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Princípios do moderno inquérito policial

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28/02/2009 às 00:00
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5. FUNÇÃO SOCIAL DO INQUÉRITO POLICIAL

Por força dos princípios anteriormente explicitados, sobretudo os da legalidade, oficialidade e do impulso oficial, uma vez praticado um fato tipificado em lei como criminoso, surge para o Delegado de Polícia um dever de investigação desse mesmo fato, visando a apuração da sua autoria, bem como da sua materialidade e das circunstâncias envolvidas na sua prática.

Caso não seja instaurado o inquérito policial ou, ainda que instaurado, não sejam bem conduzidas as investigações, buscando-se alcançar a sua finalidade, estarão a autoridade policial e os demais policiais envolvidos na instrução do inquérito policial sujeitos a responsabilização criminal e administrativa (disciplinar).

Por outro lado, há que se falar em um direito da autoridade policial em realizar essa investigação, de vez que, enquanto servidor público e cidadão, tem o Delegado de Polícia interesse em ver restabelecida a paz social por meio da repressão à prática ilícita violadora da norma de conduta a todos imposta.

Por tais motivos, estando sujeito aos citados princípios constitucionais e infraconstitucionais, há que se destacar que o inquérito policial, antes visto como procedimento de exercício do poder autoritário do Estado, tendente a violar os direitos do investigado, deve ser encarado hoje como instrumento de defesa da cidadania e da dignidade da pessoa humana, característica que revela a verdadeira função social do inquérito policial moderno.

Com efeito, realizando-se a investigação policial de forma responsável e com observância dos princípios elencados no presente trabalho, de modo a conhecer o fato criminoso em grau suficiente para afirmar a existência do crime e da sua autoria, com vistas a justificar o processamento ou o não-processamento de determinada pessoa a quem se imputa o fato criminoso, evitando-se que acusações infundadas prosperem, torna-se o inquérito policial utilizável, inclusive, para a defesa do(s) investigado(s), principalmente caso a Polícia Judiciária reúna provas ou indícios veementes da sua não-participação ou da inexistência de crime.

De se destacar, a título de exemplo, o recente "caso Francenildo", onde um inquérito policial inicialmente instaurado para se apurar a movimentação financeira de um caseiro que havia denunciado irregularidades envolvendo o então Ministro da Fazenda, foi convertido em investigação na qual constatou-se a violação do sigilo bancário daquele mesmo caseiro, promovida a mando do Ministro da Fazenda, culminando no formal indiciamento deste último e concluindo-se pela regularidade da movimentação financeira do caseiro.

Da mesma forma, na denominada Operação Curupira, em que foram investigados servidores do IBAMA suspeitos de favorecerem madeireiros em desmatamentos praticados no Mato Grosso, dentre os quais o Gerente Executivo do Ibama naquele Estado, constatou-se, durante os vários meses de investigação promovida pela Polícia Federal, o não-envolvimento daquele servidor com a quadrilha investigada, fato expressamente mencionado, fundamentadamente, na representação feita pelo Delegado de Polícia Federal que presidia o caso. Não obstante, o Ministério Público Federal, inadvertidamente, representou pela prisão temporária do citado Gerente, pedido deferido pela Juízo Federal, tendo o mesmo Gerente Executivo do IBAMA se valido do resultado das investigações feitas pela Polícia Judiciária da União para requerer e conseguir a revogação da sua prisão, conforme amplamente divulgado pelos meios de comunicação, à época.

Por tudo isso, sobretudo em casos como estes aqui mencionados, não há como negar que o inquérito policial constitui atualmente mais que "mera peça informativa" do órgão acusador estatal, destacando-se a sua importância na apuração da verdade real, de vez que é voltado para a apuração imparcial de práticas criminosas, constituindo, quando bem conduzido, verdadeiro instrumento de defesa da cidadania e dignidade da pessoa humana.


6. CONCLUSÕES

O inquérito policial, apesar de ser um procedimento administrativo que poucas alterações sofreu quanto à sua formalidade e à sua regulamentação legal desde a sua inserção no ordenamento jurídico pátrio, em 1871, passou por profundas mudanças no que tange aos métodos investigativos empregados na sua instrução.

Tais mudanças foram necessárias para a adequação da necessidade da sociedade de reprimir e prevenir os crimes praticados à evolução das práticas criminosas, que demandam, cada vez mais, um maior grau de especialização técnico-científica da Polícia Judiciária para a sua completa apuração.

Da mesma forma, em virtude da ordem constitucional vigente desde 1988, o inquérito policial sofreu alterações quanto à busca da sua finalidade, exigindo-se das autoridades policiais a busca da verdade real sobre o fato criminoso investigado sem que se abra mão da proteção dos direitos e garantias individuais do investigado amplamente assegurados num Estado Democrático de Direito como o nosso.

Assim, na instrução do inquérito policial, necessariamente devem ser observados os princípios constitucionais constantes do art. 5º e do art. 37 da Constituição Federal, bem como dos princípios inseridos no Código de Processo Penal e na legislação infraconstitucional aplicável àquele apuratório, de forma a resguardar os direitos e garantias constitucionais dos investigados e impedir eventuais prejuízos à ação penal que o inquérito policial visa instruir e servir de base.

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Destarte, aplicáveis ao inquérito policial são os princípios constitucionais da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade, da eficiência, da celeridade e do controle e os princípios infraconstitucionais da economia processual, da oficialidade, do impulso oficial, da indisponibilidade, da verdade real, da não-contraditoriedade e da imparcialidade.

Por tais motivos, o inquérito policial constitui, hoje, procedimento "transparente" e isento, capaz de atender aos anseios da sociedade de uma efetiva repressão penal aliada à manutenção dos direitos e garantias individuais do investigado assegurados pela Constituição.

Contudo, tais mudanças no instituto do inquérito policial pouco têm sido percebidas pelos doutrinadores, professores e, até mesmo, por grande parcela dos profissionais do Direito que com ele lidam diuturnamente, fazendo com que o inquérito policial ainda seja tido como "mera peça informativa do órgão acusador estatal", pleiteando-se, ao invés do seu aprimoramento, com a agilização das atividades investigatórias e concessão de autonomia às polícias judiciárias, a sua extinção.

Ocorre que, não obstante a patente necessidade de se modernizar o "processamento do inquérito", há que se reconhecer que ele talvez seja o único instrumento processual penal não contraditório capaz de combinar o interesse social em promover a repressão delitiva com a garantia da busca imparcial da verdade real, observando-se as garantias e liberdades individuais do investigado ainda na fase pré-processual.

Ademais, o inquérito policial serve de "contra-peso" ao poder acusatório estatal, de vez que, embora possa vir a ser utilizado pelo Ministério Público numa ação penal, é inteiramente desenvolvido pela Polícia Judiciária, órgão não subordinado ao parquet, nem afeto às influências do investigado, mas comprometido com a busca da verdade real, isento e livre, portanto, para realizar a investigação em sua plenitude, atendendo aos anseios da sociedade.


REFERÊNCIAS

ANDRADE, Ivan Morais de. Polícia Judiciária. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1953, p. 13/18.

AQUINO, José Carlos G. Xavier de. Manual de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 85/90.

AZEVEDO, Vicente de Paulo Vicente de. Curso de Direito Judiciário Penal. Vol. 1. São Paulo: Saraiva, 1958, p. 122/145.

CABRAL NETO, Joaquim. Instituições de Processo Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 1997, p. 21/41.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2006, p. 80/100.

ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código de Processo Penal Brasileiro Anotado. 1. ed. Vol. 1. Atualizado por José Geraldo da Silva e Wilson Lavorenti de acordo com a legislação vigente. Campinas: Bookseller, 2000, p. 283/366.

FONSECA, Gilson. Noções Práticas de Processo Penal. Rio de Janeiro: Aide, 1993, p. 09/22.

GRECO FILHO, Vicente. Manual de Processo Penal. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 91/104.

MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Processual Penal. Vol. 1. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 180/198.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 26. ed. Atualizada por Eurico de Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo, José Emmanuel Burle Filho. São Paulo: Malheiros Editores, 2001, 782 p.

MIRABETE, Julio Fabrini. Processo Penal. 16. ed. ver. e atual. até janeiro de 2004. São Paulo: Atlas, 2004. 849 p.

NORONHA, E. Magalhães. Curso de Direito Processual Penal. 18 ed. Atualizada por Adalberto José Q. Q. de Camargo Aranha. São Paulo: Saraiva, 1987, p. 17/24.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 20. ed. rev. modificada e ampl. Vol. 1. São Paulo: Saraiva, 1998. 635 p.


Notas

  1. AQUINO, José Carlos G. Xavier de. Manual de Processo Penal, p. 85; TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, p. 196.
  2. ANDRADE, Ivan Morais de. Polícia Judiciária, p. 13-18.
  3. FONSECA, Gilson. Noções Práticas de Processo Penal, p. 9; AQUINO, José Carlos G. Xavier de. Manual de Processo Penal, p. 85; TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, p. 196.
  4. MIRABETE, Júlio Fabrini. Processo Penal, p. 78/79.
  5. MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Processual Penal, p. 180
  6. MIRABETE, Júlio Fabrini. Processo Penal, p. 82.
  7. MIRABETE, Júlio Fabrini. Processo Penal, p. 82
  8. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, p. 81/82.
  9. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, p. 85.
  10. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, p. 83/85
  11. Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
  12. (...)

    LVI - são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos;

  13. Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
  14. (...)

    LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;

  15. Art. 20.  A autoridade assegurará no inquérito o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade.
  16. MIRABETE, Júlio Fabrini. Processo Penal, p. 83.
  17. Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
  18. (...)

    LXXVIII a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.

  19. Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
  20. (...)

    XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.

  21. "Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:
  22. [...]

    VII - exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei complementar mencionada no artigo anterior.

  23. Art. 4º A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria. Parágrafo único.  A competência definida neste artigo não excluirá a de autoridades administrativas, a quem por lei seja cometida a mesma função.
  24. Art. 17.  A autoridade policial não poderá mandar arquivar autos de inquérito.
  25. MIRABETE, Júlio Fabrini. Processo Penal, p. 47.
  26. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, p. 40/42.
  27. Art. 107.  Não se poderá opor suspeição às autoridades policiais nos atos do inquérito, mas deverão elas declarar-se suspeitas, quando ocorrer motivo legal.
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Sobre o autor
Elster Lamoia de Moraes

Delegado de Polícia Federal em Belo Horizonte (MG). Especialista em Direito Público. Especialista em Inteligência de Estado e Inteligência de Segurança Pública.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORAES, Elster Lamoia. Princípios do moderno inquérito policial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2068, 28 fev. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12390. Acesso em: 29 mar. 2024.

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