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A Convenção nº 158 da Organização Internacional do Trabalho e o direito brasileiro

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23/03/2009 às 00:00
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5 A argüição da inconstitucionalidade da Convenção nº 158 perante o Supremo Tribunal Federal

Em 08/07/1996, a Confederação Nacional do Transporte (CNT) e a Confederação Nacional da Indústria (CNI) ajuizaram, perante o Supremo Tribunal Federal, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) n. 1.480, com pedido de concessão liminar da tutela jurisdicional. Por meio dessa ação, requeriam a declaração da invalidade constitucional do Decreto Legislativo n. 68, de 16/09/1992, que aprovou a Convenção n. 158, e do Decreto n. 1.855, de 10/04/1996, que cuidou de promulgá-la.

A Suprema Corte, por maioria, concedeu a medida liminar requerida, suspendendo a eficácia dos diplomas normativos acima aludidos, até o julgamento final da ADIn. Entretanto, em 20 de dezembro de 1996, foi editado o Decreto n. 2.100, para tornar público o registro da denúncia da Convenção em tela, efetuado pelo Brasil, junto ao Diretor-Geral da OIT, em 20 de novembro daquele mesmo ano. O referido diploma mencionava que, a partir de 20 de novembro de 1997, isto é, um ano após registrada a denúncia, a Convenção nº 158 não estaria mais em vigor no País, consoante previsto pelo art. 17, parágrafo 1, desse tratado.

Em razão da mencionada denúncia, o Pretório Excelso julgou extinta a ADIn, em virtude da "perda superveniente de seu objeto". Todavia, cumpre analisar os argumentos contrários à constitucionalidade dos diplomas legais que aprovaram e promulgaram a Convenção n. 158, apontados pelo STF quando da concessão de medida liminar na ADIn n. 1.480.

Foram três, basicamente, os argumentos contrários à validade da Convenção n. 158, apreciados pela Suprema Corte. Primeiramente, afirmou-se que o objeto da Convenção é a regulamentação do art. 7º, I, da Carta Magna, e, pelo fato de esse dispositivo exigir que isso seja feito através de lei complementar, seria o referido tratado inválido, por desobediência a esse preceito constitucional. Com efeito, de acordo com entendimento consagrado pela Suprema Corte, o tratado internacional é incorporado à ordem jurídica interna com a hierarquia de lei ordinária, não podendo, portanto, regular matéria reservada à lei complementar. O segundo argumento refere-se ao art. 10 da Convenção, que prevê a possibilidade de o trabalhador despedido arbitrariamente ser reintegrado na empresa. Afirmou-se ser esse dispositivo contrário à forma de proteção assegurada pela Lei Maior, que é a indenização compensatória, mencionada expressamente no art. 7º, I, e no art. 10, I, do ADCT. Alegou-se, por fim, que a Convenção seria inaplicável, em razão do disposto em seu art. 1º, sendo, portanto, "mera proposta de legislação dirigida ao legislador interno".

Dos três argumentos acima mencionados, apenas o segundo não foi aceito pelo STF, pois que este considerou que a Convenção n. 158, em seu art. 10, não impõe que os países-membro adotem a reintegração como resposta à invalidação da dispensa, podendo estes optar pelo pagamento de uma indenização. Os outros dois argumentos foram acolhidos pelo Pretório Excelso, no julgamento da liminar.

A Convenção dispõe, em seu art. 1º, que cada país poderá dar efeito às suas disposições, em seu plano interno, através da legislação, quando isso não for feito por meio de contratos coletivos, laudos arbitrais, sentenças judiciais, ou outra forma adotada pela prática nacional. Em razão desse dispositivo, o Pretório Excelso afirmou que a Convenção não seria auto-aplicável, pois que ela própria estaria condicionando a sua eficácia à regulamentação através da legislação nacional. Mas não é esse o sentido do preceito em comento.

O texto da atual Constituição da OIT, aprovado na 29ª Reunião da Conferência Internacional do Trabalho, realizada em Montreal, em 1946, dispõe, em seu art. 19, §3º:

"A Conferência deverá, ao elaborar uma convenção ou recomendação de aplicação geral, levar em conta os países que se distinguem pelo clima, pelo desenvolvimento incompleto da organização industrial ou por outras circunstâncias especiais relativas à indústria, e deverá sugerir as modificações que correspondem, a seu ver, às condições particulares desses países". [30]

Esse dispositivo revela que a atividade normativa da OIT, com vistas à preservação do seu caráter universal, procura levar em consideração a grande diversidade existente entre os seus Estados-membros, através de disposições dotadas de maior generalidade, denominadas "fórmulas de flexibilidade", as permitem que os instrumentos possam ser adaptados às peculiaridades dos países [31].

É nessa ordem de idéias que deve ser compreendido o art. 1º da Convenção n. 158. Por se tratar de um tratado multilateral, passível de ser ratificado e aplicado pelos diversos Estados-membros da OIT, a Convenção permite que estes regulamentem alguns de seus aspectos, para melhor adequá-la à realidade e às particularidades nacionais. Um exemplo é o art. 2º, que permite que o país-membro exclua algumas categorias de empregados, nos parâmetros ali fixados, de algumas ou de todas as disposições da Convenção. Essa permissibilidade não significa, de modo algum, ausência de eficácia, mas, ao contrário, será esta plena enquanto não vier a sofrer restrições, como ocorre com as normas de eficácia contida, cujo conceito foi acima explicitado. Nesse sentido, são os ensinamentos de Antônio Álvares da Silva:

"Evidentemente não é esta a intenção do artigo 1º. Ao se referir à legislação nacional e á negociação coletiva para ‘dar efeito’ às disposições, a Convenção quis referir-se às diferentes passagens de seu texto onde certos aspectos da matéria são relegados à legislação complementar dos estados-membros, com o objetivo de flexibilizar e harmonizar seus dispositivos com a legislação local. Não significa que a própria Convenção 158 fique dependendo de lei e que seus dispositivos autoaplicáveis – que são todos, em nosso entendimento – não possam imediatamente entrar em vigência." [32]

Não podemos olvidar o princípio basilar de hermenêutica que prescreve que, frente a duas interpretações acerca de um dispositivo, deve-se optar por aquela que lhe confira maior efetividade. Esse princípio torna-se ainda mais imperativo no caso em tela, posto que a Convenção n. 158, por conter normas relativas a direitos e garantias fundamentais, tem aplicabilidade imediata, nos termos do art. 5º, §1º, da Constituição Federal. Acerca desse dispositivo, José Afonso da Silva tece os seguintes comentários:

"Sua existência só por si (...) estabelece uma ordem aos aplicadores da Constituição no sentido de que o princípio é o da eficácia plena e a aplicabilidade imediata das normas definidoras dos direitos fundamentais: individuais, coletivos, sociais, de nacionalidade e políticos, de tal sorte que só em situação de absoluta impossibilidade se há de decidir pela necessidade de normatividade ulterior de aplicação. Por isso, revela-se, por seu alto sentido político, como eminente garantia política de defesa da eficácia jurídica e social da Constituição." [33]

Outra norma de hermenêutica que deve ser invocada é o art. 5o do Decreto-lei n. 4.657, de 04 de setembro de 1942, conhecido como Lei de Introdução ao Código Civil. Esse dispositivo estabelece que a interpretação de um diploma legal deve atender aos fins sociais a que ele se dirige e às exigências do bem comum. Ora, a interpretação conferida pelo STF viola esse dispositivo, posto que, retirando eficácia da Convenção n. 158, contraria a sua finalidade, de fundamental importância ao bem-estar social, que é a proteção da relação de emprego contra as dispensas imotivadas. Nesse sentido, pode-se invocar, ainda, o princípio da norma mais favorável, que prescreve que a norma justrabalhista deve ser interpretada no sentido mais favorável ao trabalhador [34].

Demonstrada a insubsistência do argumento supra explicitado, passemos à análise daquele eleito como fundamental pela Suprema Corte, para considerar inconstitucional a Convenção em tela: o da exigência de lei complementar pelo art. 7º, I, da Carta Magna, para regular a proteção ali prevista. O STF firmou entendimento, por meio de diversas decisões [35], no sentido de o tratado internacional, aprovado pelo Congresso Nacional e promulgado pelo Presidente da República, ser incorporado à ordem jurídica interna com a hierarquia de lei ordinária. Sendo esse o status da Convenção n. 158, não poderia ela tratar de matéria reservada constitucionalmente à lei complementar, razão pela qual seria inválida, formalmente, frente à Carta Magna.

A decisão prolatada pela Suprema Corte recebeu duras críticas por parte de diversos autores. Afirmou-se que a equiparação do tratado internacional à lei ordinária não pode prosperar, posto inexistir qualquer norma constitucional expressa nesse sentido. Ao contrário, a Lei Maior, em seu art. 105, III, "a", aponta no sentido da equivalência entre o "tratado" e a "lei federal", aqui referida em sentido amplo, sem distinção entre lei ordinária e complementar. Assim, não haveria que se falar em inferioridade hierárquica do tratado em relação à lei complementar, podendo aquele, portanto, cumprir o papel reservado a esta.

Defendeu-se também a ausência de hierarquia normativa entre a lei ordinária e a lei complementar, uma vez que a diferenciação existente entre elas é apenas com relação ao quorum exigido para a sua aprovação, posto ser este qualificado com relação ao diploma complementar, nos termos do art. 69 da Lei Maior. A existência de uma formalidade mais rigorosa para a aprovação de lei complementar advém da necessidade de se conferir maior estabilidade a esse diploma, com relação a eventuais alterações, em virtude de ter ele a função de regular determinadas matérias de maior importância, sob a ótica constitucional. Ocorre que a Convenção n. 158 atenderia a esse escopo, na medida em que a sua denúncia, que equivaleria à revogação da lei, só poderia ser feita após dez anos de sua ratificação e, mesmo assim, só produziria efeitos após um ano de seu registro junto à OIT, consoante previsto por seu art. 17, parágrafo 1.

Demais disso, o tratado, por força do disposto no art. 5º, §2º, da Constituição Federal, cumpriria o mesmo papel por esta reservado às leis complementares, qual seja, o de integrar o conteúdo dos preceitos constitucionais, compondo o denominado bloco de constitucionalidade. Assim, o preceito constante do art. 7º, inciso I, ao mencionar a lei complementar, não excluiria a possibilidade de a matéria ser regulada através de um tratado internacional, que cumpre também o papel de integrar os dispositivos constitucionais. Essa exigência do diploma complementar dirigir-se-ia apenas ao legislador interno, que estaria jungido à edição dessa espécie normativa para regular validamente o preceito constitucional em análise.

Argüiu-se também, em favor da validade da Convenção em comento, o fato de ter sido ela aprovada pelo Congresso Nacional, através do Decreto Legislativo n. 68/92, o que revela a sua "constitucionalidade implícita". Com efeito, caso fosse esse tratado contrário à Lei Maior, não teria recebido a aprovação do Congresso Nacional. Isso ocorreu com a Convenção n. 87 da OIT, que versa sobre a autonomia sindical, a qual não foi aprovada pelo Parlamento Nacional, por ser contrária à Carta Política [36].

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Os argumentos acima expostos já seriam mais do que suficientes para rebater o entendimento adotado pelo STF, qual seja, o da inconstitucionalidade da Convenção n. 158. Todavia, há uma peculiaridade nesse tratado que nos leva a uma outra linha argumentativa, mais coerente e harmônica com as normas e o espírito da Constituição Federal de 1988.

Conforme supra demonstrado, a Convenção n. 158, sendo um tratado de proteção de direitos humanos, tem hierarquia constitucional. No momento em que ela foi ratificada pelo Brasil, tornou-se parte da Constituição Federal de 1988, o que conferiu contornos precisos à proteção contra as dispensas imotivadas, prevista em seu art. 7º, inciso I, tornando-a um direito de eficácia imediata.

Entretanto, a própria Convenção admite a restrição do alcance de algumas de suas normas (v.g, exclusão de alguns empregados da proteção contra a dispensa arbitrária), o que poderá ser feito através da legislação infraconstitucional. Esse é o papel a ser cumprido pela lei complementar referida pelo art. 7º, I, qual seja, o de limitar, no que for permitido, obviamente, a eficácia da proteção em tela, e não de conferir a ela efetividade, posto que esta já se faz presente.

Desse modo, torna-se claro o equívoco do entendimento adotado pelo STF. Não se pode falar que a Convenção n. 158 é inconstitucional por veicular matéria reservada à lei complementar pelo disposto no art. 7º, inciso I, da Carta Magna. Essa Convenção é parte integrante da Carta da República, integrando a proteção referida no aludido dispositivo constitucional. A lei complementar aí referida é que cuidará de regular alguns de seus aspectos, mas sempre em obediência ao disposto na Convenção, em razão de seu status constitucional.


6.A invalidade da denúncia da Convenção n. 158 da OIT

Resta-nos, por fim, analisar a questão relativa à denúncia da Convenção n. 158 pelo Decreto n. 2.100/96.

Cumpre observar que em 19/06/1997, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG) e a Central Única dos Trabalhadores (CUT) ajuizaram a ADIn n. 1.625, visando à declaração da inconstitucionalidade do Decreto n. 2.100/96. Por maioria de votos, o plenário do STF julgou a CUT parte ilegítima, excluindo-a do pólo ativo da ação. No julgamento do mérito, o Ministro Relator Maurício Corrêa e o Ministro Carlos Britto proferiram seus votos no sentido da procedência parcial da ação, por entenderem ser necessário o referendo do Congresso Nacional, por força do art. 49, I, da Carta Magna, para que a denúncia fosse eficaz.

O Ministro Nélson Jobim, no entanto, pediu vista dos autos em 09/10/2003, requerendo a renovação da mesma em 28/04/2004, o que foi acatado pelo presidente da Corte à época, Ministro Maurício Corrêa. Finalmente, em março de 2006, o então presidente do Tribunal, Ministro Nélson Jobim, na iminência de se aposentar do cargo, proferiu sua decisão, no sentido da improcedência da ação. O Ministro Joaquim Barbosa, por sua vez, em 29/03/2006, requereu vista dos autos, os quais foram remetidos ao seu gabinete, sendo essa a situação existente no momento em que se escreve o presente trabalho.

Importa, primeiramente, expor uma diferença de fundamental importância existente entre os tratados internacionais, no que tange ao seu conteúdo [37]. A distinção é feita entre os tratados de proteção dos direitos humanos e os tratados ditos comuns ou tradicionais, que versam sobre outras matérias, diversas dessa temática. Essa diferenciação é de grande relevância na medida em que influi na determinação de sua hierarquia normativa e nas formalidades necessárias à sua denúncia.

Com relação à hierarquia normativa dos tratados, é tema já analisado, cabendo apenas observar-se que, no que tange aos tratados comuns, há importante corrente doutrinária que, discordando do entendimento do STF de que teriam o status de lei ordinária, afirmam que se situam abaixo da Constituição Federal e acima da legislação infraconstitucional [38]. Importa também observar que se costuma invocar alguns dispositivos da Carta Magna (v.g, art. 105, III, "a"), para afirmar que esta teria atribuído aos tratados o status de norma infraconstitucional. Em virtude do disposto no art. 5º, §2º, da Carta Política, só é possível concluir que os aludidos dispositivos fazem referência apenas aos tratados ditos comuns, pois que os de proteção aos direitos humanos integram a própria Constituição.

As normas constitucionais somente podem ser alteradas ou revogadas se obedecidas as exigências e formalidades previstas no art. 60 da Carta Magna, dentre as quais a necessidade de ser discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional (Câmara dos Deputados e Senado Federal), em dois turnos, exigindo-se, em ambos, os votos de 3/5 (três quintos) dos respectivos membros para a sua aprovação.

Demais disso, os dispositivos constitucionais que versam sobre as matérias enumeradas no §4º do art. 60 não podem ser revogados e nem mesmo alterados (caso a alteração seja no sentido de sua restrição), constituindo as denominadas "cláusulas pétreas". Dentre estas, mencionam-se os preceitos relativos a "direitos e garantias individuais". Há o entendimento, no entanto, construído a partir de uma interpretação extensiva desse dispositivo, que inclui nas "cláusulas pétreas" não apenas os direitos individuais, mas todas as normas definidoras de direitos fundamentais [39].

De fato, como já notamos, os direitos fundamentais são indivisíveis, de modo que a supressão de qualquer deles afeta, necessariamente, o exercício dos demais. Assim é, por exemplo, que o direito individual à vida não pode ser exercido sem que se garantam os direitos ao trabalho e à saúde, dentre outros [40]. Desse modo, permitir-se a revogação desses últimos significaria admitir a própria supressão daquele direito individual, o que tornaria letra morta o disposto no art. 60, §4º, IV, da Carta Magna. Assim sendo, os direitos fundamentais devem ser protegidos em seu conjunto, proibindo-se a abolição de qualquer deles, a qual não poderá ser feita pela via da emenda constitucional.

Nesse sentido, invocam-se as valiosas lições de Ingo Wolfgang Sarlet:

"Constituindo os direitos fundamentais sociais (assim como os políticos) valores basilares de um Estado Social e Democrático de Direito, sua abolição acabaria por redundar na própria destruição da identidade da nossa ordem constitucional, o que, por evidente, encontra-se em flagrante contradição com a finalidade precípua dos limites materiais. Portanto, seja qual for o direito fundamental, a incidência material das ‘cláusulas pétreas’ deverá ser máxima, no sentido de que deve abranger todos os direitos fundamentais, inclusive os sociais, mesmo quando sediados fora do Título II da Constituição". (sem grifos no original) [41]

Nessa perspectiva, a Convenção n. 158, por conter normas relativas a direitos fundamentais, não poderia ser revogada, sendo vedada também a alteração efetuada no sentido da restrição de seu conteúdo. Dessa forma, a sua denúncia, efetuada pelo Decreto n. 2.100/96, foi absolutamente irregular, posto que significou a própria revogação de seus preceitos. Mesmo que se adotasse uma interpretação restritiva do art. 60, §4º, IV, da Carta da República, no sentido de não se incluírem dentre as cláusulas pétreas as normas relativas aos direitos sociais, como é o caso da Convenção em tela, ainda assim seria a denúncia totalmente inválida. Consoante acima mencionado, a revogação ou alteração de um preceito constitucional deve seguir todas as formalidades exigidas pelo art. 60 da Carta Magna, não sendo possível ser efetuada, portanto, através de simples decreto presidencial.

Destarte, qualquer que seja o entendimento adotado, a conclusão é a mesma: o Decreto n. 2.100/96 é absolutamente inconstitucional. Há que se ressaltar que o entendimento expresso nos votos dos Ministros Maurício Corrêa e Carlos Britto, no julgamento da ADIn n. 1.625, data venia, não está correto. Afirmam os referidos Ministros que basta o referendo do Congresso Nacional para que se torne consumado o procedimento de denúncia da Convenção n. 158, que foi iniciado pelo Decreto n. 2.100/96. Esse entendimento é perfeitamente aplicável aos tratados comuns. Para que sejam estes denunciados, a maioria da doutrina entende ser necessária a atuação conjunta da vontade do Presidente da República, através de um decreto, e do Congresso Nacional, por meio do decreto legislativo [42]. Todavia, os tratados de proteção dos direitos humanos não podem ser denunciados através dessa forma, consoante acima demonstrado.

Há uma outra questão, de fundamental importância, que não foi suscitada pelos doutos Ministros, relativo aos vícios de ordem formal da denúncia.

O conceito de "ratificação" encontra-se já assentado pela doutrina internacionalista [43]. É o ato através do qual o Estado comunica àqueles que com ele celebraram um tratado internacional, que este foi aprovado internamente, isto é, que suas normas tornaram-se parte de seu ordenamento jurídico interno. Assim sendo, a ratificação da Convenção n. 158 pelo Brasil ocorreu com o depósito da respectiva Carta junto ao Diretor-Geral da OIT, em 05/01/1995, o que foi feito após a sua aprovação pelo Decreto Legislativo n. 68/92.

A Convenção n. 158 prevê, em seu art. 16, parágrafo 3, que a sua vigência, no plano interno do país-membro, inicia-se 12 meses após o registro, junto à OIT, da ratificação por ele efetuada. Por outro lado, em seu art. 17, parágrafo 1, prescreve que o país que a tiver ratificado somente poderá denunciá-la após 10 anos da sua entrada em vigor. Ora, tendo o Estado brasileiro feito o depósito da ratificação em 05/01/95, a Convenção em tela passou a vigorar, no plano interno, em 05/01/96. Assim sendo, a eventual denúncia somente poderia ter sido efetuada dez anos após essa data, a saber, a partir de 05/01/2006 [44]. Por essa razão, o Decreto n. 2.100/96, a par de todas as demais irregularidades acima apontadas, deveria ter esperado mais dez anos para veicular a denúncia da Convenção em tela.

Cumpre observar, no entanto, que a posição prevalente no seio da OIT é no sentido de que o prazo de 10 anos deve ser contado da entrada em vigor da Convenção no plano internacional, o que, no caso da Convenção n. 158, ocorreu em 23 de junho de 1985. Há aqueles, no entanto, que discordam desse entendimento, aderindo àquele defendido no presente artigo, como o ilustre juslaborista Arnaldo Süssekind:

"A segunda corrente, a que nos filiamos, considera que o decênio concerne à vigência da ratificação de cada país. (...) Segundo o depoimento de João Carlos Alexim, ilustre Diretor da OIT no Brasil, o Departamento de Normas Internacionais da Organização já propôs que fosse modificada a orientação que vem sendo observada, porque o ‘procedimento adotado até hoje não é o mais justo, o mais lógico.’" [45]

Há ainda um outro vício, de natureza formal, a inquinar a denúncia da Convenção n. 158. A Convenção n. 144 da OIT, 1976, buscando dar prestígio ao tripartismo, que confere feição peculiar a esse organismo internacional, estabelece, em seu art.2º, que:

"todo membro da Organização Internacional do Trabalho que ratifique a presente Convenção se compromete a pôr em prática procedimentos que assegurem consultas efetivas, entre os representantes do governo, dos empregadores e dos trabalhadores, sobre os assuntos relacionados com as atividades da Organização Internacional do Trabalho a que se refere o artigo 5º, parágrafo 1º, mais adiante."

O referido art. 5º, parágrafo primeiro, por sua vez, dispõe o seguinte:

"I. O objeto dos procedimentos previstos na presente Convenção será o de celebrar consultas sobre:

e. as propostas de denúncia de convenções ratificadas." (grifos nossos)

A Convenção n. 144, conforme revela os dispositivos acima transcritos, exige que aos empregados e os empregadores do país, através dos competentes órgãos representativos em âmbito nacional, sejam efetivamente consultados acerca de eventuais propostas de denúncia de convenções ratificadas. Essa Convenção foi ratificada pelo Brasil, de modo que suas normas tornaram-se de observância obrigatória. No caso da Convenção n. 158, a sua denúncia não foi precedida por qualquer procedimento prévio de consulta, razão pela qual é ela inválida, do ponto de vista formal. O desrespeito por um país-membro da OIT de uma Convenção por ele ratificada pode ser impugnado por qualquer organização profissional de trabalhadores ou de empregadores, através de Reclamação, apresentada perante a Repartição Internacional do Trabalho e apreciada pelo Conselho de Administração da OIT, conforme previsto no art. 24 da Constituição da OIT.

Por todo o exposto, resta solar a inconstitucionalidade do Decreto n. 2.100/96, não se podendo considerar válida a denúncia que por meio dele se pretendeu efetuar. Em razão disso, conclusão inarredável é a de que a Convenção n. 158 está em vigor no ordenamento jurídico brasileiro, entendimento este que se espera seja acolhido pelo Egrégio STF, no julgamento da ADIn n. 1625.

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Sobre a autora
Lorena Vasconcelos Porto

Doutora em Direito do Trabalho pela Universidade de Roma II. Mestre em Direito do Trabalho pela PUC-Minas. Especialista em Direito do Trabalho e Previdência Social pela Universidade de Roma II. Bacharel em Direito pela UFMG. Advogada.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PORTO, Lorena Vasconcelos. A Convenção nº 158 da Organização Internacional do Trabalho e o direito brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2091, 23 mar. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12501. Acesso em: 24 abr. 2024.

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