a flexibilização significa a renúncia, pelos trabalhadores, de muitos de seus direitos conquistados e positivados. (CAMPANA, 2000, p. 136).

Pois bem, o Estado, vencida a barreira da privatização, volta-se agora contra o trabalhador para "desregulamentar", o que, nas palavras de José Martins Catharino, é "desregulação" em sentido estrito e quer dizer, de acordo com o pensamento liberal,

[...] reduzir ao máximo as regras ditadas pelo Estado e aumentar a privatização normativa. [...] A desregulação, a grosso modo, pode ser processada com a diminuição das regras ditadas pelo Estado, ou pela redução de sua intensidade e extensão. [...] Em síntese, redução das normas heterônomas e aumento das autônomas. (CATHARINO, 1997, p. 42-43).

O mestre Catharino diz que a desregulação é o consectário da privatização, na qual "[...] Público privatizável é o que resulta da ação do Estado. Assim entendido, privatizar implica reduzir a participação do Estado na economia. [...]." (CATHARINO, 1997, p. 32-41). Também Otávio Brito Lopes comenta a diferenciação entre flexibilização e desregulamentação esclarecendo que não se confundem:

A flexibilização das condições de trabalho resulta redução de direitos trabalhistas, mediante negociação coletiva, com o objetivo de diminuir custos e possibilitar ao empregador transpor períodos de crise nos quais a continuidade da atividade empresarial e a manutenção de postos de trabalho são os bens maiores a defender. Não se pode, portanto, confundir a flexibilização das condições de trabalho com a desregulamentação do Direito do Trabalho, como fazem alguns autores, pois esta simplesmente ‘retira a proteção do Estado, permitindo que a autonomia privada, individual ou coletiva regule as condições de trabalho e os direitos e obrigações advindos da relação de emprego.’ (LOPES, 2000, p. 716-717).

Igualmente Arnaldo Süssekind contribui com a distinção entre flexibilização e desregulamentação e com veemência registra:

[...] a desregulamentação do Direito do Trabalho, que alguns autores consideram uma das formas de flexibilização, com esta não se confunde. A desregulamentação retira a proteção do Estado ao trabalhador, permitindo que a autonomia privada, individual ou coletiva, regule as condições de trabalho e os direitos e obrigações advindos da relação de emprego. Já a flexibilização pressupõe a intervenção estatal, ainda que básica, com normas gerais abaixo das quais não se pode conceber a vida do trabalhador com dignidade. (SÜSSEKIND, 2003, p. 52).

Antônio Silva diferencia flexibilização da desregulamentação fazendo uma distinção esclarecedora sobre o tema. Colaciona que,

se a flexibilização assumir um nível intenso, até retirar do Direito do Trabalho suas características principais, estaremos diante do fenômeno da desregulação (110), que é mais do que flexibilização. Deixará ele de ser uma disciplina jurídica autônoma. Perderá seu lugar na ciência do Direito. O Direito Individual do trabalho, que tem base contratual, retornará ao direito comum das obrigações. Será, como os demais, um contrato de direito privado, como qualquer outro, tendo como objeto o trabalho humano, que então se transformará efetivamente numa mercancia como outra qualquer. [...]

(110) A distinção entre os dois nomes é útil, porque designa fenômenos diferentes. A flexibilização é fenômeno mais genérico, que se aproxima da adaptação. Pode até implicar alguma perda de normas, não é este seu objetivo principal. Já a desregulação é a supressão de normas, sem que nenhuma compensação seja posta em lugar. Retira-se o direito trabalhista sem qualquer compensação. Por isso é que se diz que ela leva, se praticada com intensidade, à extinção do Direito do Trabalho. [...] (SILVA, 2002, p. 108).

Sérgio Pinto Martins também faz referência à distinção existente entre flexibilização e desregulamentação, esclarecendo que não se pode confundi-las:

Não se confunde flexibilização com desregulamentação. Desregulamentação significa desprover de normas heterônomas as relações de trabalho. Na desregulação, o Estado deixa de intervir na área trabalhista, não havendo limites na lei para questões trabalhistas, que ficam a cargo da negociação individual ou coletiva. Na desregulação, a lei simplesmente deixa de existir. Na flexibilização, são alteradas as regras existentes, diminuindo a intervenção do Estado, porém garantindo um mínimo indispensável de proteção ao empregado, para que este possa sobreviver, sendo a proteção mínima necessária. A flexibilização é feita com a participação do sindicato. Em certos casos, porém, é permitida a negociação coletiva para modificar alguns direitos, como reduzir salários, reduzir e compensar jornada de trabalho, como ocorre nas crises econômicas. [...]

Distingue-se a flexibilização da precarização do trabalho. Nesta, há o trabalho incerto, instável e indefinido, a regulamentação insuficiente do trabalho. Na flexibilização deve haver a manutenção de um nível mínimo de legislação, com garantias básicas ao trabalhador e o restante seria estabelecido mediante negociação coletiva. (MARTINS, 2002. p. 26-27).

Martins menciona ainda que "[...] é mister a conciliação entre o econômico, que é a produção, e social, que é a própria sobrevivência do trabalhador e de sua família, necessitando haver maior flexibilização das condições de trabalho para manter o próprio trabalho.[...]" (2002, p. 19).

Na flexibilização, as próprias partes criam as normas que as vão reger – contrato de trabalho –, as quais, segundo José Martins Catharino, "podem ser da mesma fonte, ou por norma de outra fonte". Continua o autor:

Mais apropriada é flexibilizar norma heterônoma por autônoma. "Flexibilização" máxima ocorre quando a) é derrogada a norma considerada rígida; b) a norma, tida como rígida, é transformada de imperativa em imperfeita ou supletiva da vontade dos interessados. Embora diversa a técnica, os efeitos são semelhantes.

Ambos os meios são, por certo, os mais "neoliberalistas", e trazem no seu bojo o perigo de posterior "flexibilização" parcial, ou unilateral, com vantagem dos empregadores, e, por conseqüência, desvantagem para os empregados. Involução, recuo e retrocesso, que representa perigo anti-humanista. Volta ao perigo trágico em que dominou soberana a igualdade meramente formal, fonte de tremenda desigualdade real e social.

Para isso não acontecer, ou para que aconteça em menor grau, para o preenchimento do vazio deixado pela norma derrogada, ou para evitar os efeitos de perda de sua imperatividade, o caminho certo é o da negociação coletiva sindical, único capaz de levar à "flexibilização" completa, ou bilateral, reciprocamente vantajosa.

[...]

Na hipótese de "flexibilização" de norma heterônoma por outra da mesma fonte, algumas técnicas podem ser assinaladas, dentre elas: a) abrir ou aumentar as exceções a determinada regra; b) reduzir o casuísmo taxativo e esgotante, ou adotar a enumeração simplesmente exemplificativa. (CATHARINO, 1997, p. 55 – grifo do autor).

Verifica-se, quanto à "flexibilização", que a tendência é ser feita de modo unilateral, como pondera Catharino: "[...] A tendência lógica, condizente com o pensamento liberalista econômico, é a de que seja feita ‘flexibilização’ unilateral, favorecendo a empresa, o que significa dar predominância às leis econômicas vigentes. [...]." (1997, p. 52).

É "falacioso", no entender do ministro José Luciano de Castilho Pereira, dizer que a flexibilização das normas trabalhistas irá aumentar o número de empregos de qualidade. Pode até aumentar, porém o trabalhador pagará com o preço da escravidão, eis que, "[...] nessa linha, reformar a legislação trabalhista é afastar o Estado das relações laborais. [...]" (2004, p.18).

Veja-se o que está acontecendo nos Estados Unidos, que o mundo todo tem como o "todo-poderoso", pensando que lá reina o pleno emprego e que o Estado não interfere nas relações laborais. Ledo engano. Novamente traz-se à baila fragmento do artigo do ministro José Luciano:

Pois bem, como se sabe, a campanha presidencial americana tem na política externa a tentativa de tornar racional a insanidade da guerra do Iraque; mas, quanto à política interna, o grande debate se prende ao desemprego e à precarização do trabalho.

Em artigo publicado no Le Monde do dia 17 de setembro último, sob o título Ma politique economique, o candidato democrata John Kerry escreveu o seguinte:

‘Ao longo do ano passado, os salários reais ficaram baixos, e o mesmo número de empregos criados, nos últimos doze meses, constitui a pior performance em mais de cinqüenta anos (...). De fato, um milhão e setecentos mil empregos criados no último ano é inferior aos piores anos do mandato do Presidente Clinton e abaixo do número que seria necessário para colocar os que estão desempregados e aqueles que chegam ao mercado de trabalho. ’

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Verifica-se, pois, que é falacioso o argumento de que a flexibilização da legislação trabalhista brasileira – em um modelo americano – significará, necessariamente, aumento de emprego de qualidade. (PEREIRA, 2004, p.18).

Continua-se diuturnamente, a ser bombardeado com petardos de que o desemprego no Brasil é conseqüência da legislação trabalhista protetora (PEREIRA, 2004, p. 17), quando, na realidade, sabe-se que não é a proteção dispensada ao trabalhador a causa do desemprego, mas, sim, uma política econômica que onera os empresários com juros altos e que embute nos salários dos trabalhadores impostos e contribuições sociais, conduzindo a que um posto de trabalho custe ao empregador o dobro do salário pago ao trabalhador.

José Pastore traz dados que, mesmo longínquos (1993), vêm ilustrar o aqui exposto, eis que a atual realidade mostra que tal situação, se mudou, foi pouco e, pode-se afirmar, se houve tal mudança, foi no sentido de elevação dos índices, com raras exceções. Vejam-se:

Os resultados para 1993 são apresentados na Tabela 5.2. Eles registram o peso dos encargos trabalhistas sobre o valor da folha de salários, em porcentagem. Esses resultados significam que, para cada 100 unidades pagas a título de remuneração, as empresas brasileiras pagam 91,9% de encargos sociais – a mais alta carga na comparação efetuada. Em outras palavras, cada trabalhador custa para a empresa, o dobro de seu salário.

[...]

No Brasil, para cada folha de salários que custe 100 unidades monetárias, as empresas gastam quase 92 unidades adicionais com encargos sociais (Tabela 5.2). Ao se incluir o 13º, isso chega a 102%. Dos países estudados, apenas a França chega perto do Brasil. A Itália gasta 51%; a Bélgica, 45%; e a Dinamarca aproximadamente 12%. [...]. (PASTORE, 1994, p.141).

Conforme menciona Uriarte, "[...] misturando a razão com os números, é o caso de lembrar que os dois objetivos básicos da desregulamentação são baratear o custo do trabalho para melhorar a competitividade da empresa e aumentar o emprego ou diminuir a desocupação. [...]". (URIARTE, 2004, p. 246-247). Destaca ainda que o custo da mão-de-obra (trabalhador) gira em torno de um décimo do custo total da produção, o que vem ao encontro da pesquisa formulada por Pastore mencionada, onde fica claro que é falácia, utilizando o termo empregado pelo ministro Pereira (2004, p. 18), que a causa do desemprego no Brasil é a excessiva proteção da legislação trabalhista ao hipossuficiente – o trabalhador.

Acontece, porém, que em geral, os direitos trabalhistas ou o grau de proteção do trabalhador afetam muito pouco o custo total da produção e menos ainda o preço de venda de um produto. Na indústria manufatureira, o custo do trabalho é ínfimo como percentual do custo total de produção e menor ainda como percentual de preço de venda. Pareceria que, em média, em nossos países, o custo do trabalho tenderia a situar-se em volta de 10% do custo da produção. Por que então empenhar-se em responsabilizar esse fator pela pouca ou alta competividade? Não seria mais razoável buscar soluções nos outros 90%? Se os custos do trabalho fossem mediamente importantes, como explicar que os países, nos quais a participação do salário na renda nacional é de 60%, 70% ou 80%, sejam mais competitivos que os nossos, nos quais a participação do salário na renda nacional é sempre inferior a 30%? Por que, numa época de tanta manipulação estatística, econométrica, numérica, é tão difícil encontrar medições do percentual do salário no custo total da produção e no preço de venda do produto?

Em relação ao suposto efeito positivo da desregulação/flexibilização sobre o emprego, as simples cifras são eloqüentes. (URIARTE, 2004, p. 217-252).

Arnaldo Süssekind, no entanto, defende ponto de vista um tanto diferenciado dos dados estatísticos apresentados por Pastore:

Embora alguns tributos não correlacionados com o emprego incidam desarrazoadamente sobre salários, entendemos que a respectiva folha de pagamentos não é onerada com 102%, como geralmente se afirma. É que a tabela amplamente divulgada computa injustificadamente:

a) o custo do repouso semanal, dos feriados e das férias anuais, representados por parcelas já inseridas no salário mensal sobre o qual incidem os 35,8% dos encargos sociais;

b) as despesas decorrentes de despedidas arbitrárias ou sem justa causa, as quais, quando não praticadas, não possibilitam a devolução do seu valor aos consumidores;

c) o custo aleatório do salário-enfermidade, como se todos os empregados adoecessem anualmente por períodos que justificassem a contratação de substitutos, sendo que o licenciamento superior a quinze dias corre por conta do INSS. (SÜSSEKIND, 2003, p. 50).

Dinaura Godinho Pimentel Gomes, Doutora em Direito pela Universidade Degli Studi di Roma – La Sapienza, pós-doutoranda em Direito junto à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e juíza do Trabalho da 9ª Região, em seu balizado artigo "O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e a flexibilização da legislação trabalhista", também traz números a respeito do custo de um empregado:

Sabe-se que um empregado, nos Estados Unidos, que ganha US$ 1.000,00, custa à empresa US$ 1.100,00, ou seja, 10% a mais em custos indiretos. No Brasil, o mesmo salário custa à empresa quase o dobro, ou seja, mais de 90% de acréscimo sobre a folha de pagamento mensal, sem retorno adequado de benefícios ao trabalhador. (GOMES, 2003, p. 127).

Os dados estatísticos colacionados falam por si sós e mostram que o problema não reside na flexibilização ou na desregulamentação das normas trabalhistas, mas, sim, naquilo que os números mostram.

O direito do trabalho é um ramo da ciência jurídica que está estreitamente vinculado com a dignidade do trabalhador; assim, flexibilizá-lo ou desregulamentá-lo significa transformá-lo (o trabalhador) "em qualquer coisa", em mercadoria desvalorizada e descartável. "[...] É público e notório que a precarização do emprego formal, o desemprego e a informalidade têm enfraquecido o poder de quem procura seu emprego, aceitando qualquer coisa para mantê-lo. [...]" (PEREIRA, 2004, p.20 - grifo nosso). Isso é trágico, pois está se fazendo ruir o Estado democrático de direito, o qual tem sua base, dentre outros, no princípio da dignidade da pessoa humana, que é seu fundamento.

O trabalho traz dignidade às pessoas e não pode ser transformado em mercadoria, coisificado, visto que é um direito da humanidade ter um trabalho, e mais, um trabalho descente e com remuneração digna. No entanto, para os economistas, segundo José Martins Catharino, "[...] o fundamental é o resultado do trabalho e não quem produz, pois o primeiro tem valor econômico, sendo insumo da produção. É considerado como se fosse coisa, e o salário, seu custo, como outro qualquer. [...]". (1997, p. 25).

Carlos Alberto Cunha também manifesta-se sobre o tema:

O Direito do Trabalho emerge como primeiro direito da pós-modernidade, como fruto da composição político-jurídica entre classes dominantes, o Estado e os trabalhadores. Junta-se ao direito do consumidor e do meio ambiente como direitos emancipatórios em face do mercado.

[...]

Freqüentemente coloca-se o ordenamento legislativo trabalhista como impeditivo do desenvolvimento econômico. Grave equívoco histórico, no mínimo. O direito do trabalho surgiu exatamente para proteger o trabalhador, já que pela simples regra do mercado o trabalho se converte em mera mercadoria. [...] O direito do Trabalho, ao valorizar o trabalhador e o trabalho, valoriza a sociedade como um todo. (CUNHA, 2004, p. 16-17)

Na Constituição Federal as únicas possibilidades de flexibilização são encontradas no artigo 7º, incisos VI, XIII e XIV, e somente em situações de estado de defesa ou estado de sítio tais princípios podem ser modificados para pior.

I – O art. 7º a Constituição Federal, em sua parte final, dispõe que as novas leis trabalhistas devem contribuir para a melhoria da condição social do empregado. Todos os direitos trabalhistas estabelecidos no texto constitucional são garantias mínimas e deve-se buscar ao máximo a melhoria de condição de vida do trabalhador. O postulado normativo da norma mais favorável ao obreiro está implícito neste artigo. Na interpretação de conflitantes normas de direito do trabalho, os juristas (latu sensu) devem aplicar aquela que mais favorecer ao empregado (salvo as exceções previstas nos artigos 7º, VI, XIII e XIV da Carta Magna). Fazendo uma interpretação teleológica, podemos dizer também que a Constituição, no seu art. 7º, proíbe que as condições mais vantajosas e conquistadas pelo empregado sejam modificadas para pior. Esse princípio só deve ser ponderado nos casos de estado de defesa e estado de sítio, isto é, somente nas hipóteses previstas nos artigos 136, caput, e 137 da CF/88. Desse modo, em momentos de normalidades constitucionais, qualquer emenda constitucional ou qualquer lei que não gere uma melhoria social para o trabalhador é inconstitucional. Se avançarmos um pouco, sem trair o nosso pensamento, qualquer norma que fira um princípio constitucional trabalhista é inconstitucional, a mercê de não conferir aos direitos sociais trabalhistas, mesmo que considerados fundamentais, a rigidez dispensada aos direitos e garantias individuais, insuscetíveis de emenda à Constituição. Os doutrinadores Edilton Meireles e J. J. Gomes Canotilho chamam o princípio verificado neste item 1 de princípio do não retrocesso social e princípio da proibição do retrocesso social, respectivamente. Preferimos adotar a nomenclatura de princípio de proteção ao trabalhador, já sedimentada pelo mestre Américo Plá Rodrigues, só que elevado a nível constitucional. (princípio constitucional de proteção ao trabalhador) (ALMEIDA, 2004, p. 463-464).

Arnaldo Süssekind corrobora as palavras de Edvaldo Nilo de Almeida esclarecendo que as normas constitucionais trabalhistas só podem ser flexibilizadas em três hipóteses:

A Constituição brasileira de 5 de outubro de 1988 possibilitou a flexibilização de algumas de suas normas: redutibilidade salarial, compensação de horários e trabalho noturnos de revezamento (art. 7º, VI, XIII e XIV); mas sempre sob a tutela sindical. (SÜSSEKIND, 2003, p. 56).

Otávio Brito Lopes, comentando a flexibilização, esclarece que a Constituição permitiu tal desiderato, no entanto esclarece que,

como regra geral, as condições mínimas de trabalho previstas na CF são inderrogáveis pela vontade das partes, mesmo na esfera da autonomia privada coletiva. A Constituição abriu uma exceção ao permitir a flexibilização das condições de trabalho no art. 7º, incisos VI [...], XIII [...] e XIV [...], pode se afirmar, como regra geral, que a flexibilização decorre da negociação coletiva e se exterioriza (ganha contornos jurídicos ou se instrumentaliza) em acordos ou convenção coletiva de trabalho (LOPES, 2000, p. 716-717).

Carlos Alberto Cunha, valendo-se de uma metáfora que bem demonstra o teor da flexibilização, argumenta:

Sob color de flexibilização, tendo à frente o slogan da prevalência do negociado sobre o legislado, o Estado brasileiro imprime o intervencionismo branco, ilusório, semântico, que encobre a desregulamentação completa da legislação social tutelar, [...].

As leis protetivas do trabalho são raios de explendor que provêm do cume da perâmide legislativa, onde está o centro-mor de força e de irradiação regente. Do bem encadeado e sistêmico centro gerador de normatividade, chispam fagulhas que se energizam em processo contínuo e harmônico, sob a forma de condutores que se ligam, numa espiral-ricochete, iluminando todo o ordenamento jurídico. Estão unidos, assim, o binômio dignidade-trabalho e a este os direitos sociais. (CUNHA, 2004, p. 322).

Quando Cunha destaca que "as leis protetivas do trabalho são raios de esplendor que provêm do cume da pirâmide legislativa, onde está o centro-mor de força e de irradiação regente", tem-se de admitir que está falando da Constituição, eis que logo a seguir destaca:

Não pode ser relegado ao oblívio que as hipóteses de flexibilização constitucional foram delimitadas numerus clausus, permitindo-se, através de negociação coletiva a redução de salários e de jornada de trabalho, compensação de horários e ampliação da jornada nos casos de turnos ininterruptos de revezamento, consoante art. 7º, incisos IX, XIII e XIV da CF/88. ‘Expandir essas três hipóteses constitucionais, mediante precária norma resultante de convenção coletiva, seria legislar de forma inadmissível e contra legem, dispondo do indisponível e renunciando ao irrenunciável.’ (CUNHA, 2004, p. 324).

Acerca da flexibilização permitida pela Constituição, Priscila Campana faz voz uníssona com os demais doutrinadores trazidos à baila nesta parte do trabalho monográfico, lembra:

Como a crise do Estado social é acompanhada pela tendência à flexibilização no Direito do Trabalho, não é de hoje que existem as flexibilizações legalmente instituídas, [...].

[...] o ordenamento jurídico constitucional traz alguns dispositivos com clara inspiração flexibilizadora: o art. 7º, VI [...], XIII e XIV, (CAMPANA, 2000, p. 137).

Finalizando seu artigo, Campana menciona:

[...] em países que desregulamentaram o mercado de trabalho, como a Argentina e Espanha, as taxas de desemprego estão atualmente entre as mais elevadas – respectivamente, 29% e 24% [...].

Nessas circunstâncias, o que os teóricos da flexibilização objetivam é a volta a um Estado de dois séculos atrás: descomprometido com os conflitos sociais provenientes das relações de trabalho, e que são solucionados em base puramente autocompositiva.

Esse Processo desregulamentador, parte do projeto neoliberal, não traz benefícios para os trabalhadores, ao contrário, significa a volta à exploração de mão-de-obra que ocorria no século passado, um retrocesso diante de tantas conquistas e lutas pelos direitos fundamentais do homem e sua positivação.

A flexibilização dos direitos sociais, assim, é mais um mecanismo capitalista de manutenção do sistema de exploração e auferição de lucros às empresas e conglomerados econômicos. Flexibiliza-separa a manutenção da mais valia, para o controle da taxa de lucro. Quanto menos "encargos sociais" tiver o capitalista, quanto menos gastar com o trabalhador, melhor gerencia seus interesses na busca por acumulação de capital. (CAMPANA, 2000, p. 137-139).

Dinaura Godinho Pimentel Gomes também se posiciona no sentido de que

convém esclarecer, a respeito, que a flexibilização está prevista inclusive na CF brasileira – art. 7º, VI, XIII e XIV. Entretanto, é permitida apenas para possibilitar a alteração de direitos dos trabalhadores que não sejam básicos nem irrenunciáveis, mediante compensação, ou ainda, em situações especiais, e sempre com a assistência sindical. É aplicada, portanto, no sentido de favorecer a adaptação das condições de trabalho – já regulamentadas por lei ou norma coletiva mais favorável – à dinâmica da realidade empresarial, ensejando a diversificação das mesmas, com observância dos direitos essenciais que não podem ser eliminados, em sintonia com os princípios que informam a proteção ao empregado.

[...]

Inadmissível, todavia, é a desregulamentação, que consiste na redução dos direitos trabalhistas, acarretando a própria destruição do Direito do Trabalho. (GOMES, 2003, p. 122-123).

Francisco Meton Marques de Lima lapidarmente fornece um brilhante comentário acerca do que a flexibilização das normas trabalhistas poderá causar aos trabalhadores, visto que o povo ainda não atingiu um certo nível de consciência de que todo o cidadão tem de ter uma vida digna e decente. É retumbante seu comentário:

Justifica-se a flexibilização nos países ricos, onde a consciência nacional já garante, independentemente de comando normativo, vida decente a todo cidadão.

Mas não no Terceiro Mundo, onde ainda enfrentamos o problema do cangacismo, agora urbano e bem equipado, nas versões de guerrilhas, comandos de morros e das bocas-de-fumo, como resposta, em grande parte, à iniqüidade social. E no Brasil vivemos quase uma guerra civil ente o povo e o poder, entre a delinqüência profissional e os delinqüentes oficiais – chacinas, massacres, seqüestros. A questão da terra ainda tem trato colonial.

O "Jeca Tatu" ainda clama por um prato de comida e não tem onde morar.

Necessário se faz modernizar as relações de trabalho, repensar a organização sindical, mas ainda não é tempo de expungir o protecionismo da lei obreira, pois a nossa sociedade não criou mecanismos para manter o equilíbrio da contabilidade social. Março de 1994. Meton Marques. (LIMA, 1997, p. 10-11).

Dentre as várias obras e revistas pesquisadas, constatou-se que somente Ives Gandra da Silva Martins Filho tem posicionamento favorável à flexibilização. Destaca o ministro do Tribunal Superior do Trabalho:

[...] admitindo-se a flexibilização dos dois pilares básicos do direito do trabalho, que são o salário e a jornada de trabalho, todos os demais, ainda, que não previstos expressamente, são suscetíveis de flexibilização, na medida em que constituem vantagens de natureza salarial ou garantias de descanso periódico ou circunstancial. (MARTINS FILHO, 1999, p. 589).

Em conclusão, Martins Filho vislumbra que o panorama para o terceiro milênio no tocante aos direitos sociais, à sua implementação e defesa, e visando à plena empregabilidade num mundo movido pelo avanço tecnológico, o qual diminui os postos de trabalho, a tendência será a "[...] formação de um arcabouço jurídico trabalhista mais simples (caracterizado pela desregulamentação e flexibilização). [...]" (1999, p. 591).

O direito do trabalho – ousa-se dizer - será o direito predominante do século XXI, pois cada vez mais firma-se como direito de toda a humanidade e que traz no seu bojo, latentemente, o espírito do humanismo, da eqüidade, da razoabilizadade, da proporcionalidade e da igualdade, essa "[...] cujus termos consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais. [...]" (ARISTÓTELES apud, MELLO, 2003, p. 10) ou, em outras palavras, na proporção de suas desigualdades. igualando os desiguais na proporçporcionalidademente o esp Contudo "proclamar a livre competição entre pessoas e setores tão desiguais, é o mesmo que permitir a luta entre lobos e ovelhas’, que nunca termina empatada." (IRIARTE apud, CATHARINO, 1997, p. 20).

Quando se diz que os direitos sociais garantidos constitucionalmente estão causando grande desavença entre empregadores e trabalhadores, faz-se necessário transcrever uma fábula envolvendo o leão, a raposa e as galinhas, contada por José Martins Catharino:

A raposa estava causando grandes estragos em um grupo de galinhas, devorando algumas, pintos e ovos. Elas enviaram uma comissão ao leão pedindo urgentes providências. O leão mandou intimar a raposa para comparecer a local perto do galinheiro para uma reunião com as galinhas. O leão, após todas ouvir, fez uma preleção sobre ser melhor haver negociação para solucionar a desavença, concluindo que, para isso, iria abrir a porta do galinheiro para as galinhas entrarem com a raposa e negociarem lá dentro. (CATHARINO, 1997, p. 20).

O que aconteceu com as galinhas no galinheiro? Elementar: foram todas devoradas. Isso poderá acontecer com os trabalhadores caso os direitos sociais, minimamente garantidos na Constituição Federal de 1988 sejam chamados para negociar diretamente com o patrão. Isso não se pode nem imaginar. O leão (Estado) tem a obrigação legal de proteger o trabalhador; caso contrário, serão libertos, mas servos dos donos dos galinheiros.

Como é que o trabalhador – a parte mais fraca da relação – vai negociar com quem detém o poder de contratá-lo e precisa de trabalhar para o sustento da sua família ? Isso é mais ou menos como diz um ditado gaúcho: "Um gaúcho apertado faz qualquer tipo de negócio". Este trabalhador aceitará qualquer proposta, na medida em que no seu lar esteja havendo "choro", choro de seus filhos que pedem pão ao pai. Então, sem um mínimo de garantia do Estado, ele se submete a ganhar um salário aviltante, que mal consegue estancar aquele "choro", que não lhe sai da cabeça enquanto labuta. É a completa perda da dignidade da pessoa.

É ora de fazer do direito do trabalho um direito cada vez mais forte e próximo do trabalhador, pois, quando este se sentir atormentado pela perda de seus direitos, os quais foram constitucionalmente garantidos e estão sendo dobrados como o arco na mão do arqueiro – flexibilizados –, haverá de haver neste Estado democrático de direito juizes com pujança constitucional e que não se flexibilizam/dobram, diante aos desmandos dos governantes. Assim, os direitos garantidos aos trabalhadores poderão ser realmente efetivos e voltados a proteger a sua dignidade, pois, nas palavras de Pereira, "a paz é obra da Justiça" (2004, p.24) e, " [...] se o direito do trabalho busca a dignidade humana, deve, permanentemente, ser um instrumento da justiça, que, para ser cumprida, vincula-se à eqüidade, que é virtude, a qual, como juízes, deveremos cumprir, diuturnamente". (PEREIRA, 2004, p. 26).

No caso brasileiro, o Estado, por ora, não pode afastar-se de regular com normas rígidas o direito do trabalho, pois, mesmo já estando constitucionalmente garantido direitos aos trabalhadores, ainda se constata que trabalhadores estão exercendo atividades em regime de escravidão no Brasil. Será um retrocesso para a sociedade. Mais, se o trabalhador já sofre com todos os direitos que tem garantidos, imagine-se sem. Volta-se a frisar: será escravo do capital.

3.3 Constitucionalidade

Diante da celeuma que causou, traz-se à análise o projeto de lei nº. 5.483/2001, oriundo do Poder Executivo federal e enviado pelo presidente da República em outubro de 2001 ao Congresso Nacional, em regime de urgência constitucional (art. 64, parágrafo 1º, da CF/88) (LOPES, 2002) o qual, nesta parte da presente monografia, servirá de paradigma para discussão acerca da constitucionalidade de quaisquer alterações a serem realizadas no artigo 7º da Constituição Federal. Veja-se o teor do referido projeto, o qual, alterando o artigo 618 da CLT, assim estava redigido: "Art. 618. As condições de trabalho ajustadas mediante convenção ou acordo coletivo prevalecem sobre o disposto em lei, desde que não contrariem a Constituição Federal e as normas de segurança e saúde do trabalho." (LOPES, 2002).

Conforme destacado por Lopes, "[...] após tumultuada tramitação na Câmara dos deputados, caracterizada por acaloradas discussões e episódios insólitos que ocuparam os noticiários de todo o País, o projeto do Executivo foi aprovado, mas não como proposto. [...]" (LOPES, 2002). Assim, com as alterações perfectibilizas na referida casa (Câmara dos Deputados) fora enviado ao Senado da República com a redação abaixo transcrita, o qual, lá, obteve o nº 134, de 2001. (LOPES, 2002):

Art. 1º Na ausência de convenção ou acordo coletivo firmado por manifestação expressa da vontade das partes e observadas as demais disposições do Título VI desta Consolidação, a lei regulará as condições de trabalho.

§ 1º. A convenção ou acordo coletivo, respeitados os direitos trabalhistas previstos na Constituição Federal, não podem contrariar lei complementar, as leis nº. 6.321, de 14 de abril de 1976, e nº. 7.418, de 16 de dezembro de 1995, a legislação tributária, a previdenciária e relativa ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS, bem como as normas de segurança e saúde do trabalho.

§ 2º. Os sindicatos poderão solicitar o apoio e o acompanhamento da central sindical, da confederação ou federação a que estiverem filiados quando da negociação de convenção ou acordo coletivo previsto no presente artigo.

Art. 2º Esta lei entra em vigor na data de sua publicação e tem vigência de dois anos. (SILVA, Antônio, 2002. p. 86).

Brito Lopes destaca que "[...] a proposta do governo privilegia a produção de normas trabalhistas pela via da negociação coletiva em detrimento da produção legislativa estatal, como é a nossa tradição. Fica no ar a pergunta: [...] A proposta é constitucional? [...]." (LOPES, 2002).

Emília Simeão Albino Sako comenta acerca da "supremacia da Constituição e a matéria constitucional" (2003, p. 1323), esclarecendo que

a constituição [...] tem prevalência sobre as demais fontes do direito porque representa a vontade do povo sobre a vontade de seus representantes. Assim, as modificações imprimidas na constituição somente são legítimas quando no processo legislativo o poder constituinte derivado respeita o princípio de soberania popular. (2003, p. 1323).

Sako esclarece também que a Constituição brasileira é do tipo rígida e que, pelo

[...] sistema de direito adotado no Brasil, uma norma Constitucional é inconstitucional quando: a) não são observados os procedimentos formais para sua elaboração; b) quando colide com um princípio fundamental da Nação (arts. 1º a 4º); c) quando é incompatível com um direito ou garantia fundamental do indivíduo (arts. 5º a 7º).

[...]

É possível, portanto, norma constitucional inconstitucional e, um exemplo dessa natureza no ordenamento jurídico brasileiro é o parágrafo 1º do art. 217 da Constituição, que colide frontalmente com o direito individual explicitado no inciso XXXV do art. 5º da própria constituição, que representa cláusula pétrea. (SAKO, 2003, p. 1324).

Destaca ainda que "[...] a interpretação constitucional se faz por meio do trinômio: democracia, princípios constitucionais e hermenêutica jurídica. [...]", significando o quanto é fundamental a observância dos princípios para que se tenham decisões coerentes e adequadas. (SAKO, 2003, p. 1326-1327). Ponto contraditório, segundo a autora, é saber se "[...] os direitos sociais também estariam revestidos da garantia de imodificabilidade por meio de emendas, se o art. 7º também é cláusula pétrea. [...]" (SAKO, 2003, p. 1328). Colaciona, então, julgados do STF a respeito do tema:

O Supremo Tribunal Federal reiteradamente vem entendendo que o art. 7º da Constituição, que disciplina os direitos sociais do indivíduo, não é passível de modificação, porque é cláusula pétrea. Em sede de ação direta de inconstitucionalidade (ADIn nº939-07/DF), ao interpretar o art. 7º da Constituição Federal, o Supremo Tribunal Federal referiu-se aos direitos sociais como cláusulas pétreas. Conforme consta na decisão, os direitos sociais guardam relação de continência com os direitos individuais previstos no art. 60, parágrafo 4º da Constituição, e conseqüentemente, são imutáveis.

Em outra decisão (ADI nº. 1.946-99/DF, [...] unânime, ao analisar o teto máximo para os valores dos benefícios do regime geral da Previdência Social instituído pela Emenda Constitucional nº20/98, o Supremo tribunal Federal deixou claro que ‘não se aplica a licença-maternidade a que se refere o art. 7º, XVIII, da CF, respondendo a Previdência Social pela integralidade do pagamento da referida licença (...) tendo em vista que não será objeto de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais (CF, art. 60, parágrafo 4º)’ [...]

[...]

O Ministro Sepúlveda Pertence (julgamento da ADIn nº. 1.665-1/DF, [...] no mesmo sentido, esclareceu que "os direitos sociais dos trabalhadores, enunciados no art. 7º da Constituição, se compreendem entre os direitos e garantias constitucionais incluídas no âmbito do art. 5º parágrafo 2º, de modo a reconhecer alçada constitucional às convenções internacionais anteriormente codificadas no Brasil" [...]. (SAKO, 2003, p. 1328).

Em sua conclusão, Sako acentua que "[...] os direitos sociais do art. 7º da Constituição não podem ser objeto de emenda constitucional [...]" e que

a conjugação desses elementos autoriza a conclusão de que o art. 7º representa cláusula pétrea, contempla direitos individuais indisponíveis, inserindo-se entre as matérias que não podem objeto de deliberação por meio de emenda constitucional, diante da vedação expressa do parágrafo 4º do art. 60 da Constituição Federal. (SAKO, 2003, p. 1329).

Ainda para Sako, "[...] embora a nova regra criada pela Emenda Constitucional nº. 28 esteja situada na Constituição, o que a torna formalmente constitucional, ela é, em substância, materialmente inconstitucional, a qual há que se negar efeitos de vigência, eficácia e aplicação. [...]." (2003, p. 1329).

Arnaldo Süssekind colaciona também a "Moção de Repúdio ao Projeto nº. 5.483," proclamada em encontro de magistrados e procuradores do trabalho da 10ª Região (Brasília). (LOPES, 2002),

Além da patente inconstitucionalidade da matéria versada no Projeto, revelada pela pretensão de ampliar as hipóteses de flexibilização autorizadas expressamente pelo art. 7º da Constituição Federal de 1988, a referida proposta, se aprovada, consagrará retirada de direitos e conquistas históricas dos trabalhadores, sob o ilusório argumento de que haverá a igualdade nas negociações coletivas [...]. (LOPES, 2002).

José Alberto Couto Maciel assinala que o projeto de lei nº. 5.483 "[...] atenta de forma frontal. [...] porque o artigo 7º integra o Título II da Constituição, Dos Direitos e Garantias Fundamentais, cujas normas não podem ser alteradas nem mesmo por Emenda Constitucional (artigo 60, IV, cláusulas pétreas). (LOPES, 2002).

Jarbas Lima, quando então deputado federal (PPB/RS), "[...] apresentou voto em separado na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, manifestando-se contrário ao projeto de flexibilização das regras trabalhistas. Para ele, proposição apresenta inconstitucionalidade material. [...]" (LOPES, 2002).

Destaca o parlamentar nos fundamentos de seu voto, em síntese:

O projeto se reveste de intransponível inconstitucionalidade material, quando afronta o princípio fundamental contido no art. 7º da CF que recepcionou a CLT sem ressalvas. Além do mais, a CF, no art. 7º, limitou a negociação sindical apenas ao disposto nos incisos VI, XIII e XIV. Expandir essas três hipóteses constitucionais, mediante precária norma resultante de convenção coletiva, seria legislar de forma inadmissível e contra legem, dispondo do indisponível e renunciando ao irrenunciável.

O projeto pretende priorizar e fazer prevalecer norma inferior (dissídio coletivo) sobre lei hierarquicamente superior. Assim, estar-se-ia institucionalizando a anarquia legislativa ao permitir legislar contra legem, o que manifesta a injuridicidade da proposição:

VOTO

Por tais razões, o meu voto é pela inconstitucionalidade material, ainda que satisfatória técnica legislativa e, no mérito, ante a injuridicidade, pela iminência de injustiça social, pela rejeição do PL nº. 5.483/2001. (LOPES, 2002).

Yone Frediani, juíza federal do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, mestre em garantias fundamentais, corrobora as palavras mencionadas no voto do então parlamentar Jarbas Lima:

A impossibilidade de negociação nessas matérias decorre não só do fato de se revestirem de princípios de ordem pública, bem assim dos princípios constitucionais gerais e dos específicos ao Direito do Trabalho, lembrando-se também que quando da reforma constitucional a previsão de prevalência do negociado sobre o legislado alcançou, tão somente, salários e jornada, não sendo possível através de lei ordinária a alteração das garantias fundamentais atribuídas ao trabalhador, sob pena de grave inconstitucionalidade em face da ofensa aos princípios que informam o sistema constitucional vigente. (FREDIANI, 2003, p. 90).

Süssekind também se manifesta no sentido de que os direitos relacionados no artigo 7º da Constituição são cláusulas pétreas:

Na verdade, ao impedir que as emendas à Carta Magna possam ‘abolir os direitos e garantias individuais’ (art. 60, § 4º, IV), é evidente que essa proibição alcança os direitos relacionados no art. 7º [...].

Cumpre ponderar, neste caso, que se os direitos e garantias individuais de índoles social-trabalhista, afirmados na Lex Fundamentaes, não podem ser abolidos por emenda constitucional, certo é que não será defeso ao Congresso Nacional alterar a redação das respectivas normas, desde que não modifiquem a sua essência de forma a tornar inviável o exercício dos direitos subjetivos ou a preservação das garantias constitucionais estatuídos no dispositivo emendado. (grifo nosso) [...]

A precitada proposição será, a nosso ver, nitidamente inconstitucional. Se nem por emenda constitucional poderão ser abolidos direitos relacionados no art. 7º da Carta Magna, elevados à categoria de cláusulas pétreas, como se admitir que possam fazê-lo convenções ou acordos coletivos ou que esses instrumentos normativos possam modificá-los em sua essência? Cremos que, no âmbito da ciência jurídica, devemos ainda observar a hierarquia das fontes do Direito, tal como a lei da gravidade no mundo da física. (SÜSSEKIND, 2001, p. 16-17).

Xisto Tiago de Medeiros Neto, procurador regional do Trabalho, mestre e especialista em Direito, professor de Direito Constitucional e Processual, analisa o artigo 7º da Constituição e assim se manifesta:

Considerando, entretanto, a terminologia adotada pelo legislador constituinte de 1988 ao fixar como cláusula pétrea ‘os direitos e garantias individuais’ (art. 60, § 4º, inciso IV), impõe-se analisar, à vista de uma hermenêutica constitucional adequada, se estariam os direitos sociais excluídos do elenco das limitações materiais. (MEDEIROS NETO, 2005, p. 2).

Medeiros Neto conclui, então, no sentido de que

[...] os direitos sociais, em toda sua extensão, abrangendo, inclusive, os direitos dos trabalhadores (art. 7º da Constituição Federal), constituem cláusula pétrea constitucional, não podendo ser atingidos pelo poder reformador derivado, no sentido da sua alteração prejudicial ou extinção, [...]. (2005, p. 5).

Frediani, posiciona-se no sentido de que os direitos sociais estão a salvo de serem modificados ou alterados na sua "essência", assim se manifesta:

Uma última consideração há que ser ainda mencionada, a de que o legislador, ao inserir os direitos sociais dentro do título dos direitos e garantias fundamentais, guindou-os à categoria de cláusulas pétreas segundo a regra contida no art. 60, § 4ª, IV, da Lei Maior, circunstância que acarreta a impossibilidade de serem modificados por quaisquer atos legislativos que tenham por finalidade a alteração ou modificação de sua essência, tornando inviável ou impossível a preservação das mesmas garantias.

Diante deste quadro pode-se asseverar que nem mesmo através de Emenda Constitucional será possível a alteração dos direitos sociais atribuídos ao trabalhador, na medida em que o poder constituinte outorgado ao legislador encontra-se limitado às condições previstas nas cláusulas pétreas. (FREDIANI, 2003, p. 89).

Nei Comis Garcia, em artigo intitulado "O problema da proteção dos direitos sociais frente às emendas constitucionais", destaca que a proteção dos direitos sociais por cláusula pétrea

[...] desperta acirrada polêmica, pois o dispositivo constitucional que trata da proteção contra a corrosão dos direitos e garantias através do processo legislativo (artigo 60, § 4º) somente faz referência aos direitos e garantias individuais, sendo omisso quanto aos de cunho social.

Diante disso, doutrinadores defendem que os direitos sociais não estariam protegidos pelas denominadas cláusulas pétreas, pois, se essa fosse a intenção do poder originário, por óbvio que deveria constar no texto constitucional protetivo também a expressão direitos sociais. (GARCIA, 2003, p. 388).

Após discorrer longamente no seu texto, Garcia entende que "[...] os direitos sociais encontram proteção nas disposições do artigo 60, § 4º, da CF. [...]" No entanto, alerta que "[...] tal proteção não é absoluta, assim como não é absoluta a proteção dos direitos e garantias individuais. [...]," ( 2003, p. 391). E continua:

Nesse contexto, a dificuldade está em relativizar o entendimento das cláusulas pétreas, notadamente as de cunho social, diante das pressões políticas e, principalmente econômicas, sem, contudo, alterar o cerne da Constituição. (GARCIA, 2003, p. 391).

Garcia, no entanto, aduz que os direitos fundamentais até podem ser flexibilizados, desde que o núcleo essencial de tais direitos não sejam atingidos, ou seja, usando o princípio da proporcionalidade, o bom senso e equilíbrio. (2003, p. 397-398).

Admitida a reforma sem a proteção do núcleo essencial da constituição seria admitir o absolutismo da maioria legislativa, que adotaria mecanismos para proteção de interesses circunstanciais de determinado governo.

[...]

Nesse contexto, se não for mantido o núcleo essencial de proteção dos direitos sociais, as desigualdades já existentes se aprofundarão, e parcelas significativas da sociedade serão tratadas como números estatísticos, sendo desrespeitados, inclusive, os direitos individuais, num processo rápido de ‘coisificação’ do ser humano. (GARCIA, 2003, p. 398).

Em sua conclusão, Garcia deixa entender que o equilíbrio é ponto fundamental para tais reformas e que o princípio da proporcionalidade deve se fazer presente num ponderamento de forças.

Dizer que os direitos sociais estão ao abrigo de reformas tendentes a aboli-los não significa a defesa da imutabilidade da Constituição frente aos fatos sociais e demandas econômicas. Assim como não devem ser interpretadas literalmente as disposições do art. 60, § 4º, IV, da CF, que nos levaria a afastar a proteção dos direitos sociais contra reformas, não é menos verdade que o entendimento do significado das cláusulas pétreas também merece ser relativizado, sob pena de inviabilizar o país, seja do ponto de vista econômico, seja pelos conflitos de classes, que também existem em países em estágio bem mais avançado, cujas economias estão consolidadas – vide os protestos realizados em Davos e em Seattle, verdadeiras praças de guerras

[...]

Cabe a nós, fugindo de uma interpretação histórica, tornar moderna a Constituição que aí está, através da interpretação sistemática e da flexibilização de normas tidas como dogmas intocáveis. (GARCIA, 2003, p. 404-405).

Rodrigo de Lacerda Carelli, procurador do Trabalho da 1ª Região, usando as palavras de Alexy, menciona que este autor destaca a ponderação entre os direitos fundamentais sociais e os ditos "liberais", eis que

[...] quer dizer Alexy que pela ponderação, [...] poderão ser na realidade harmonizados de forma útil e possível os direitos fundamentais sociais e os ditos liberais. Possibilita, com isso ‘um meio-termo entre vinculação e flexibilidade’ (palavra extremamente perigosa em tempos neoliberais, pois é pelos liberais tida simplesmente como eliminação dos direitos sociais). (ALEXY apud, CARELLI, 2003, p. 255).

Sílvio Wanderley do Nascimento Lima, em artigo publicado na Revista de Previdência Social, citando um texto de Ingo Sarlet acerca da salvaguarda do núcleo essencial do direito fundamental, assim se manifesta:

No âmbito da doutrina pátria, revelando uma nítida (mas não de todo imune a reservas) tendência de adesão à doutrina alemã, já há quem sustente que uma emenda constitucional apenas tende a abolir um bem protegido pelas ‘clausulas pétreas’ na hipótese de ser atingido o núcleo essencial do princípio em questão, não ficando obstaculizada a sua regulamentação, alteração ou mesmo a sua restrição (desde que não afetado o núcleo essencial). O núcleo do bem Constitucional protegido é, de acordo com este ponto de vista, constituído pela essência do princípio ou direito, não por seus elementos circunstanciais, cuidando-se, nesse sentido, daqueles elementos que não podem ser suprimidos sem acarretar alteração substancial no seu conteúdo e estrutural. Neste contexto, afirmou-se acertadamente que a constatação de uma efetiva agressão ao núcleo essencial do princípio protegido depende de uma ponderação tópica, mediante a qual se deverá verificar se a alteração constitucional afeta apenas aspectos ou posições marginais da norma, ou se, pelo contrário, investe contra o próprio núcleo do princípio em questão. (SARLET apud, LIMA, Sílvio, 2004, p. 720-721).

Para contrapor o pensamento dos autores aqui colacionados, constata-se que Ives Gandra da Silva Martins Filho, além de ser adepto da flexibilização e da desregulamentação, também tem posicionamento no sentido de que os direitos sociais não compõem o rol das cláusulas pétreas. Conjuga que "[...] admitindo a constituição o princípio da flexibilização para os Direitos Sociais, reconhece que não constituem cláusulas pétreas (CF, art. 60, § 4º), sendo passíveis de alteração e redução por Emenda Constitucional. [...]" (MARTINS FILHO, 1999, p. 589).

O que se constata é que, sob o pálio de estar-se protegendo o núcleo essencial de tais normas constitucionais, estas poderão, conforme assinalado por Gilmar Mendes, estar sendo topicamente destruídas, deflagrando um processo de erosão da própria Constituição. (MENDES, 1994, p. 251). Tal posicionamento, de não ser abolido o núcleo essencial da norma constitucional, foi objeto da decisão proferida na ação direta de inconstitucionalidade nº. 2.024-2, Distrito Federal, proferida em 27-10-1999, na qual foi relator o ministro Sepúlveda Pertence, que, a princípio e em síntese, acolheu a tese da relatividade do artigo 60 da Constituição Federal, não podendo tal dispositivo, segundo ele, ser interpretado como sendo intangível. Veja-se, in verbis:

[...] de resto as limitações materiais ao poder constituinte de reforma, que o art. 60, § 4º, da Lei Fundamental enumera, não significam a intangibilidade literal da respectiva disciplina na Constituição originária, mas apenas a proteção do núcleo essencial dos princípios e institutos cuja preservação nelas se protege. (BRASIL-STF, 2000, p. 1).

O constitucionalista José Afonso da Silva corrobora a tese da proteção do núcleo essencial da norma ao discorrer que

a controvérsia sobre o tema mais se aguça, quanto a saber quais os limites materiais do poder de reforma constitucional. Trata-se de responder a seguinte questão: o poder de reforma pode atingir qualquer dispositivo da Constituição, ou há certos dispositivos que não podem ser objeto de emenda ou revisão ?

[...]

As constituições brasileiras republicanas sempre contiveram um núcleo imodificável, preservando a Federação e a República. (SILVA, José, 2004, p. 66 – grifo do autor).

O eminente constitucionalista Paulo Bonavides manifesta-se também acerca da inconstitucionalidade material:

A inconstitucionalidade material é o satélite da ilegitimidade.

Os direitos fundamentais são a bússola das Constituições. A pior das inconstitucionalidades não deriva, porém, da inconstitucionalidade formal, mas da inconstitucionalidade material, deveras contumaz nos países em desenvolvimento ou subdesenvolvidos, onde as estruturas constitucionais, habitualmente instáveis e movediças, são vulneráveis aos reflexos que os fatores econômicos, políticos e financeiros sobre elas projetam

[...]

Cabe, por conseguinte, reiterar: quem governa com grandes omissões constitucionais de natureza material menospreza os direitos fundamentais e os interpreta a favor dos fortes contra os fracos. (BONAVIDES, 2004, p. 600-6001).

Bonavides entende ainda que a proteção elencada no artigo 60 da Constituição Federal contempla os direitos sociais e que uma interpretação que contemple unicamente os direitos individuais será de índole da tradição liberal. (2004, p. 640-641). Mais adiante, escreve:

Tanto a lei ordinária como a emenda à Constituição que afetarem, abolirem ou suprimirem a essência protetora dos direitos sociais, jacente na índole, espírito e natureza de nosso ordenamento maior, padecem irremissivelmente da eiva de inconstitucionalidade, e como inconstitucionais devem ser declaradas por juízes e tribunais, que só assim farão, qual lhes incumbe, a guarda bem-sucedida e eficaz da constituição.

[...]

[...] só uma hermenêutica constitucional dos direitos fundamentais em harmonia com os postulados do Estado Social e democrático de direito [...] fazem irrecusavelmente inconstitucional toda inteligência restritiva da locução jurídica ‘direitos e garantias individuais’ (ar. 60 § 4º, IV), a qual não pode, assim, servir de argumento nem de esteio à exclusão dos direitos sociais [...]. (BONAVIDES, 2004, p. 644-645). (o grifo é meu).

Alexandre de Moraes, constitucionalista de escol, segue os passos de Paulo Bonavides pois entende que

[...] alguns direitos sociais, enquanto direitos fundamentais, são cláusulas pétreas, na medida em que refletem os direitos e garantias individuais do trabalhador, uma vez que, nossa constituição determinou a imutabilidade aos direitos e garantias individuais, estejam ou não no rol exemplificativo do art. 5º. (CF, art. 60 § 4º, IV), pois os direitos sociais caracterizam-se como verdadeiras liberdades positivas, de observância obrigatória em um Estado Social de Direito, tendo por finalidade a melhoria das condições de vida aos hipossuficientes, visando à concretização da igualdade social, que configura um dos fundamentos de nosso Estado Democrático, conforme preleciona o art. 1º, IV. (MORAES, 2003, p. 333).

Carelli, novamente citando o pensamento de Alexy acerca do conteúdo dos direitos fundamentais, menciona que,

[...] no entender do eminente filósofo do direito, somente seria fundamental aquela necessidade ou carência que garanta ao ser humano, [...] um mínimo, sendo este mínimo que o faz viver justamente como ser humano digno, que é o mais básico que se pode aceitar para a vida do homem. (ALEXY apud, CARELLI, 2003, p. 253).

Carelli salienta também que os direitos sociais estão sob proteção do artigo 60, parágrafo 4º, da Constituição, "[...] pois ali não se preservam os direitos fundamentais, mas sim os direitos e garantias individuais, nos quais estão insertos todos os direitos sociais constitucionais. [...]." ( 2003, p. 254-255).

A essência protetora dos direitos sociais não pode ser abolida. Neste ponto interroga-se: qual jurista dirá, com segurança, que o núcleo de tal norma não foi atingido? Que núcleo essencial é esse? O direito é a arte da argumentação e aí se entra num embate difícil de terminar. Por exemplo, suponha-se que a parte final do artigo 7º da Constituição Federal seja abolida retirando-se a seguinte parte do dispositivo: "[...] além de outros que visem à melhoria de sua condição social: [...]." A princípio, manteve-se o núcleo essencial do artigo, acredita-se, qual seja: "[...] são direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, [...]:" Será tal norma, então, constitucional?

Arremata-se, por fim, com o artigo nº. 16 da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 e com uma longa frase de Russomano: Artigo 16 – "Toda sociedade em que não estiver assegurada a garantia dos direitos, nem determinada a separação dos poderes, não tem Constituição" (BEDIN, 2002, p.193).

Quando alguém pegar com suas mãos o texto das leis trabalhistas de um país, saiba que ali estão séculos de sofrimentos calados ou de revoltas e que aquelas paginas, nas entrelinhas da composição em linotipo, foram escritas a sangue e fogo, porque, até hoje, infelizmente, nenhuma classe dominante abriu mão de seus privilégios apenas por ideais de fraternidade ou por espírito de amor aos homens. (RUSSOMANO apud, GOMES, 2003, p.121).

Veja-se, no entanto, que é temerário deixar essa relatividade do núcleo essencial da norma nas mãos do legislador ou do juiz. Certamente, se isso acontecer, brevemente a Constituição pátria tombará e, juntamente com ela, os trabalhadores.

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Sobre o autor
Paulo Cezar Jacoby dos Santos

Bacharel em Direito.Formado pela Universidade de Passo Fundo - RS Campus Lagoa Vermelha - RS.Diretor de Secretaria da Vara do Trabalho de Lagoa Vermelha - RS

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Paulo Cezar Jacoby. Flexibilização das normas trabalhistas e sua constitucionalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2022, 13 jan. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12200. Acesso em: 26 abr. 2024.

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