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A gratuidade de justiça como função institucional da Defensoria Pública

16/02/2009 às 00:00
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Diz o inciso LXXIV do art. 5.º da Carta da República: "O Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos".

Como é cediço, o art. 5º da Carta Magna prescreve os direitos e deveres individuais e coletivos, inserto no título dos direitos e garantias individuais.

Desta feita, a assistência jurídica integral e gratuita aos necessitados é uma garantia fundamental de acesso à justiça dos hipossuficientes na defesa de seus direitos, seja na seara judiciária ou administrativa a ser prestada por serviço público do Estado.

Ainda, a assistência jurídica integral e gratuita não abrange somente as custas judiciais, mas sim toda a gama de atividades necessárias à prestação da tutela jurisdicional, tal como: ônus da sucumbência, perícia e demais encargos derivados da atividade processual, que se pode denominar de gratuidade de justiça.

Cabe um parêntese para consignar que o encargo da sucumbência tem duplo sentido, um em ressarcir o vencedor dos encargos econômicos-financeiros suportado no curso da demanda judicial, por outro lado, serve para inibir as lides temerárias, levadas a efeitos por pessoas inescrupulosas com o único fito de prejudicar a parte contrária, se escudando, muita vez, na gratuidade de justiça.

De volta ao tema, por outro lado, o direito fundamental consagrado no dispositivo constitucional retro, há de se conjugar com o prescrito na cabeça do art. 134 da Constituição da República, onde prevê que o órgão do Estado essencial à função jurisdicional estatal e responsável pela garantia estampada no inciso LXXIV do art. 5° é a Defensoria Pública.

Assim, por conclusão, o direito fundamental de acesso à justiça dos que se declararem pobres deverá ser prestado pelo Estado pela Instituição estatal essencial à função jurisdicional, a Defensoria Pública. É s.m.j, a melhor interpretação que se extrai da Constituição da República.

E mais, a Lei Orgânica Nacional da Defensoria Pública, Lei Complementar n.º 80, de 12 de janeiro de 1994, prescreve no seu art. 1º.

"Art. 1º A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe prestar assistência jurídica, judicial e extrajudicial, integral e gratuita, aos necessitados, assim considerados na forma da lei".

Não resta dúvida, tanto pela Constituição da República como pela legislação infra-constitucional, que a Defensoria Pública é a instituição encarregada de prestar assistência jurídica integral e gratuita aos necessitados.

Mas qual o parâmetro de necessitado? A Lei Ordinária 1.060/50, Lei de Assistência Judiciária, prescreve no parágrafo primeiro do art. 4º que a situação financeira de hipossuficiência é, por presunção, constada mediante simples declaração do necessitado.

E a quem deve ser dirigida a declaração? Não resta dúvida que ao órgão de atuação da Defensoria Pública, pelo que não há de se falar em deferimento da gratuidade de justiça pelo órgão judiciário, mas sim pelo órgão de atuação da Defensoria Pública, estando, assim, revogado o art. 5.º da referida lei ordinária, por ser incompatível com o sistema jurídico vigente.

Veja, trazendo a lume um caso hipotético, a concessão de assistência jurídica integral e gratuita pelo órgão estatal responsável pela assistência judiciária e, ao promover a demanda, o juiz competente para a causa entenda, hipoteticamente, por indeferir a gratuidade de justiça ao litigante assistido pela Defensoria Pública. Ou seja, um cidadão assistido pelo órgão oficial da Assistência Judiciária que patrocina uma demanda proposta por este cidadão tem o pedido de gratuidade de justiça negado pelo juiz. Como solucionar tal situação? A lei 1.060/50 prevê recurso de tal decisão, mas, ainda em hipótese, o tribunal ad quem mantém a decisão primeva de indeferimento da gratuidade de justiça. Por se tratar de questão fática, prova de hipossuficiência, não cabe recurso extremo. Cabe destacar que não se está na situação em que a parte contrária impugna a gratuidade de justiça no curso do processo, situação distinta, vez que, nesta última situação há espaço para o contraditório, quando, provando que o cidadão não faz jus a assistência judiciária, este não terá direito a gratuidade de justiça, nem de ser assistido por Defensor Público.

Naquela situação hipotética, o necessitado tem vedado seu direito de gratuidade de justiça, mesmo estando assistido por órgão do Estado instituído constitucionalmente para tanto, havendo uma odiosa intromissão de um poder na consecução da atividade fim de órgão autônomo de outro poder, e, o que é pior, sem contraditório, ou seja, sem que a presunção de veracidade de sua afirmação de hipossuficiência seja cabalmente destruída por procedimento em que lhe garanta a ampla defesa, já que a boa-fé se presume, enquanto a má-fé há de ser provada.

Não coaduna com a ordem jurídica vigente um órgão estatal, essencial à função jurisdicional, ser regulado na sua atuação, concessão da gratuidade de justiça ao necessitado, por outro órgão estatal, o próprio órgão jurisdicional ao qual aquele outro órgão, Defensoria Pública, é essencial à função estatal de dizer o direito.

O órgão oficial da assistência judiciária presta serviço público relevante a função jurisdicional do Estado mesmo quando atua extrajudicialmente na composição de litígios. Ou seja, quando o órgão da assistência judiciária promove a conciliação entre as partes litigantes na fase pré-processual, extrajudicialmente, cujo instrumento de transação assume condição de título executivo extrajudicial, inciso II do at. 585 do Código de Processo Civil, concede a gratuidade de justiça aos hipossuficientes, não havendo de se falar em tributação na prestação deste serviço público específico e divisível prestado ao contribuinte.

Entender que cabe ao judiciário a concessão da gratuidade de justiça, como previsto na lei 1060/50, é reduzir o órgão estatal essencial à função jurisdicional do Estado responsável pela assistência judiciária a uma subordinação não prevista no texto constitucional, pois os poderes do Estado são autônomos e harmônicos entre si, não podendo um órgão do Poder Judiciário se imiscuir na atividade institucional de órgão autônomo de outro poder do Estado, o Poder Executivo.

A interpretação da Lei n.º 1.060/50 conforme a Constituição da República é, s.m.j., no sentido de que a gratuidade de justiça será concedida pelo órgão judiciário quando o necessitado estiver assistido por profissional da advocacia, advogado dativo, desde que inexista órgão oficial da assistência judiciária na comarca, mas não podendo incidir tal situação quando o patrono do hiposssuficiente for órgão de atuação da Defensoria Pública, instituição do Estado responsável pela assistência jurídica integral e gratuita.

É certo que é questionável a legalidade da concessão de gratuidade de justiça a quem não esteja assistido por Defensor Público, mas não há se esquecer que nem todos os Estados da Federação instituíram a Defensoria Pública, como Santa Catarina, por exemplo.

Cabe salientar que pode a parte contrária impugnar a assistência judiciária prestada pela Defensoria Pública nos moldes do preceituado no art. 7.º da Lei 1.060/50, sendo certo que tal dispositivo há de ser interpretado com supressão de texto, pois não há de se falar em situação de suficiência superveniente ao pleito da gratuidade de justiça, já que no momento da necessidade de assistência judiciária é que se perfaz o direito ao serviço público estatal, efetivando-se a concessão, momento do fato gerador da exação de custas judiciais, quando da análise da situação fática do administrado pelo órgão de atuação da Defensoria Pública.

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Assim, é frontalmente inconstitucional o contido no art. 12 da Lei Ordinária 1.060/50, por vários motivos, desde que a gratuidade de justiça é uma imunidade tributária, já que garantida em sede constitucional aos necessitados, bem como por inconstitucionalidade formal, já que lei federal não pode suspender a exigibilidade de tributo estadual, quando se estiver demandando em sede de justiça estadual.

Questão interessante é a aplicação do art. 804 do Código de Processo Penal aos réus assistidos pela Defensoria Pública face a sua hipossuficiência. Como as custas é de natureza tributária de taxa, não há como condenar o assistido pelo órgão oficial da assistência judiciária sem ofender a Constituição.

Também neste dispositivo legal, art. 804 do CPP, há de se interpretá-lo conforme a constituição, deixando de condenar o réu em custas quando assistido por órgão de atuação da Defensoria Pública. Veja que o texto legal não faz distinção entre procedência ou improcedência do pedido condenatório contido na ação penal, pois determina que o juiz deve condenar em custas o vencido. Pergunta-se: Quando há absolvição do réu na ação penal pública, o vencido, Ministério Público, é condenado em custas? Não, então por que o réu hipossuficiente, com garantia constitucional de assistência judiciária integral e gratuita deve ser condenado em custas? Não faz sentido esse odioso tratamento diferenciado.

Há quem defenda que a garantia constitucional de assistência judiciária integral e gratuita contida na Carta da República é de natureza tributária de imunidade, ou seja, o cidadão hipossuficiente no momento da concessão da assistência judiciária pelo órgão oficial, Defensoria Pública, está amparado pela imunidade tributária concedida pela Constituição, pelo que não pode existir condenação de réu hipossuficiente na seara processual penal, mesmo que vencido, pois a imunidade, como é cediço, impede a realização do fato gerador de tributos. E mais, veja que o contido no inciso II do art. 150 da Carta da República, expressamente, impede a discriminação praticada contra o réu hipossuficiente vencido no processo penal.

Por fim, há de se conjugar, por força de lei, o art. 804 com o art. 805, ambos do Código de Processo Penal, pois há de se perquirir o tratamento dado pela legislação local em sede tributária ao hipossuficiente, bem como pela isonomia de tratamento dado ao órgão acusador, Ministério Público, e o órgão de defesa, Defensoria Pública, com fincas no inciso II do art. 150 da Constituição da República.

Esta última situação deve ser solucionada na nova ordem processual penal, ora em elaboração por comissão instituída para tanto, mas enquanto em vigor o art. 804 do Código de Processo Penal, não há como se condenar o réu hipossuficiente assistido por Defensor Público, em custas na forma da fundamentação supra.

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Sobre o autor
Horácio Vanderlei Tostes

Defensor Público de Minas Gerais

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TOSTES, Horácio Vanderlei. A gratuidade de justiça como função institucional da Defensoria Pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2056, 16 fev. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12342. Acesso em: 19 abr. 2024.

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