6. O salário mínimo no Direito comparado
Na Itália, não há uma norma que institua o salário mínimo, como ocorre no Direito brasileiro, mas a Constituição italiana de 1948, em seu art. 36, §1º, estabelece o princípio da suficiência da remuneração, in verbis: "o trabalhador tem direito a uma remuneração proporcional à quantidade e qualidade do seu trabalho e em todo caso suficiente a assegurar a si e à sua família uma existência livre e digna" (grifos nossos).
A norma constitucional em tela, mais abstrata e principiológica do que o art. 7º, IV, da Constituição brasileira de 1988, certamente seria considerada de eficácia limitada pelo STF. Todavia, a jurisprudência italiana corajosamente reconheceu a sua eficácia imediata, impondo, no caso concreto, a obrigação de o patrão pagar a retribuição suficiente. Os juízes passaram a declarar a nulidade da cláusula retributiva do contrato individual, com a conseqüente fixação da justa remuneração. As primeiras decisões da Corte de Cassação nesse sentido datam do início da década de 50, pouco tempo depois, portanto, da promulgação da Constituição de 1948 [31].
O valor da remuneração suficiente é mutável historicamente, variando com a evolução das relações econômico-sociais e dos costumes. Nesse sentido, a negociação coletiva exerce papel de grande importância na sua determinação, vez que se encontra em posição de avaliar melhor os aspectos macroecônomicos globais ou específicos (setor produtivo e empresas envolvidas). Todavia, em virtude da liberdade sindical, pode ocorrer que o trabalhador que reclame a suficiência de sua remuneração não esteja submetido à regência do contrato coletivo. Não obstante, nessa hipótese a jurisprudência por vezes recorre ao valor estabelecido pela autonomia coletiva, mas avalia também as peculiaridades do caso concreto (como o custo de vida daquela determinada região).
Observa-se que não se trata de simples extensão "erga omnes" das clásulas retributivas dos contratos coletivos, mas sim da aplicação judicial de um princípio geral que encontra um importante parâmetro de referência na norma coletiva, a ser adaptado, caso necessário, ao caso concreto. Com efeito, a Corte de Cassação já afirmou que a norma coletiva é apenas um parâmetro de orientação (v.g., decisão n. 38, de 29 de janeiro de 2001) [32]. A dúvida surge no caso de um trabalhador demandar uma remuneração de valor superior ao estabelecido no contrato coletivo a que está submetido, alegando não ser este suficiente. Uma corrente afirma que não seria possível ao juiz interferir na autonomia coletiva, determinando um valor diverso [33]. Todavia há algumas decisões judiciais em sentido contrário, as quais, todavia, atribuem ao trabalhador o ônus de provar a insuficiência da remuneração prevista no contrato coletivo [34].
É interessante ressaltar o entendimento consagrado pela Corte Constitucional italiana, a partir da famosa e criativa decisão n. 63, de 10 de junho de 1966. Em respeito ao direito à suficiência da remuneração (art. 36 da Constituição de 1948), a Corte declarou a inconstitucionalidade das normas do Código Civil de 1942 (arts. 2948, §4º, 2955, §2º, e 2956, §1º), na parte em que permitiam o fluxo da prescrição durante o contrato empregatício. A constância deste, portanto, passou a ser considerada uma causa impeditiva do prazo prescricional. Consagrou-se o princípio do contra non valentem agere non currit praescriptio [35], pois que a tendência natural é o trabalhador não reclamar os seus direitos na constância da relação de emprego, pelo temor das represálias, sendo a mais comum delas a própria dispensa.
Esse entendimento, todavia, veio a ser mitigado pela Corte com relação ao trabalhador dotado de estabilidade no emprego, pois que a garantia da reintegração no caso de dispensa imotivada (art. 18 do Estatuto dos Trabalhadores) propiciaria a reivindicação dos seus direitos no curso do contrato. Nesse caso, não haveria impedimento ao decurso da prescrição [36].
Na França, a Lei de 2 de janeiro de 1970 substituiu o salário mínimo interprofissional garantido (SMIG) pelo salário mínimo interprofissional de crescimento (SMIC). Enquanto o SMIG cumpria somente uma função marginal, de base de cálculo de algumas vantagens sociais, o objetivo do SMIC é assegurar aos trabalhadores de remuneração mais baixa "a garantia do seu poder de compra e uma participação no desenvolvimento econômico da nação". Os efeitos dos reajustes do SMIC, todavia, só abrange os obreiros que ganham até 1,8 do seu valor [37].
Todo trabalhador tem direito a um salário mínimo ao menos igual ao SMIC. Os contratos coletivos fixam os pisos salariais mínimos, hierarquizados de acordo com as classificações profissionais por eles instituídas, os quais são regularmente reajustados. Tais pisos podem ser, em tese, inferiores ao SMIC. Com efeito, em 2004, três em cada quatro contratos coletivos de ramo fixaram alguns pisos salariais inferiores ao SMIC.
A Lei de 4 maio de 2004, que veio a permitir que os acordos de empresa derroguem as convenções de ramo, proíbe expressamente que isso seja feito em matéria de pisos salariais e de classificação profissional. Nesse domínio, "a boa e velha hierarquia das normas convencionais permanece" [38].
Na Espanha, a Constituição de 1978, em seu art. 35, §1º, garante ao trabalhador o direito a uma "remuneração suficiente para satisfazer às suas necessidades e às de sua família". Em atendimento a esse mandamento, o ET estabelece, em seu art. 27, o salário mínimo interprofissional, que é assim denominado por abranger qualquer empregado, independentemente do setor ou ramo em que trabalha ou de sua profissão, abrangendo inclusive os domésticos (art. 6º do Decreto n. 1424/1985).
O salário mínimo é fixado anualmente pelo Governo (pode haver revisão semestral), através de Real Decreto (RD), após ter consultado as organizações sindicais, obreiras e patronais, mais representativas. Essa consulta prévia é obrigatória, mas não vincula a decisão governamental. Nem o contrato individual, nem a contratação coletiva, podem estabelecer um salário inferior ao mínimo legal, podendo apenas estabelecer um patamar mais elevado. Estima-se que atualmente na Espanha o número de trabalhadores que recebem salário igual ao mínimo não chega a meio milhão [39].
Os aludidos Decretos estabeleciam um salário mínimo mais baixo para os trabalhadores menores de 18 anos, o que não foi considerado discriminatório pela Corte Constitucional. Esta entendeu que o fato de o trabalho do menor não ser de igual valor àquele do adulto é um fundamento razoável para o tratamento desigual (decisão n. 31, de 7 de março de 1984). No entanto, essa diferença foi eliminada em 1998, com a fixação de um valor único do salário mínimo. Este foi estabelecido, para o ano de 2005, em 17,10 euros/dia ou 513 euros/mês (RD 2.388/2004). A doutrina e a jurisprudência espanholas (Tribunal Supremo) entendem que o salário mínimo é devido com relação à jornada normal de trabalho, de modo que pode ser pago de forma proporcional no caso de jornada reduzida [40].
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