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O princípio constitucional da livre concorrência e o processo de globalização

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6CONCLUSÕES

        Boaventura de Sousa SANTOS, diz que a Modernidade assentou seu projeto em três pilares:

        "(...) o do Mercado, o do Estado e o da Comunidade. O do Mercado foi satisfatoriamente consolidado, diria mesmo que está plenamente vitorioso neste alvorecer do século XXI. O do Estado, também teve êxito e continua tendo, mesmo sob a aparência (falsa) de Estado Mínimo, dado que o Estado sempre foi o consorte indissolúvel do Mercado (que na ótica capitalista é tudo menos livre competição, sim regulação rigorosa e drástica, pelo poder político, de tudo quanto indispensável para a reprodução ampliada e para a homogeneização das preferências, o corpo e a alma do sistema capitalista). Ficou desamparado e frágil, contudo, o pilar da Comunidade. Porque isso ocorreu? Justamente porque o Mercado e o Estado, para se realizarem plenamente, apoiam-se no poder e na dominação, enquanto a Comunidade tem suas raízes na renúncia à submissão do outro pelo poder e põe sua fé na integração com o outro pela solidariedade. E se o paradigma do direito foi operacional para o Mercado e para o Estado, porque se associa indissoluvelmente à coerção, não pôde, nem poderá servir à Comunidade, que pede a consciência moral do dever para com o outro, que importa em alguma forma de renúncia e de respeito pela singularidade do outro" [27].

        Dentro do contexto das idéias do presente trabalho, o texto de Boaventura de Souza SANTOS encaixa-se na conclusão, pois tem a virtude de colocar, em termos simples, que nem o Mercado (campo decisório privado), nem o Estado (campo decisório público) podem furtar suas atenções à Comunidade.

        Assim, a partir de um momento em que se reconhece que o cenário de economia globalizada (ou mundializada) abre espaço para a fragilização do processo decisório público, cumpre ao Estado estabelecer mecanismos de repressão ao fenômeno, cabendo ao jurista, por seu turno, estabelecer novos paradigmas para dar eixos à interpretação ao sistema jurídico vigente, evitando, assim, uma possível distorção dos seus postulados basilares, entre eles, o princípio constitucional da livre concorrência.

        Devemos ter em mente que não escapa à nossa percepção os pontos positivos do processo de globalização [28]. Entretanto, a fácil e rápida mobilidade dos fatores da produção vivenciada nos dias atuais, como consequência deste processo, está a reclamar do Direito uma postura diferenciada, para resguardar as comunidades que, de forma direta ou indireta, sofrem os impactos das sucessivas mudanças das decisões econômicas.

        E isto porque grandes corporações (ou empresas transnacionais) migram com grande facilidade pelo globo, deixando pelos lugares em que passam um rastro de negativos efeitos econômicos e sociais.

        A busca do lucro, apontada como o vetor do trânsito de capitais pelo mundo e razão de existir das grandes corporações não pode intimidar o Estado, que, ao definir sua política econômica, pode e deve escudar e proteger os interesses da comunidade que representa.

        E neste particular, o princípio da livre concorrência assume uma dimensão de grande importância, pois a sua tradicional conotação liberatória à competitividade (natural e lícita, em termos de mercado) deve ser analisada criticamente, desnudando-se eventuais discursos que queiram utilizar o princípio para chancelar abusos de poder econômico, implicando favorecimentos ilícitos ou chancelando escolhas econômicas (privadas ou "aparentemente" públicas, em favor do setor privado), que, em essência, comprometem negativamente a comunidade sobre a qual recaem tais escolhas.

        Deste modo, cabe aos juristas iniciar esta reflexão e, dimensionando o princípio da livre concorrência (o qual não pode e nem deve servir de escudo para interesses desta ordem), estruturar mecanismos jurídicos os quais, tendo por norte a função social da propriedade, induzam positivamente as escolhas de mercado ou, na hipótese de escolhas de mercado que tragam impactos sócio-econômicos negativos, estabeleçam modos compensatórios às comunidades atingidas.


7 BIBLIOGRAFIA

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        GLÓRIA, D. F. A. G. (2003). A livre concorrência como garantia do consumidor. Belo Horizonte: Del Rey.

        GODINHO, Marcello S. Estado e Economia: Algumas Reflexões Acerca das Mudanças, Revista da Faculdade de Direito da UCP, Vol. 2 – 2000.

        GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988 (Interpretação e Crítica), 3ª edição, São Paulo: Malheiros, 1997.

        GRAU. Eros Roberto; FORGIONI. Paula Restrição à concorrência, autorização legal e seus limites. Lei nº 8.884, de 1994, e Lei nº 6.279, de 1979 ("Lei Ferrari").

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        NASSIF, André. Fundamentos Econômicos da Empresa, Rio de Janeiro: FGV Management – Cursos de Educação Continuada, 1ª ed, 2003.

        NICZ, Alvacir.A. A liberdade da iniciativa na Constituição. 1ª edição, São, Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1981.

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        ___________ Curso de Economia. Introdução ao Direito Econômico, 3ª edição, revista e atualizada, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001

        PASSOS, J.J. Calmon de. Direito de Solidariedade - Publicada no Juris Síntese nº 49 - SET/OUT de 2004.

        POPP, Carlyle; ABDALA, Edson Vieira. Comentários à Nova Lei Antitruste. Curitiba: Juruá, 1997, 2ª ed.


Notas

  1. GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988 (Interpretação e Crítica), 3ª edição, São Paulo: Malheiros, 1997, p. 230.
  2. NUSDEO. Fábio. Fundamentos para uma Codificação do Direito Econômico, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1995, p. 8 e 20.
  3. Fábio NUSDEO explica que nem todos os estudiosos do assunto aceitam pacificamente esta dicotomia rígida entre o processo decisório público e privado. GALBRAITH, por exemplo, comenta que as decisões de grandes empresas independem das decisões do setor público, sendo melhor distinguir, portanto, setor planejado (abrangendo tanto o Estado quanto a macro empresa) e setor de mercado ("elemento coordenador das decisões empresariais de unidades de menor envergadura"). NUSDEO argumenta, entretanto, mantém a divisão, argumentando que em muitas oportunidades a macroempresa apresentará uma conduta "sui generis", não se confundindo com as unidades menores do mercado. in Fundamentos (…) p. 21.
  4. NUSDEO, Fábio. Fundamentos (...) p. 22.
  5. Segundo Fabio NUSDEO cinco são as inoperacionalidades do mercado: a) falta de mobilidade de fatores da produção, que geram crises de produção (excesso ou escassez); b) deficiência de acesso nas informações, prejudicando o processo decisório dos agentes econômicos; c) concentração empresarial, derivada de economias em escala e com reflexos negativos ao jogo concorrencial, que é eliminado; d) externalidades, que deixam de sinalizar adequadamente a escassez; e) impossibilidade de captação das necessidades da comunidade por bens de caráter coletivo. In Elementos, p. 23.
  6. Segundo os ensinamentos de André NASSIF, a referência teórica para se determinar a existência de uma falha de mercado parte da comparação de dois modelos econômicos contrastantes: o mercado perfeitamente competitivo e o monopólio natural. No primeiro modelo, as condições para uma concorrência vigorosa se encontram presentes, compreendendo a presença de várias firmas atuantes no mercado (em constante pressão para a redução de custos de produção e dos preços, melhoria da qualidade do produto, aumento da oferta e da variedade de produtos, lançamento de novos e melhores produtos, ou seja, produzindo os melhores resultados em termos de bem-estar econômico e social). Em outras palavras "a eficiência alocativa é máxima, com o preço igualando o custo unitário mínimo. O mercado funciona eficientemente porque há equilíbrio de poder entre vendedores e compradores, entre oferta e demanda". Já no monopólio natural se verifica a presença de uma única firma produzindo no mercado, sem possibilidade da inserção de outra, em função da existência de economia de escala (i.e., quando a empresa é capaz de duplicar sua produção sem duplicar os seus custos) ou de escopo (quando o custo de produção de dois produtos diferentes numa única empresa é menor do que o custo de produção em cada um desses produtos em duas empresas, tornando producente produzir os dois produtos juntos numa mesma empresa. NASSIF, op. cit. p. 6.
  7. Poder de mercado pode ser definido como a capacidade de uma determinada empresa em elevar seus preços, drenando a renda dos consumidores de modo compulsório.
  8. No entanto nem toda a imperfeição do mercado ensejará a regulação pública (até mesmo porque mercados imperfeitos, oligopolizados e altamente concentrados são a regra e não exceção), importando que as características estruturais do mercado que impedem a manifestação da concorrência de forma eficaz (isto é, um desempenho insatisfatório em termos de preços, qualidade e quantidade de produtos e serviços) ocasionem resultados sociais e políticos inaceitáveis. Em outras palavras, a regulação pública é uma decisão política.
  9. Metas estas que, teoricamente, sem a presença do Estado, não se poderiam se dar pelo simples funcionamento do mercado.
  10. GRAU, Eros Roberto. A Ordem (...), p. 14.
  11. NICZ, A.A. A liberdade da iniciativa na Constituição. 1ª ed., São 1981, Paulo, RT, p. 143
  12. GRAU, Eros Roberto. A Ordem (...), p. 28 e 122.
  13. NUSDEO, Fabio. Fundamentos (...) op.cit. p. 33.
  14. NUSDEO, Fabio. Fundamentos (...) op.cit. p. 36 e 41.
  15. Eros Roberto GRAU anota que a globalização ameaça a sociedade civil, pois está associada a novos tipos de exclusão social, instalando uma contínua e crescente competição entre os indivíduos e conduzindo à destruição do serviço público. In A Ordem (...) p. 39.
  16. Segundo Marcello S. GODINHO o "desenvolvimento dos mercados globais não é um fenômeno inteiramente novo. A importância do comércio para o crescimento das economias foi reconhecida desde a Revolução Industrial, sendo que a teoria de Ricardo sobre os custos comparativos já tentava explicar o papel da divisão internacional do trabalho no processo de desenvolvimento dos países. No final do século XIX, já era bastante intensivo o funcionamento de uma rede de produção e de fluxos de capital. Nos anos 70, crescem os volumes e a importância dos mercados globais em relação às décadas anteriores, principalmente entre 20 e 60". GODINHO, Marcello S. Estado e Economia: Algumas Reflexões Acerca das Mudanças, publicada na Revista da Faculdade de Direito da UCP Vol. 2 - 2000, pág. 17.
  17. A Ordem (...) p. 199
  18. Carlyle Popp esclarece que o liberalismo econômico a que alude não é o liberalismo puro, nos moldes do sistema vigente no século XIX e início do século XX, pois naquela época o Estado era o Liberal e esclarece: "Na medida em que passou a existir uma preocupação crescente de ordem social, deixou de ter o Estado um modelo de puro liberalismo para aceitar um tipo Social". POPP, Carlyle e ABDALA, Edson Vieira. Comentários à Nova Lei Antitruste. Curitiba: Juruá, 1997, 2ª ed, p. 26.
  19. As opções do Estado, em face de uma falha de mercado seriam: 1. permitir o monopolista privado atuar livremente, assumindo os riscos ao bem-estar econômico e social; 2. assumir a responsabilidade pela oferta do produto e serviço, mesmo diante das restrições da eficiência estatal; 3. permitir ou incentivar o ingresso de outras firmas no mercado, com resultados ineficientes; 4. regular o mercado. NASSIF, André. op. cit. 7.
  20. Apud Glória, D. F. A. G. A livre concorrência como garantia do consumidor. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 78.
  21. Note-se que a concentração nos mercados não é uma alternativa viável para enfrentar-se a concorrência internacional. Segundo André Nassif "a experiência histórica mostrou claramente que um forte e saudável ambiente concorrencial no mercado interno é o melhor estímulo e condição sine qua non para que empresas nacionais se habilitem para a concorrência internacional". NASSIF, op. cit. p. 10.
  22. GODINHO, Marcello. Estado (...) op. cit. p. 17.
  23. GRAU. Eros Roberto e FORGIONI.Paula Restrição à concorrência, autorização legal e seus limites. Lei nº 8.884, de 1994, e Lei nº 6.279, de 1979 ("Lei Ferrari"), p. 111
  24. COMPARATO, Fabio Konder. Concorrência Desleal. Revista dos Tribunais, n. 375, p. 30.
  25. Há um interessante documentário (título original, em inglês: "Roger & me") de Michael Moore, o qual relata as mazelas provocadas pela saída da GM da cidade de Flint, no Estado de Michigan, retratando o acentuado declínio econômico e social da comunidade local.
  26. "Industrialmente é a terceira vez que a Chrysler saiu do país. A primeira foi em 1957, quando possuía ativa operação quase industrial para a montagem de veículos das linhas Dodge, Chrysler e Fargo. Com o governo JK incentivando a industrialização, a Brasmotor, seu representante local, tentou provocá-la a entrar no esforço industrial, mas a Chrysler sugeriu o contrário: que representante investisse no global e a Chrysler a compensaria no futuro. A representante entendeu o futuro: encerrou a montagem de veículos e foi produzir eletrodomésticos da linha branca, os Brastemp. A Chrysler ainda correu atrás, propondo à Willys, que se instalava como pioneira e era líder de mercado, fazer uma sociedade paralela, a Chrysler-Willys, que montaria o Plymouth Savoy 1956, um carro econômico aos padrões norte-americanos de 1957, e que havia sido substituído no mercado de origem. O projeto foi aprovado pelo GEIA, Grupo Executivo da indústria Automobilística, mas as empresas não o implementaram. Voltou em 1997 anunciando investimentos de US$ 300 milhões. Cometeu erros de marketing e industriais, colecionando prejuízos. Com a fusão - ou aquisição ou controle, eufemismo que é base para sólida discussão jurídica nos EUA -- a operação Mercosul entrou na lista dos maus resultados. Cobrado, o presidente mundial da DaimlerChrysler mandou fechar todas as unidades que operavam em vermelho, o que englobava as pequenas plantas argentina e paranaense, alijando a marca do Mercosul’. Fonte: http://www2.uol.com.br/bestcars/nasser/106n.htm
  27. Apud PASSOS, J.J. Calmon de. Direito de Solidariedade - Publicada no Juris Síntese nº 49 - SET/OUT de 2004

28.Esclareça-se que também enxergamos os pontos positivos da globalização, a qual também trouxe grandes conquistas para a humanidade, sobretudo no que concerne à possibilidade de uma maior integração dos povos e da convivência pacífica.

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Sobre a autora
Cláudia Maria Borges Costa Pinto

Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba, Especialista em Direito Tributário pela Faculdade de Direito de Curitiba e MBA em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas; Mestre em Direito Econômico e Social pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Advogada

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PINTO, Cláudia Maria Borges Costa. O princípio constitucional da livre concorrência e o processo de globalização. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2027, 18 jan. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12225. Acesso em: 29 mar. 2024.

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