4.
Infere-se da breve exposição que os argumentos exteriorizados pelos defensores da descriminalização dos crimes fiscais carecem de uma ponderação constitucional mais acurada acerca do(s) bem(ns)-jurídico(s) de que se cuida.
Por igual, tais argumentos derivam de uma visão deturpada da função do Estado em tempos posteriores à Constituição Federal de 1988: tomam por pressuposto o já superado maniqueísmo Estado-mau/indivíduo-bom. Como é consabido, essa visão não se coaduna com um Estado constitucional que arroga para si a titularidade das benfeitorias sociais, mediante incessantes incursões no âmbito social visando à redução dos efeitos nefastos advindos da modernidade tardia brasileira e dos recentes influxos neoliberais.
A fragilidade dos argumentos descriminalizantes é facilmente desmascarada por uma filtragem constitucional do delito em questão, que revela a pujança da função do tributo para a consecução dos fins do Estado Democrático de Direito em terrae brasilis.
Com efeito, dada as características do tributo no ordenamento constitucional brasileiro, pode-se afirmar que a transgressão ao dever de recolhimento, nos moldes das condutas tipificadas nos delitos fiscais formais e materiais do ordenamento brasileiro, constitui ofensa a bem-jurídico penalmente relevante, não sendo passível de punição meramente administrativa.
E isso não se dá só em virtude da já salientada função do tributo, mas também em razão da afronta ao erário público e à atuação positiva do Estado na promoção dos direitos fundamentais protegidos pela CF/88, especialmente os direitos de segunda e terceira dimensões.
Os defensores da descriminação, portanto, uma vez que se baseiam em argumentos completamente desvencilhados da reflexão constitucional, são acometidos de uma "baixa" compreensão da Constituição da República, advinda essencialmente da utilização tradicional da arcaica doutrina liberal-individualista. Não percebem que, com a utilização seja de raciocínios moralizantes-vitimológicos, seja de argumentos volvidos à proibição da prisão civil por dívida, acabam por ingressar em contradições insuperáveis.
Como poderia uma ordem constitucional que preza pela implementação de um Estado forte e interventor admitir que a afronta à sua principal fonte de custeio não arrogue status de bem-jurídico relevante para a repressão criminal? Como poderia, a contrariu sensu, sustentar-se a incriminação de crimes patrimoniais sem violência bem menos graves e lesivos à ordem social, se a evasão tributária (formal ou material) fosse tratada apenas em âmbito administrativo? São essas algumas das perguntas que permanecem silentes pelos defensores da descriminação do delito fiscal.
Ademais, a descriminação do delito fiscal seria inconstitucional, ante a ofensa à cláusula da proteção suficiente (sendo o mesmo raciocínio aplicável ao disposto no art. 9ª, §2º, da Lei nº 10.684/03), bem como à cláusula de proibição do retrocesso.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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http://leniostreck.com.br/index.php?option=com_docman&task=doc_download&gid=66&Itemid=40 (acesso em 25/02/2009)Notas
- MACHADO, Hugo de Brito. Crimes contra a ordem tributária. São Paulo: Atlas, 2008, p. 201-205.
- ROXIN, Claus. Derecho Penal: Parte General. Tomo I: Fundamentos. La estrutura de la teoria del delito. 1 ed. Madrid: Civitas, 1997, p. 55-56 (Tradução livre)
- STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 7. Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2007, p. 37.
- ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 6ª. ed. 9ª tiragem. São Paulo: Malheiros Editores, 2008, p. 21-23.
- RIOS, Rodrigo Sanchez. O crime fiscal. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, p. 34-35.
- PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Econômico. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p.494.
- PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro, volume 2: parte especial (arts. 121 a 361). 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 286.
- http://leniostreck.com.br/index.php?option=com_docman&task=doc_download&gid=66&Itemid=40 (acesso em 25/02/2009)
- Cfe. MACHADO. op.cit. p. 389
- EISELE, Andreas. Crítica ao direito penal tributário brasileiro. Blumenau: Acadêmica, 2007, p. 28-29.
- WARAT, Luis Alberto. O direito e sua linguagem. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1995.
- Vide referência n. 8.
- Sarlet, Ingo Wolfgang. Constituição e proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre a proibição de excesso e de insuficiência. Revista da Ajuris, ano XXXII, nº 98, junho/2005, p. 132.
- É importante ter bem em mente o que é a proibição de proteção deficiente. Sobre o assunto, escreve Gilmar Ferreira Mendes: "Assim, na dogmática alemão é conhecida a diferenciação entre o princípio da proporcionalidade como proibição de excesso (Ubermassverbot) e como proibição de proteção deficiente (Untermassverbot). No primeiro caso, o princípio da proporcionalidade funciona como parâmetro de aferição da constitucionalidade das intervenções nos direitos fundamentais, como proibições de intervenção. No segundo, a consideração dos direitos fundamentais, como imperativos de tutela (Canaris) imprime ao princípio da proporcionalidade uma estrutura diferenciada. O ato não será adequado quando não proteja o direito fundamental de maneira ótima; não será necessário na hipótese de existirem medidas alternativas que favoreçam ainda mais a realização do direito fundamental; e violará o subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito se o grau de satisfação do fim legislativo é inferior ao grau em que não se realiza o direito fundamental de proteção" (MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Bonet. Curso de Direito Constitucional. 2. Ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 585-586)
- Vide nota nº 8, p. 17-21.
- BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 6. Ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 379.