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Crime de dano: doutrina e jurisprudência

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27/03/2009 às 00:00

Resumo:


  • O crime de dano (art. 163 do CP) protege o patrimônio, sendo punível a destruição, inutilização ou deterioração de coisa alheia, com pena de detenção de um a seis meses ou multa.

  • Existem qualificadoras para o crime de dano que aumentam a pena, como violência à pessoa ou grave ameaça, uso de substância inflamável ou explosiva, dano ao patrimônio público ou ato motivado por egoísmo ou que cause prejuízo considerável.

  • Há divergências interpretativas sobre aspectos do crime de dano, como a exigência de dolo específico (intenção de prejudicar) e a aplicabilidade em casos envolvendo dados informáticos ou bens de valor afetivo.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

13. Dano qualificado: substância inflamável ou explosiva

Substância inflamável é aquela que facilmente se deixa contaminar pelo fogo, oferecendo-lhe rápida expansão (álcool, petróleo e gasolina, por exemplo). Entende-se por substância explosiva aquela que é capaz de provocar detonação, estrondo, por força de decomposição química associada à violenta expansão de gases (por exemplo, pólvora negra, dinamite, TNT).

Sua maior eficácia e periculosidade justificam a forma qualificada, que cede espaço, por sua vez, a outras figuras delituosas ainda mais graves, como incêndio e explosão (CP, arts. 250 e 251).

Também aqui transparece, e agora de modo explícito ("se o fato não constituir crime mais grave"), a subsidiariedade do crime de dano.

Assim:

Estando comprovada a existência de perigo para a vida, a integridade física ou o patrimônio de outrem, configurado está o crime de incêndio. Inexiste delito de dano qualificado se do emprego de substância inflamável ou explosiva resultar crime mais grave (artigo 163, parágrafo único, II, do CP) (TJSC. Primeira Câmara Criminal. Apelação Criminal n. 2003.026634-8, de São Bento do Sul. Relator: Des. Amaral e Silva. Data da decisão: 19/10/2004).


14. Dano qualificado: patrimônio público

Trata-se de circunstância relacionada com a qualidade da coisa, em função do sujeito passivo. Nas palavras de Júlio Fabbrini Mirabete, "há violação de interesse público e protegem-se bens de natureza relevante" (Manual de direito penal, v. 2, 2004, p. 277).

A forma qualificada não impede o reconhecimento da atipicidade do fato insignificante:

Crime de dano ao patrimônio público. Ínfimo valor do bem danificado. Aplicação do princípio da insignificância. Precedentes desta Corte. (TJSC. Segunda Câmara Criminal. Apelação Criminal n. 2007.037818-6, de Rio Negrinho. Relator: Des. Torres Marques. Data da decisão: 29/11/2007).

Não foi o caso, porém, das condutas a seguir descritas, relacionadas com o dano a telefone público nos Estados do Rio Grande o Sul e Santa Catarina:

Agente que destrói parcialmente telefone de orelhão. Ré a confessar o fato, dizendo que estava embriagada no momento da ação delitiva. Situação que não a beneficia. Declaração de policial a confirmar o dano realizado. Atipicidade do delito ditado pelo princípio da insignificância afastada, porque o bem destruído possui valor de relevância social, e ela registra antecedentes com trânsito em julgado (TJRS. Sétima Câmara Criminal. Apelação-crime n. 70023454564, de Bagé. Relator: Des. Alfredo Foerster. Data da decisão: 15 de maio de 2008).

Apelação criminal. Dano qualificado. Destruição de telefone público. Pretendida absolvição. Impossibilidade. Autoria e materialidade comprovadas. "Comete o crime de dano qualificado, o acusado que se dirige a telefone público e, mediante o emprego de força física, arranca o respectivo fone ou punho, arrebentando os fios que o ligavam ao corpo do aparelho" (RT 699/323).Princípio da insignificância. Almejada aplicação ao caso concreto. Inviabilidade. (TJSC. Segunda Câmara Criminal. Apelação Criminal n. 2003.011732-6, de Lauro Müller. Relator: Des. Sérgio Paladino. Data da decisão: 19/08/2003).

Não foi o caso, também, dos danos a posto policial e a metrô, no Estado de São Paulo:

Configura o crime do art. 163, parágrafo único, III, do CP a conduta do agente que chuta e quebra o vidro da folha da porta de composição do metrô, patrimônio de concessionária de serviço público. Para a caracterização do delito é desnecessário o fim específico de prejudicar e causar o dano, a noção do prejuízo encontra-se ínsita no próprio ato de chutar, socar, destruir, inutilizar ou deteriorar bem de outrem (TJSP. Apelação nº 1.389.505/9 – São Paulo – 9ª Câmara – Relator: Des. Francisco Vicente Rossi –12.5.2004).

Incorre nas penas do art. 163, parágrafo único, III, do CP, o agente que, nervoso e revoltado por não encontrar milicianos no posto policial, pega uma pedra e a atira contra o vidro da repartição, danificando-o. A ausência de funcionários explica a conduta do réu, mas não a justifica, de sorte que o local dos fatos é um patrimônio público e da comunidade (TJSP. Apelação nº 1.305.651/7 – Guarujá – 5ª Câmara – Relator: Des. Pereira da Silva –2.8.2004).


15. Dano qualificado: motivo egoístico ou considerável prejuízo

Danifica-se um objeto, em regra, por motivo de vingança, despeito, indiferença afetiva ou prazer mórbido de lesar, nem sempre conectados a momentâneo acesso de cólera. Por detrás de tudo, ou quase tudo, vislumbra-se o denominador comum do egoísmo. Sendo assim, alertam os doutrinadores para uma indispensável interpretação restritiva do texto legal, em consonância com o espírito da lei.

Mas a grande e dolorosa verdade é que permanecem vagos os próprios termos explicativos da doutrina. Na prática, motivo egoístico é aquele como tal considerado pelo juiz.

A circunstância qualificadora reside no íntimo do sujeito ativo, que nela se enquadra quando pretende alcançar alguma vantagem no prejuízo provocado. É o que se passa com o dano aos bens de algum rival no plano artístico, amoroso ou profissional. Exemplo de Heleno Cláudio Fragoso: "destruição do trabalho de um concorrente, para evitar a competição ou dar mais valor ao próprio" (Lições de direito penal – parte especial, v. 1, 1962, p. 312). De modo semelhante, aquele que estraçalha o vestido de sua ex-noiva, na véspera do casamento com terceiro, revela um despeito identificável com o motivo egoístico preconizado em lei.

Em síntese, é mais fácil falar em motivo egoístico quando o agente busca proveito pessoal. Não basta, então, o simples extravasamento da própria ira:

TJSP. Terceira Câmara. "Dano qualificado. Agente que apenas extravasa a sua ira. Reconhecimento da qualificação pelo motivo egoístico. Impossibilidade: no crime de dano é impossível falar-se em qualificação pelo motivo egoístico, que tem por objetivo futuro proveito econômico ou moral, quando na sua conduta o agente apenas extravasa a sua ira, sendo necessário, para tanto, que vise a algum proveito pessoal" (Apelação. Ementa 119431. V.U. Relator: Des. Carlos Bueno. Data do julgamento: 23/10/2001).

O "considerável prejuízo" tem conteúdo predominantemente objetivo. Melhor dizendo, necessita de uma certa contabilidade que leve em conta o grau de riqueza econômico-financeira da vítima. A destruição da motocicleta nova de um multimilionário não lhe causa prejuízo relevante, em contraste com o notório gravame ao patrimônio de um simples e modesto assalariado.


16. Desclassificação do crime (incêndio) e conjugação de qualificadoras (dano)

Merece especial registro o acórdão da 2ª Câmara do 1º Grupo da Seção Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo (Apelação Criminal n. 00495004.3/6-0000-000, da Comarca de Santa Cruz do Rio Pardo). Por força da ausência de "perigo concreto à integridade ou ao patrimônio de um número indeterminado de pessoas", deu-se provimento parcial ao recurso, desclassificando-se o delito de incêndio (CP, art. 150 caput ) para o dano qualificado do CP, 163, § 1º, II e IV. Decretou-se ainda a extinção da punibilidade, pelo advento da prescrição da ação (CP, art.107, IV).

Por que o dano triplamente qualificado? A prática do fato – colocação de fogo em edifício isolado, em que ninguém pernoitava – eliminou a figura do incêndio, mas revelou: a) danos de monta (considerável prejuízo); b) emprego de álcool (substância inflamável); c) o motivo egoístico vinculado à frustração em face da ausência de bens para furtar.

Busquemos a fonte jurisprudencial:

O laudo pericial de fls. 89/92 esclareceu que ela provocou danos de monta no local dos fatos. Quebrou vidros, cadeiras e poltronas, e para causar ainda maior destruição, espalhou álcool e ateou fogo, dando causa a um incêndio proposital. A conclusão da prova técnica foi confirmada pelos relatos dos policiais João Alex e Alessandro, dos quais não há nenhuma razão para duvidar. Ao atenderem a ocorrência, eles ouviram da própria acusada a confissão de ter danificado e posto fogo no local, pelo simples fato de nada ter encontrado para furtar (TJSP. 2ª Câmara do 1º Grupo da Seção Criminal. Apelação Criminal n. 00495004.3/6-0000-000, de Santa Cruz do Rio Pardo. Relator: Des. Roberto Mortari. Data da decisão: 25 de junho de 2007).


17. Pena do dano qualificado.

Eis a pena do dano qualificado: detenção, de seis meses a três anos, e multa, além da pena correspondente à violência.

Vê-se uma radical alteração dos limites da pena privativa de liberdade. A multa, que era alternativa na hipótese de dano simples, tem agora caráter cumulativo. Tudo isso sem prejuízo da pena correspondente à violência, de que já tratamos acima.

É visível, no entanto, o descompasso normativo quando se atenta, por exemplo, para os limites de pena do furto qualificado e outros crimes em que o agente, longe de danificar a coisa, pretende preservá-la em proveito próprio ou alheio. O legislador, de alguma forma, tolera o vândalo, que destrói o bem. Não gosta de quem o cobiça.

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18.Divergências interpretativas: lei, ideologia e intérprete.

Eis, relembrando, os principais itens sobre o crime de dano sujeitos a controvérsia: tipicidade ou não do simples "fazer desaparecer"; concurso de normas; coisa de valor afetivo; dados informáticos; dolo genérico/dolo específico; relevância do prejuízo etc.

A maioria dessas divergências existe há dezenas e dezenas de anos. E elas persistem ao lado de milhares de outras no próprio âmbito judicial, ou seja, entre aqueles que, encarregados de zelar pelo estrito cumprimento das Leis e da Constituição, constroem um direito penal visivelmente diferenciado. Tudo isso, aliás, sem embargo de revigorada atualização dogmática a partir das melhores fontes europeias.

Nada a estranhar. Em linhas gerais, na síntese de Renato Nalini, "toda a normatividade é suscetível de inúmeras leituras. Depende de quem a lê e do objetivo a que se propõe" (A rebelião da toga, 2006, p. 263).

Assegurada, previamente, a liberdade de ação – já o dissemos alhures – prepondera a vontade de agir, que se esconde ou se manifesta ora na invocação de textos legais, ou de seu espírito, ora na referência a princípios hermenêuticos não escritos, centrados na ideia de justiça ou de oportunidade política.

Em suma: os intérpretes refletem e constroem as contradições do direito na medida em que se apegam à lei ou à ideologia social, na hipótese de conflito, engajando-se eticamente no processo pelo grau de vontade e liberdade conformadoras da opção. Em termos dialéticos, todavia, inexiste normatividade em qualquer das fontes formais do direito, assim como inexiste teoria dogmática em condições de apontar os rumos de uma juridicidade à espera de conscientização objetiva (Curso crítico de direito penal, 2ª ed., 2008, p. 95).

É o que entendemos. Mas é bom advertir que estas últimas observações já se encaixam em outro esquema de percepção do direito penal, de ordem crítico-metodológica.

Lei, ideologia e intérprete, em suas interações recíprocas, sempre se sobrepuseram a qualquer tentativa de padronização de um direito que se denota em si mesmo contraditório e com raízes no fato histórico investido de força, poder, vontade e liberdade.

O crime de dano, em sua estrutura jurídica, não haveria de escapar dessas raízes, as quais, de tão sólidas e profundas, nem sempre são percebidas por quem prefere a ilusão de uma dogmática impessoal, objetiva, a caminho do pensamento único, universal.

Opinar é preciso, e com ampla liberdade de expressão, assegurada pelo texto constitucional. Não é preciso, no entanto, delegar as respostas às certezas dogmáticas que a história, um dia, pode desnudar, tal como o fez em relação a tantas outras certezas agora preservadas no museu das contradições jurídico-penais.


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Sobre o autor
João José Caldeira Bastos

professor de Direito Penal da Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina, professor de Direito Penal (aposentado) da Universidade Federal de Santa Catarina

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BASTOS, João José Caldeira. Crime de dano: doutrina e jurisprudência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2095, 27 mar. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12526. Acesso em: 25 dez. 2024.

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