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Limites à realização do Estado Democrático de Direito na sociedade moderna.

Entre subintegrados e sobreintegrados

02/04/2009 às 00:00
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Os livros e manuais clássicos de Teoria do Estado sempre trouxeram capítulos referentes ao processo de formação e extinção dos Estados. No Brasil, obras clássicas apontam as origens dessa figura - status - que desde o século XVI é parte indeclinável do vocabulário jurídico-político europeu e perdura como uma das construções de maior sucesso da ciência política moderna. No século XXI, entretanto, prevalece um cenário de incertezas quanto à validade e à continuidade do sucesso dessa construção ou fórmula. Questiona-se, sobretudo, se não se estaria a caminhar em direção oposta. Isto é, se não teriam os livros e manuais, num futuro próximo, que se adequarem e passarem a conter capítulos referentes ao processo de desaparecimento dos Estados, em face da expansão crescente da sociedade mundial? Trata-se de mera conjectura, porém uma coisa é certa, o Estado como ator principal das relações internacionais passa a ser, gradualmente, substituído, senão em todos os aspectos pelo menos em muitos deles, por entidades de caráter transnacional, a exemplo da União Européia. O Estado Democrático de Direito contemporâneo - que é a forma estatal dileta entre os países pan-europeus, paladinos de valores supostamente universais - parece enfrentar limites de natureza diversa (ordem econômica hiperdesenvolvida, fundamentalismos étnicos etc.) que, em maior ou menor medida, impedem a reprodução perfeita do modelo institucional Estado de Direito e a melhor forma de compreender tais transformações é observar quais são os principais limites a colocarem em risco essa fórmula que desde Maquiavel parece reproduzir-se com relativo sucesso.

Delimitar e enfrentar os principais obstáculos que impedem a realização do Estado Democrático de Direito na sociedade hipercomplexa da modernidade é tarefa que já resultou em projetos editoriais ambiciosos. Alguns deram origem a calhamaços de centenas de páginas que envolveram nomes conhecidos de grandes autores e pensadores contemporâneos, por vezes, sequer alcançando os objetivos colimados. Ipso facto, o presente artigo visa, simplesmente, fornecer uma breve visão dos grandes desafios do modelo Estado de Direito na atualidade, para em seguida conferir atenção especial ao caso brasileiro que tem na generalização das relações de subintegração e sobreintegração um dos maiores obstáculos à realização do modelo institucional em questão. Mais do que um assunto da moda, o Estado Democrático de Direito é tema fundamental para todos aqueles que possuem interesse pelos problemas dessa instigante figura jurídico-política. Em universo no qual o transnacionalismo parece ser a palavra da vez, não deixa de ser surpreendente e admirável a tenacidade dos "Estados-nações" que perduram à despeito dos prognósticos desfavoráveis decorrentes de uma sociedade mundial intensamente globalizada que parece suprimir muitos dos valores inerentes ao conceito clássico de nação e paradoxalmente permite a manutenção de traços típicos do nacionalismo dos séculos passados.

Para encetar trabalho desta natureza, seria apropriado tecer algumas observações iniciais sobre o caráter ideológico e gramatical (ou literal) da expressão Estado Democrático de Direito. Primeiro, porque há uma profunda carga subjetiva nesta expressão tão aventada na atualidade, uma verdadeira simbologia por trás dessa combinação de palavras, às quais todos os cidadãos "de bem", políticos conscienciosos e instituições de respeito querem estar relacionados. Segundo, porquanto a raiz para compreender alguns dos grandes problemas da modernidade está relacionada a essa figura emblemática - o Estado de Direito – que se constitui certamente em uma das maiores construções e racionalizações do homem. Essa instituição político-jurídica que predomina desde o século XIX entre os países "civilizados" do Ocidente já não se encontra umbilicalmente jungida à unidade de um povo (cultural, lingüística, religiosa e racial), como propugnava Carl Schmitt no século passado. Ao contrário, o Estado Democrático de Direito no século XXI pressupõe a diversidade cultural representada pela imensa variedade cultural, étnica e religiosa que supostamente deve conviver em paz no interior do Estado. Essa pretensão está relacionada ao ideal de multiculturalismo que prevalece na atualidade e que exige o convívio harmonioso com aquilo que é diferente.

Numa tentativa de delimitar os princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito e de perceber a lógica por trás da repartição de poderes, Habermas aponta o nexo obrigatório existente entre direito e poder político, cerne do vocábulo Estado Democrático de Direito e presta grande auxílio na tarefa de analisar o termo em questão. Ele afirma que a idéia do Estado de Direito torna necessária uma organização do poder público que, por sua vez, obriga o poder político (este constituído conforme o ordenamento jurídico vigente) a se legitimar. Essa legitimação ocorreria, conforme Habermas, segundo as regras determinadas pelo próprio ordenamento jurídico.1 Não se pode olvidar, no entanto, o papel preponderante que o filósofo de Frankfurt confere ao direito como mediador entre os meios (Medien) dinheiro e poder, o que torna sua concepção sobre o papel do direito passível de críticas as mais diversas.

Visto que o Estado Democrático de Direito é uma conseqüência da complexificação social e uma verdadeira demanda da modernidade – conforme bem indicam os discursos proferidos pelos governantes mundiais, recheados de alusões a termos como "democracia" e direitos humanos – há de se ter em mente, todavia, que se trata de modelo que não se reproduz perfeitamente, sofrendo inúmeras variações, de acordo com a estrutura social que o circunda. Essa variação importa na profusão de "Estados de Direito" com os quais é possível se deparar na atualidade. Cada um bastante diferente do outro, não obstante eventuais similitudes. Quem há de discordar, por exemplo, que os problemas do Rechtstaat alemão são bem diversos daqueles enfrentados pelo Estado Democrático de Direito brasileiro? Ou que o rule of law americano funciona de forma mais eficiente que o modelo estatal adotado na Venezuela de Hugo Chávez? Certamente, tais discussões são representativas da complexidade do tema em questão e indicam, não importa o enfoque adotado, que se está diante de um problema que envolve a identificação de obstáculos e a necessidade de transpô-los com a devida cautela.

De forma simplificada, é possível divisar os obstáculos ou limites do Estado Democrático de Direito na modernidade como sendo de quatro espécies: ordem mundial reproduzida com base na economia e na técnica; recrudescimento da intolerância étnica com o advento dos fundamentalismos e particularismos que impedem a formação de esfera pública pluralista; apatia pública; e o terrorismo global e o direito penal do inimigo2. Representativo desse primeiro limite ao Estado de Direito na sociedade moderna é o caso da lex mercatoria uma lei que possui pretensão de validade fora do âmbito territorial dos Estados-nações, prescindindo, portanto, da validação destes e apontando no sentido de se admitir ou não a viabilidade de um direito econômico global independente do ente estatal. Quanto ao segundo limite, no século XXI, a religião voltou a ocupar papel de destaque no universo dos Estados, sobretudo, em virtude do recrudescimento dos fundamentalismos étnicos e religiosos. Dos Bálcãs a Israel, da Chechênia a Bagdá a violência em nome de crenças religiosas e de ideais de etnicidade ganham a força que se acreditava extinguir-se no século XX. Sobre a apatia generalizada da população, a terceira limitação apontada, é possível perceber que esta ocorre em muitos Estados, especialmente naqueles pertencentes à modernidade periférica. Trata-se essencialmente de indiferença em relação ao conteúdo das decisões políticas e das normas jurídicas e quanto ao significado dos procedimentos constitucionais de determinado país. Como último limite, é possível apontar o terrorismo global que teve seu apogeu no 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos da América, com o ataque suicida que derrubou as torres gêmeas do World Trade Center e vitimou milhares de pessoas. Concomitantemente, pode-se acrescentar, por fim, o direito penal do inimigo como uma questão, sobretudo, de acesso à Justiça que tem como caso exemplificativo, a situação dos prisioneiros de Guantánamo.

Aliado a esses limites é possível acrescentar ainda a pretensão do universalismo europeu, como define Wallerstein3. Retórica esta que sob o manto de valores universais possibilitou (e ainda permite) determinados países imiscuírem-se nos assuntos internos de outros estados, sob a falácia de que a expansão dos ideais ocidentais permitiu a propagação da civilização, o crescimento econômico e o progresso. Essa retórica do poder, baseada na suposta superioridade do homem ocidental é marcada por três pontos principais, passíveis de serem observados nos discursos de muitos políticos neste início do século XXI: o pensamento ortodoxo de que as ações e a política adotada pelos líderes dos países pan-europeus têm como preocupação maior os direitos humanos; a idéia despropositada defendida por Samuel Huntington do "choque de civilizações", uma afirmação categórica da superioridade do ocidente em relação às demais civilizações, habilmente contestada por Edward Said em muitas de suas obras; e a crença quase cega e com pretensões de cientificidade de que as leis da economia neoliberal devem ser seguidas por todos. O universalismo europeu levou a criação do designado direito de ingerência que se fundamenta na idéia de existência de valores universais, baseados numa lei natural. Era essa "lei natural" criticável em todos os aspectos que legitimava a atuação de determinados países sob a argumentação de que estariam agindo na condição de defensores dessa lei natural. Interessante notar que o direito de ingerência e as denominadas intervenções humanitárias ocorram de modo tão irregular. Isto é, geralmente ocorrem em momentos específicos e em lugares estratégicos. A África, berço por excelência de conflitos étnicos, violações inequívocas dos direitos humanos, raramente é vista como um alvo tão desejável de intervenções dessa natureza, como os países do oriente, como foi o caso do Iraque de Saddam Hussein, rico em petróleo.

Como alternativa ao universalismo europeu que representa, de fato, os interesses de manter um sistema-mundo não-democrático e não-igualitário, Wallerstein, propõe o universalismo universal. O mais interessante, é que o a proposta de Wallerstein – universalismo universal – não exclui a possibilidade que sejam determinados, futuramente, certos valores presumivelmente universais. O fato é que no momento atual, tais valores ainda não podem ser estabelecidos ou reconhecidos de maneira definitiva. Primeiramente, porque ainda não é possível dizer quais sejam eles e em segundo lugar, porque não é certo que apenas uma parcela de países – os países europeus e os Estados Unidos - seja responsável pela delimitação destes supostos valores universais.

De todas essas limitações aquela que aparenta maior sucesso, é a de realização de uma sociedade mundial fundamentada nos interesses econômicos do capitalismo mundial. Subrepticiamente, ela enfraquece sobremaneira os Estados nacionais que não lograram, até o presente momento, obter sucesso na tarefa de impor limites ao avanço hipertrófico do código econômico. Os Estados carecem de mecanismos regulatórios para controlar o avanço desmedido do processo de globalização econômica e com isso sofrem problemas de hegemonia no plano internacional e de autonomia no plano interno. Esse enfraquecimento levou a construção de entidades transnacionais que possuem prima facie interesses econômicos (exemplo da União Européia) e descuram em grande medida de questões de natureza diversa. A conseqüência mais aparente desse fenômeno é o surgimento de estados impotentes frente aos problemas internos.

Acossado por limites que atestam, em certo sentido, o esgotamento de fórmulas antigas e a necessidade de novas soluções para novos impasses, o Estado Democrático de Direito enfrenta na atualidade momento delicado de transição. O lugar-comum que aponta a crise do modelo Estado de Direito parece se realizar. Afinal, a leitura diária de periódicos ou o simples hábito cultivado de assistir o noticiário na TV já é por si só evidência suficiente para que qualquer leitor ou expectador dotado, minimamente, de espírito crítico e caráter inquisitivo constate a veracidade desse truísmo. Naturalmente, as instituições criadas pelos homens, dentre elas o próprio modelo Estado de Direito, estão sujeitas à falhas e à peculiaridades (condicionamentos) que se manifestam conforme a estrutura social na qual ele se desenvolve4, o que, por vezes, não implica obrigatoriamente em uma crise institucional ou democrática. Porém, quando se questiona a eficiência e a realização do modelo, quando as limitações a afligi-lo são de tal forma perniciosas, a ponto de suscitar descrença generalizada nas instituições, nas autoridades e nos órgãos responsáveis pela administração pública de modo geral, fica-se face a face com o que se pode designar um modelo irrealizado ou falho de Estado de Direito. A partir daí, torna-se necessário rever o modelo implementado de Estado Democrático de Direito, observar as falhas destes e por meio de intenso diálogo do poder público com a sociedade civil buscar soluções para a não concretização do modelo estatal.

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Deve-se ressalvar que o modelo deficiente ao qual se alude é aquele presente nos países da denominada modernidade periférica, dos quais, lamentavelmente, o Brasil é um representante legítimo, constituindo-se, a bem da verdade, caso paradigmático. Nestes, a despeito de haver aparência de realização efetiva do Estado de Direito nos moldes dos países da chamada modernidade central, o modelo não se concretiza, em virtude do desrespeito aos procedimentos constitucionais e da não efetividade das leis, aplicáveis de forma seletiva a uma parcela determinada da população. A Constituição de 1988 existe materialmente, contudo suas normas são constantemente desrespeitadas, inclusive por aqueles que deveriam assegurá-la na prática.

No caso brasileiro, conforme aponta Marcelo Neves, partindo de ponto de vista sistêmico, há uma hipertrofia destrutiva do código binário "ter/não-ter" dos denominados particularismos relacionais difusos que permitem, ademais, que a autonomia do sistema jurídico seja afetada por intrusões do código político5. Dessa forma, há quebra da autopoiese do direito (entendendo-se esta como fechamento normativo e abertura cognitiva). O sistema político, também, sofre abalos na sua autonomia, uma vez que o código binário lícito/ilícito não funciona como o segundo código da política, como deveria ocorrer no Estado Democrático de Direito por excelência. Como decorrência, há ainda a quebra do papel da Constituição como acoplamento estrutural entre os sistemas político e jurídico e consequentemente, a Constituição não desempenha satisfatoriamente o papel de fundamento consentido do dissenso6, uma vez que a formação da esfera pública pluralista fica prejudicada.

Seria possível falar, não sem uma dose razoável de cinismo, de limites para o que seja considerável aceitável no âmbito do Estado de Direito, mesmo nos países da designada "modernidade periférica" sem que ocorra um processo generalizado de desmoralização das instituições públicas. Por exemplo, não é aceitável no âmbito do Estado de Direito que a polícia carioca, a pretexto de perseguir traficantes nas ruas do Rio de Janeiro, fuzile o automóvel de uma família e ponha fim a vida de uma criança de três anos de idade e as autoridades procurem justificar os fatos, mediante o argumento incabível do "despreparo da polícia" ou taxando o acontecido de "lamentável". Assim como não é admissível, embora seja possível como atestam as manchetes de jornais, que o Presidente do Supremo Tribunal Federal (não se há de esquecer que este, conforme o texto do art. 78 da Constituição Federal, encontra-se na linha de sucessão presidencial em caso de impedimento do Presidente e Vice-Presidente da República) numa leitura pretensamente legalista das leis e desvinculada inteiramente da opinião pública conceda habeas corpus a cavalheiros detentores de invejável histórico criminal - Daniel Dantas, Naji Nahas e Celso Pita – desmerecendo as instituições brasileiras, já amplamente desacreditadas pela população.

Como manter a lucidez ante uma realidade que insiste em demonstrar a incapacidade dos administradores do país (sejam eles administradores das leis, de políticas públicas etc.) de assumirem compromissos verdadeiros com os princípios de moralidade e legalidade previstos na Constituição e fundamentos basilares do Estado de Direito? Numa sociedade dividida entre ricos e pobres, as relações intersubjetivas de subintegração e sobreintegração alcançam patamares impensáveis nos países da modernidade central. Trata-se de questão relacionada, sobretudo, a irrealização da cidadania que impossibilita os indivíduos de se afirmarem plenamente na sociedade como cidadãos detentores de direitos e deveres. Os subintegrados não têm acesso aos benefícios do ordenamento jurídico estatal, não obstante dependam de suas prescrições impositivas, o que torna o cenário bem mais cruel. Ou seja, os subintegrados não se encontram inteiramente excluídos, porquanto estão expostos aos rigores das leis. Os sobreintegrados, por outro lado, pertencem a uma parcela privilegiada da população que se valendo de uma burocracia ineficiente e institucionalizada para legitimar sua situação, utilizam-se da ordem jurídica para manterem imutável sua condição privilegiada.

A ameaça representada pela generalização de relações dessa natureza foram confirmadas recentemente, como já se fez menção, pelo mais recente escândalo a tomar conta das manchetes dos jornais brasileiros – escândalo do Grupo Opportunity - que levou a prisão do banqueiro Daniel Dantas e outros acusados de cometerem crimes financeiros, formação de quadrilha, gestão fraudulenta, evasão e lavagem de dinheiro. O banqueiro que teve sua prisão temporária decretada foi beneficiado por decisão do Presidente do Supremo Tribunal Federal que anulou a prisão sob a argumentação de que os motivos apresentados pelo juiz da instância inferior teriam sido equivocados. O mais surpreendente é que com base em nova acusação Dantas foi novamente preso - nesta segunda vez acusado de corrupção ativa, por haver oferecido a quantia de um milhão de reais a um delegado para que fosse isentado juntamente com sua irmã e funcionários da investigação – e novamente beneficiado pelo recebimento de habeas corpus pelo Supremo Tribunal Federal. Deixando-se momentaneamente as acusações e conjecturas sobre os motivos que levaram o Presidente da mais alta instância judiciária a proceder dessa forma, não se pode deixar de temer as graves conseqüências decorrentes para as instituições jurídico-políticas brasileiras, especialmente o Supremo Tribunal Federal que saem certamente debilitadas desse imbróglio.

Afinal, foram colocados em risco princípios basilares do Estado Democrático de Direito, inclusive com a ofensa explícita ao princípio de independência do poder judiciário, quando se aventou a possibilidade de se instaurar procedimento com vistas a investigar juiz que pronunciou-se de forma contrária ao entendimento do ministro do Supremo Tribunal Federal. O Presidente do Supremo Tribunal Federal que propugnava a investigação do juiz de primeira instância que decidiu conforme seu livre entendimento, aparentemente deixou de lado a compreensão que a hierarquia dos graus de jurisdição diz respeito apenas a uma competência de derrogação e jamais pode ser vista como uma forma de mando da instância superior sobre a inferior. Não deixa de ser notável, o fato de que órgão que seria responsável pelo papel de fiscalização do juiz de primeira instância, também, seja presidido pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal, o Ministro Gilmar Mendes.

De fato, trata-se de uma nova pecha na cronologia das instituições democráticas brasileiras. Afinal, o escândalo do Grupo Opportunity envolveu a cúpula do judiciário brasileiro no cenário de uma comédia grotesca e de mau gosto, em que os atores principais parecem ter agido diligentemente para colocarem a si próprios e aos telespectadores numa posição de extremo desconforto. O caso, no entanto, já se afigura como um paradigma para o estudo das relações de sobreintegração no Brasil. Um indivíduo ou um grupo de indivíduos que se colocaram à parte do sistema legal, para juntos e sob a certeza absoluta da impunidade, cometerem crimes financeiros e de outras espécies. A burocracia e a ineficiência do Estado de Direito brasileiro tornam-se aparentes e são utilizadas por essas pessoas para se furtarem a incidência da atividade punitiva do Estado, contribuindo para o descrédito nas instituições e nos seus funcionários.

A subintegração, a face oposta da sobreintegração, também ocupa lugar de destaque nas notícias diárias que bombardeiam os lares dos brasileiros por intermédio dos meios de comunicação. A subintegração se encontra nos morros do Rio de Janeiro, nas favelas de São Paulo e de Salvador, nas zonas urbanas e rurais do nordeste brasileiro. Os subintegrados lotam as penitenciárias brasileiras e as ruas das grandes cidades. Excluídos e sem acesso aos direitos básicos inerentes à condição de cidadãos, descambam para a criminalidade e a delinqüência. Naturalmente, no Brasil a condição de subintegrado pode estar intimamente associada a de sobreintegrado. Afinal, o sobreintegrado que perpetra crimes, burlando o ordenamento jurídico e utilizando-se das instituições para alcançar objetivos eminentemente personalistas, não passa de subintegrado. As condições de subintegrado e sobreintegrado não são estanques como se apresentavam nas sociedades pré-modernas, ao contrário são bastante ocasionais na sociedade contemporânea. No entanto, é perceptível que determinadas pessoas ou grupo de pessoas acabam por perpetuarem-se no papel de subcidadãos. Nesse entrechoque de subintegrados e sobreintegrados, restam aqueles cidadãos integrados na ordem jurídica.

Nesse ambiente inflamado a imprensa, não obstante as inúmeras críticas que se possam ser feitas a ela parece ser a única força ou potência capaz de penetrar nos meios mais heterogêneos da sociedade brasileira para levar informação a população de modo geral. Ela é instrumento deveras necessário na sociedade brasileira. A sua independência é que irá permitir o desenvolvimento de espaço efetivo para os cidadãos compartilharem opiniões e críticas sobre problemas comuns. Como não ficar surpreso com as imagens de políticos e banqueiros recebendo ordens de prisão na tranqüilidade aparente de suas casas? A quase simultaneidade dos fatos, à de sua transmissão nos meios de comunicação de massas é sem dúvida um auxílio imprescindível ao funcionamento efetivo das instituições brasileiras. Obviamente, não se ignora aqui o reverso da moeda. Da mesma forma que a imprensa possui esse papel fundamental junto à população e a formação de opinião, essa pode ser eivada por interesses não-legítimos que se utilizam da amplitude dos meios de comunicação para modelar a opinião pública conforme os interesses colocados em jogo. As grandes redes de TV são as grandes responsáveis pela qualidade e quantidade de informações que o homem comum recebe. A tarefa de filtrar todo esse conteúdo incomensurável de informações recebidas diariamente é tarefa extremamente difícil e mais complexa ainda é a tarefa de posicionar-se criticamente em face de cada excerto informacional.

Nesse cenário, os intelectuais - pessoas que se dedicam a compreender analiticamente a realidade e possuem presumivelmente formação para tanto, como bem conceitua Wallerstein - devem desempenhar papel expressivo na discussão de temas relevantes para o país. Como bem observa Edward Said, ao discutir o papel público de escritores e intelectuais7. Ele com a argúcia natural, distingue as duas categorias, elevando os primeiros à condição privilegiada de verdadeiros contestadores, oposicionistas que vivenciam perseguições e o sofrimentos dos outros indivíduos e colocam-se frente ao poder, de forma a dar voz face a autoridade. Sobre o intelectual ele coloca a tarefa de "elucidar a disputa, desafiar e derrotar tanto o silêncio imposto quanto o silêncio conformado do poder invisível, em todo lugar e momento em que seja possível." Porém mais do que isso, o intelectual também deve apresentar interpretações alternativas e perspectivas da história diversas daquelas habitualmente oferecidas e muitas vezes representativas do posicionamento oficial e padronizado. No Brasil, por exemplo, o espaço para discussões de natureza é restrito e mesmo o intelectual na acepção literal do termo tem desaparecido ou encontra-se tolhido especialmente na sua autonomia e liberdade de expressão. As discussões fundamentais jamais chegam a população de modo geral, ficando resumidas aos bancos das universidades.

É preciso haver espaço para que se discutam as relações de subintegração e sobreintegração na sociedade brasileira. Elas devem ser vistas, principalmente, como o ponto de partida para as análises que se propõem a discutir as debilidades do modelo Estado Democrático de Direito no Brasil. Enquanto tais relações perdurarem na estrutura social brasileira com a aparência da mais pura normalidade será impossível falar da existência efetiva do modelo institucional Estado Democrático de Direito no Brasil. Ter-se-á apenas um modelo - um experimento - não concretizado e utilizado como forma de ocultar a realidade. Fundamental, também, é ter em mente que o enfrentamento das relações de subintegração e sobreintegração não deve ter objeto principal a bandeira vazia da elaboração de novas leis e espécies normativas. Ao contrário deve defender a aplicação das normas já existentes, não de forma eventual e seletiva como ocorre, muitas vezes, no país, mas de forma integral e para todos os indivíduos.


BIBLIOGRAFIA

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  4. COMPARATO, Fábio Konder (1999). A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva.
  5. DALLARI, Dalmo de Abreu (2007). Elementos de Teoria Geral do Estado. 26ª ed. São Paulo: Saraiva.
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  20. WALLERSTEIN, Immanuel (2007). O Universalismo Europeu: a retórica do poder. São Paulo: Boitempo.

Notas

1 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. 2ª ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. 1v. pp. 211-212.

2 Este rol foi retirado da obra Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil, de Marcelo Neves. O último limite à realização do Estado Democrático de Direito não consta na primeira edição do título em questão, uma vez que foi acrescida pelo autor posteriormente e aqui se faz presente em razão de anotações de sala de aula.

3 WALLERSTEIN, Immanuel. O Universalismo Europeu: a retórica do poder. São Paulo: Boi Tempo, 2007. p. 26.

4 Marcelo Neves em sua obra Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil aponta que o Estado Democrático de Direito enquanto exigência funcional e pretensão normativa da modernidade está sujeito a uma série de condicionamentos, uma vez que o modelo institucional não se reproduz perfeitamente na sociedade, variando conforme a estrutura social especifica na qual encontra espaço para desenvolver-se.

5 NEVES, 2006, p. 245.

6 NEVES, 2006, p. 147.

7 SAID, Edward W. Cultura e Política. São Paulo: Boitempo, 2003. pp. 29 s.

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Sobre o autor
Antônio Silveira Marques

advogado, mestrando em Direito do Estado/Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, bacharel em direito pela Universidade Estadual do Piauí

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARQUES, Antônio Silveira. Limites à realização do Estado Democrático de Direito na sociedade moderna.: Entre subintegrados e sobreintegrados. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2101, 2 abr. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12538. Acesso em: 18 nov. 2024.

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