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Direitos humanos, conhecimentos tradicionais e propriedade intelectual.

Uma análise zetética e dogmática

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17/03/2009 às 00:00
Leia nesta página:

3. O Direito de Propriedade Intelectual

Trata-se de um direito de propriedade especial, pois assegura duas categorias de propriedades: 1) a propriedade autoral e; 2) a propriedade de inventos, marcas e patentes.

No Direito brasileiro [50], a Constituição garante os direitos patrimoniais do autor (direito de usar, gozar e dispor de suas obras – sendo tal direito transmissível aos seus herdeiros), sendo a matéria regulamenta pela Lei 9.610/98. Sobre os inventos de natureza industrial, o texto constitucional garante o privilégio temporário de sua utilização, que hoje possui previsão na Lei n.º 9.279/98. Para este estudo, destacamos a proteção da propriedade industrial por meio da concessão de patentes.

No Direito colombiano, Yolanda Álvares Álvarez, destaca que a proteção do direito de propriedade intelectual destina-se à configuração dada por cada sujeito a um conceito expressado. Pois, cada um exprime seu estilo próprio, digno da tutela jurídica contra o plágio ou a usurpação, e o reconhecimento pecuniário por sua difusão ou utilização [51].

Ainda de acordo com a legislação da Colômbia, os direitos do autor compreendem as obras literárias, artísticas e científicas, sem se importar com o mérito literário ou artístico, assim como com o seu destino. Sobre os direitos de propriedade industrial, estes compreendem as criações susceptíveis de aproveitamento no comércio e na indústria, destacando os seguintes: a) os inventos; b) os modelos de utilidade; c) os segredos industriais; d) os desenhos industriais; e) os signos distintivos do comerciante (ex.: marcas); f) os direitos que derivam da obtenção de novas variedades vegetais ou do melhoramento das existentes [52].

3.2 Os conhecimentos tradicionais como um direito de propriedade intelectual

Lucila Fernandes Lima, ao comentar as inovações promovidas no século XX para o desenvolvimento, oferece uma classificação em que apresenta duas espécies de ecossistemas:

Ecossistema técnico: a possibilidade de se retirar, diretamente do ecossistema, os bens não processados e necessários à sua continuidade, ou à sua futura transformação em outros bens, dos quais somos carentes.

Ecossistema primário: a utilização processada de bens disponíveis no ecossistema, os quais obtemos, de forma controlada e independente da natureza, por meio de laboratório (transgênicos, por exemplo) [53].

Os conhecimentos tradicionais atuam, de forma direta, nas atividades que envolvem o ecossistema técnico. Entretanto, as atividades desempenhadas pela biotecnologia (ecossistema primário), em muitos casos, recebem contribuições de tais conhecimentos.

Nessa linha, pode-se dizer que os conhecimentos tradicionais trabalham com a propriedade corpórea e a biotecnologia, como atividade final, trabalha com a propriedade intelectual. Com base nas diferenças elencadas por Maria Thereza Wolf [54] podemos montar o seguinte quadro comparativo sobre estas duas espécies de propriedades.

Propriedade Corpórea

Propriedade Intelectual

Propriedade perpétua (produto ou parte)

Direito de propriedade temporário (patentes)

 

Matéria biológica: informação contida no gene de determinado organismo

Direitos de melhoristas: material propagativo (semente-produção ou grão-indústria/consumo)

Os conhecimentos tradicionais, como se pode observar, integram estas duas formas de propriedades. Possuem valor econômico real, ainda que em potencial, no entanto, são constituídos por certas peculiaridades: sua titularidade alcança interesses coletivos, possui uma forma diferenciada de transmissão e pode conter valores culturais e religiosos [55].

Com efeito, diante da necessidade de se proteger a apropriação indevida de tais recursos, alguns autores [56] defendem a tese de que a tutela jurídica dos conhecimentos tradicionais dispõe de um direito sui generis de propriedade intelectual, dada a titularidade coletiva de indivíduos indeterminados [57].

3.3 A propriedade intelectual como um direito humano

No campo internacional, a propriedade intelectual é reconhecida como um direito humano, com base no art. XXVII da Declaração Universal, bem como no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, adotado pela Assembléia Geral das Nações Unidas, mediante a Resolução 2200 A (XXI) de 16/12/1966. De acordo com o art. 15 do Pacto:

1. Los Estados Partes en el presente Pacto reconocen el derecho de toda persona a:

a) Participar en la vida cultural;

b) Gozar de los beneficios del progreso científico y de sus aplicaciones;

c) Beneficiarse de la protección de los intereses morales y materiales que le correspondan por razón de las producciones científicas, literarias o artísticas de que sea autora.

2. Entre las medidas que los Estados Partes en el presente Pacto deberán adoptar para asegurar el pleno ejercicio de este derecho, figurarán las necesarias para la conservación, el desarrollo y la difusión de la ciencia y de la cultura.

3. Los Estados Partes en el presente Pacto se comprometen a respetar la indispensable libertad para la investigación científica y para la actividad creadora.

4. Los Estados Partes en el presente Pacto reconocen los beneficios que derivan del fomento y desarrollo de la cooperación y de las relaciones internacionales en cuestiones científicas y culturales [58].

Para Flávia Piovesan, o regime internacional de direitos humanos traz a necessidade do surgimento de uma redefinição sobre o sentido e alcance do direito de propriedade intelectual. A jurista aponta sete conclusões sobre este processo:

1) os contornos conceituais do direito à propriedade intelectual devem considerar sua função social, transitando, assim, de um paradigma liberal individualista exclusivamente protetivo dos direitos do autor relativamente à sua produção artística, científica e literária para um paradigma coletivista que contemple as dimensões sociais do direito à propriedade intelectual, bem como do direito à propriedade industrial, que tem dentre seus objetivos principais o incentivo à inovação;

2) à luz deste novo paradigma, há que se buscar um adequado equilíbrio entre a proteção dos direitos do autor relativamente à sua produção artística, científica e literária e os direitos sociais à saúde, à educação e à alimentação assegurados pelo Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e pelos demais tratados internacionais de proteção dos direitos humanos. Ressalte-se que os Estados-partes assumem o dever jurídico de respeitar, proteger e implementar tais direitos, garantindo um "minimum core obligation" afeto aos direitos sociais, bem como o dever de promover a aplicação progressiva destes direitos, vedado retrocesso social. Daí a necessidade de compatibilizar os tratados de natureza comercial à luz dos parâmetros protetivos mínimos consagrados pelos tratados de direitos humanos, observando-se que, gradativamente, as dimensões e preocupações relacionadas à proteção dos direitos humanos têm sido incorporadas pelos tratados comerciais. Note-se, ainda, que, via de regra, o conflito não envolve os direitos do autor versus os direitos sociais de toda uma coletividade; mas, sim, o conflito entre os direitos de exploração comercial (por vezes abusiva) e os direitos sociais da coletividade.

3) os regimes jurídicos de proteção ao direito à propriedade intelectual devem ser avaliados no que concerne ao impacto que produzem no campo dos direitos humanos, anteriormente à sua implementação e após determinado período temporal;

4) medidas protetivas especiais devem ser adotadas em prol da proteção da produção científica, artística e literária de povos indígenas e de minorias étnicas, religiosas e linguísticas, considerando as peculiariedades, singularidades e vulnerabilidades destes grupos, bem como a proteção de seus direitos coletivos, assegurado o seu direito à informação e à participação nos processos decisórios afetos ao regime de proteção da propriedade intelectual;

5) a cooperação internacional e uma nova relação entre os hemisférios Norte/Sul, Sul/Sul e Sul/organismos internacionais são essenciais para avanços no campo cultural e científico, com destaque ao acesso ao conhecimento e à efetiva transferência de tecnologia, sob a inspiração do direito ao desenvolvimento. Deve ser encorajada a remoção de barreiras ao sistema educacional e de pesquisa, considerando a possibilidade da ciência produzir avanços ao crescimento econômico, ao desenvolvimento humano sustentável e à redução da pobreza;

6) o direito ao acesso à informação surge como um direito humano fundamental em uma sociedade global em que o bem estar e o desenvolvimento estão condicionados, cada vez mais, pela produção, distribuição e uso eqüitativo da informação, do conhecimento e da cultura. Destacam-se, nesta direção, importantes iniciativas de um "emerging countermovement", cabendo menção, a título exemplificativo, à Wikipedia; ao Creative Commons; à FLOSS, dentre outras, que objetivam transformar o paradigma tradicional vigente acerca da propriedade intelectual, tornando-a mais acessível, democrática e plural, eliminando, assim, barreiras ao acesso à informação;

7) há desafio de redefinir do direito à propriedade intelectual à luz da concepção contemporânea dos direitos humanos, da indivisibilidade, interdependência e integralidade destes direitos, com especial destaque aos direitos econômicos, sociais e culturais e ao direito ao desenvolvimento, na construção de uma sociedade de aberta, justa, livre e plural, pautada por uma democracia cultural emancipatória [59].

Segunda parte. Análise Dogmática: questão de ordem.


4. Proteção aos recursos genéticos ou biológicos?

Dentro do regime jurídico da Convenção sobre Diversidade Biológica, uma questão de ordem multidisciplinar precisa ser esclarecida: Os Estados possuem o direito soberano de legislar sobre o acesso aos recursos genéticos ou biológicos?

Como já foi dito em outra oportunidade, de acordo com a distinção feita por Vladimir Garcia Magalhães, a proteção dos conhecimentos tradicionais deve abranger o campo dos recursos biológicos, pois assim a proteção atingiria as moléculas de DNA/RNA, além de outros elementos.

Ao analisar os dispositivos da CDB, a soberania dos Estados é manifestada em três momentos distintos: 1) no preâmbulo, ao reafirmar o direito soberano dos Estados sobre seus recursos biológicos; 2) no artigo 3, ao estabelecer, como princípio, o direito soberano dos Estados de exploração dos seus recursos, segundo suas políticas ambientais; e 3) no artigo 15, ao disciplinar sobre o acesso aos recursos genéticos, garantiu a convenção o direito soberano aos Estados de legislarem acerca do acesso ao patrimônio genético que lhes pertence.

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A convenção, assim como qualquer outro texto normativo, deve ser interpretada e aplicada, com unidade e harmonia, mediante todos os seus elementos. No Direito brasileiro, o STF já se manifestou sobre o poder vinculante do preâmbulo da Constituição e reconheceu este como sendo parte integrante da norma fundamental [60]. Desse modo, portanto, o preâmbulo da convenção deve ser respeitado como elemento passível de interpretação.

No que diz respeito ao artigo 3, a convenção considera-o como um princípio, que, na visão de Karl Lorenz, são normas de grande relevância para o ordenamento jurídico, na medida em que estabelecem fundamentos normativos para a interpretação e aplicação do Direito, deles decorrendo, direta ou indiretamente, normas de comportamento [61].

Nessa linha, o artigo 15 é, apenas, uma regra, norma de conduta composta por um caráter formal de proposições (hipóteses e conseqüências), que, sob a direção indicada através da interpretação conferida por um princípio, alcançará sua concretude por meio da aplicação [62].

Dentro da presente convenção, portanto, pode-se concluir que sua pretensão alcança a proteção dos recursos biológicos, garantindo aos Estados o direito soberano de legislar sobre o seu acesso. A norma internacional tem como principio a garantida conferida aos Estados de explorar seus recursos, de forma soberana, garantia já mencionada no preâmbulo, na forma de recursos biológicos. Sobre o papel do preâmbulo, Celso Bastos destaca que, é possível obter nos preâmbulos alguns vetores para a atividade interpretativa, dado que, na maior parte das vezes, consagram declarações principiológicas, de caráter geral [63].


5. Uma norma de interpretação fundamental

Superada a questão quanto à leitura da Convenção, ao internalizá-la no ordenamento jurídico brasileiro, tem-se novamente o dilema. Dispõe o art. 225 "caput" da CF, sobre o direito constitucional de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, onde, prescreve §1º, II que, para assegurar a efetividade deste direito, caberá ao poder público, "preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético".

Nessa linha, defendemos a tese de que, fazendo-se uma interpretação literal do referido dispositivo, não há qualquer incompatibilidade entre o texto constitucional e a CDB. O legislador constituinte, ao disciplinar o dever de preservar a diversidade, automaticamente garantiu, em conformidade com a CDB, o direito internacional garantido na convenção de legislar, de forma soberana, sobre o acesso aos seus recursos biológicos.

Resta, portanto, ao legislador ordinário a tarefa de reformar a legislação infraconstitucional, a começar pelo próprio art. 7º, II da MP n.º 2.186-16/01. A importância desta questão encontra-se no fato de que, admitindo-se a expressão "recursos biológicos", conforme ensina Vladimir Garcia Magalhães, através de uma analogia feita sobre bens principais e acessórios que,

Logo, de modo análogo, se a soberania em questão incide sobre essas moléculas biológicas, que integram os recursos naturais de um Estado, incide também sobre as informações relativas às propriedades que elas portam – ou seja, seu componente imaterial – objetos das solicitações de patentes de material biológico, pois este não existe sem aquele sendo acessório dele [64].

Nesse raciocínio, fazemos um acréscimo: diante destas argumentações, a proteção dos conhecimentos tradicionais é matéria constitucional que, na forma do art. 225, §1º, II da CF, necessita de regulamentação que, através de um regime jurídico próprio, seja capaz de assegurar a efetividade desse direito humano de terceira geração.

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Sobre o autor
Heitor Miranda de Souza

Mestrando em Direito Ambiental (UNISANTOS). Bolsista CAPES. Professor e Pesquisador. Advogado (Direito Público)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Heitor Miranda. Direitos humanos, conhecimentos tradicionais e propriedade intelectual.: Uma análise zetética e dogmática. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2085, 17 mar. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12479. Acesso em: 24 abr. 2024.

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