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A remuneração do trabalhador no Brasil e no direito comparado

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13/04/2009 às 00:00
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6. O salário mínimo no Direito comparado

Na Itália, não há uma norma que institua o salário mínimo, como ocorre no Direito brasileiro, mas a Constituição italiana de 1948, em seu art. 36, §1º, estabelece o princípio da suficiência da remuneração, in verbis: "o trabalhador tem direito a uma remuneração proporcional à quantidade e qualidade do seu trabalho e em todo caso suficiente a assegurar a si e à sua família uma existência livre e digna" (grifos nossos).

A norma constitucional em tela, mais abstrata e principiológica do que o art. 7º, IV, da Constituição brasileira de 1988, certamente seria considerada de eficácia limitada pelo STF. Todavia, a jurisprudência italiana corajosamente reconheceu a sua eficácia imediata, impondo, no caso concreto, a obrigação de o patrão pagar a retribuição suficiente. Os juízes passaram a declarar a nulidade da cláusula retributiva do contrato individual, com a conseqüente fixação da justa remuneração. As primeiras decisões da Corte de Cassação nesse sentido datam do início da década de 50, pouco tempo depois, portanto, da promulgação da Constituição de 1948 [31].

O valor da remuneração suficiente é mutável historicamente, variando com a evolução das relações econômico-sociais e dos costumes. Nesse sentido, a negociação coletiva exerce papel de grande importância na sua determinação, vez que se encontra em posição de avaliar melhor os aspectos macroecônomicos globais ou específicos (setor produtivo e empresas envolvidas). Todavia, em virtude da liberdade sindical, pode ocorrer que o trabalhador que reclame a suficiência de sua remuneração não esteja submetido à regência do contrato coletivo. Não obstante, nessa hipótese a jurisprudência por vezes recorre ao valor estabelecido pela autonomia coletiva, mas avalia também as peculiaridades do caso concreto (como o custo de vida daquela determinada região).

Observa-se que não se trata de simples extensão "erga omnes" das clásulas retributivas dos contratos coletivos, mas sim da aplicação judicial de um princípio geral que encontra um importante parâmetro de referência na norma coletiva, a ser adaptado, caso necessário, ao caso concreto. Com efeito, a Corte de Cassação já afirmou que a norma coletiva é apenas um parâmetro de orientação (v.g., decisão n. 38, de 29 de janeiro de 2001) [32]. A dúvida surge no caso de um trabalhador demandar uma remuneração de valor superior ao estabelecido no contrato coletivo a que está submetido, alegando não ser este suficiente. Uma corrente afirma que não seria possível ao juiz interferir na autonomia coletiva, determinando um valor diverso [33]. Todavia há algumas decisões judiciais em sentido contrário, as quais, todavia, atribuem ao trabalhador o ônus de provar a insuficiência da remuneração prevista no contrato coletivo [34].

É interessante ressaltar o entendimento consagrado pela Corte Constitucional italiana, a partir da famosa e criativa decisão n. 63, de 10 de junho de 1966. Em respeito ao direito à suficiência da remuneração (art. 36 da Constituição de 1948), a Corte declarou a inconstitucionalidade das normas do Código Civil de 1942 (arts. 2948, §4º, 2955, §2º, e 2956, §1º), na parte em que permitiam o fluxo da prescrição durante o contrato empregatício. A constância deste, portanto, passou a ser considerada uma causa impeditiva do prazo prescricional. Consagrou-se o princípio do contra non valentem agere non currit praescriptio [35], pois que a tendência natural é o trabalhador não reclamar os seus direitos na constância da relação de emprego, pelo temor das represálias, sendo a mais comum delas a própria dispensa.

Esse entendimento, todavia, veio a ser mitigado pela Corte com relação ao trabalhador dotado de estabilidade no emprego, pois que a garantia da reintegração no caso de dispensa imotivada (art. 18 do Estatuto dos Trabalhadores) propiciaria a reivindicação dos seus direitos no curso do contrato. Nesse caso, não haveria impedimento ao decurso da prescrição [36].

Na França, a Lei de 2 de janeiro de 1970 substituiu o salário mínimo interprofissional garantido (SMIG) pelo salário mínimo interprofissional de crescimento (SMIC). Enquanto o SMIG cumpria somente uma função marginal, de base de cálculo de algumas vantagens sociais, o objetivo do SMIC é assegurar aos trabalhadores de remuneração mais baixa "a garantia do seu poder de compra e uma participação no desenvolvimento econômico da nação". Os efeitos dos reajustes do SMIC, todavia, só abrange os obreiros que ganham até 1,8 do seu valor [37].

Todo trabalhador tem direito a um salário mínimo ao menos igual ao SMIC. Os contratos coletivos fixam os pisos salariais mínimos, hierarquizados de acordo com as classificações profissionais por eles instituídas, os quais são regularmente reajustados. Tais pisos podem ser, em tese, inferiores ao SMIC. Com efeito, em 2004, três em cada quatro contratos coletivos de ramo fixaram alguns pisos salariais inferiores ao SMIC.

A Lei de 4 maio de 2004, que veio a permitir que os acordos de empresa derroguem as convenções de ramo, proíbe expressamente que isso seja feito em matéria de pisos salariais e de classificação profissional. Nesse domínio, "a boa e velha hierarquia das normas convencionais permanece" [38].

Na Espanha, a Constituição de 1978, em seu art. 35, §1º, garante ao trabalhador o direito a uma "remuneração suficiente para satisfazer às suas necessidades e às de sua família". Em atendimento a esse mandamento, o ET estabelece, em seu art. 27, o salário mínimo interprofissional, que é assim denominado por abranger qualquer empregado, independentemente do setor ou ramo em que trabalha ou de sua profissão, abrangendo inclusive os domésticos (art. 6º do Decreto n. 1424/1985).

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O salário mínimo é fixado anualmente pelo Governo (pode haver revisão semestral), através de Real Decreto (RD), após ter consultado as organizações sindicais, obreiras e patronais, mais representativas. Essa consulta prévia é obrigatória, mas não vincula a decisão governamental. Nem o contrato individual, nem a contratação coletiva, podem estabelecer um salário inferior ao mínimo legal, podendo apenas estabelecer um patamar mais elevado. Estima-se que atualmente na Espanha o número de trabalhadores que recebem salário igual ao mínimo não chega a meio milhão [39].

Os aludidos Decretos estabeleciam um salário mínimo mais baixo para os trabalhadores menores de 18 anos, o que não foi considerado discriminatório pela Corte Constitucional. Esta entendeu que o fato de o trabalho do menor não ser de igual valor àquele do adulto é um fundamento razoável para o tratamento desigual (decisão n. 31, de 7 de março de 1984). No entanto, essa diferença foi eliminada em 1998, com a fixação de um valor único do salário mínimo. Este foi estabelecido, para o ano de 2005, em 17,10 euros/dia ou 513 euros/mês (RD 2.388/2004). A doutrina e a jurisprudência espanholas (Tribunal Supremo) entendem que o salário mínimo é devido com relação à jornada normal de trabalho, de modo que pode ser pago de forma proporcional no caso de jornada reduzida [40].


7. Bibliografia

CATHARINO, José Martins. Tratado jurídico do salário. Rio de Janeiro: Freitas Bastos. 1951.

DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 7ª ed. São Paulo: LTr, 2008.

DELGADO, Maurício Godinho. Salário: teoria e prática. Belo Horizonte: Del Rey, 1997.

LYON-CAEN, Gérard, PÉLISSIER, Jean, SUPIOT, Alain. Droit du travail. 17ª ed. Paris: Dalloz, 1994.

NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Teoria Jurídica do salário. 2ª ed. São Paulo: LTr, 1997.

PERONE. Giancarlo. Lo Statuto dei Lavoratori. Torino: UTET, 1997.

RAY, Jean-Emmanuel. Droit du travail: doit vivant. 13ª ed. Paris: Liaisons. 2004.

RENAULT, Luiz Otávio Linhares. Antecedentes Históricos do Contrato de Trabalho. O novo contrato a prazo. coord. Luiz Otávio Linhares Renault, Fernanda Melazo Dias, Márcio Túlio Viana. São Paulo: LTr, 1998.

Repertorio del Foro Italiano, ano de 2004, Roma, Il Foro Italiano, 2005.

VALLEBONA, Antonio. Istituzioni di Diritto del Lavoro: il rapporto di lavoro. v. II. 4ª ed. Padova: CEDAM, 2004.

VALVERDE, Antonio Martín, GUTIÉRREZ, Fermín Rodriguez-Sañudo, MURCIA, Joaquín García. Derecho del Trabajo. 14ª ed. Madrid: Tecnos, 2005.

VIANA, Márcio Túlio. Salário. Curso de Direito do Trabalho: Estudos em Memória de Célio Goyatá. coord. Alice Monteiro de Barros. v. II. 3ª ed. São Paulo: LTr, 1997.

VIANA, Márcio Túlio. Salário em utilidades, Repertório IOB de Jurisprudência: Trabalhista e Previdenciário, n. 12/2000, caderno 2, p. 220-224, jun. 2000.


Notas

  • RENAULT, Luiz Otávio Linhares. Antecedentes Históricos do Contrato de Trabalho. O novo contrato a prazo. coord. Luiz Otávio Linhares Renault, Fernanda Melazo Dias, Márcio Túlio Viana. São Paulo: LTr, 1998. p. 83.
  • CATHARINO, José Martins. Tratado jurídico do salário. Rio de Janeiro: Freitas Bastos. 1951. p. 18-20.
  • CATHARINO, José Martins. Tratado jurídico do salário. p. 20.
  • Apud VIANA, Márcio Túlio. Salário. Curso de Direito do Trabalho: Estudos em Memória de Célio Goyatá. coord. Alice Monteiro de Barros. v. II. 3ª ed. São Paulo: LTr, 1997.
  • Apud VIANA, Márcio Túlio. Salário. Todavia, o professor Márcio Túlio Viana ressalta, invocando as lições de Mario Deveali, que essa afirmação – irretocável juridicamente – pode não refletir a realidade, pois o empregador, ao propor um salário, já contabiliza o não-trabalho.
  • DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 7ª ed. São Paulo: LTr, 2008. p. 683.
  • DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. p. 686.
  • DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. p. 687-688.
  • LYON-CAEN, Gerard, PÉLISSIER, Jean, SUPIOT, Alain. Droit du travail. 17ª ed. Paris: Dalloz, 1994. p. 473.
  • LYON-CAEN, Gerard, PÉLISSIER, Jean, SUPIOT, Alain. Droit du travail. p. 472.
  • VALVERDE, Antonio Martín, GUTIÉRREZ, Fermín Rodriguez-Sañudo, MURCIA, Joaquín García. Derecho del Trabajo. 14ª ed. Madrid: Tecnos, 2005. p. 577 e decisão do Tribunal Supremo espanhol de 23 de maio de 1991.
  • VIANA, Márcio Túlio. Salário em utilidades. Repertório IOB de Jurisprudência: Trabalhista e Previdenciário, n. 12/2000, caderno 2, p. 220-224, jun. 2000. p. 224.
  • CATHARINO, José Martins. Tratado jurídico do salário. p. 19.
  • VIANA, Márcio Túlio. Salário em utilidades. p. 223.
  • VIANA, Márcio Túlio. Salário em utilidades. p. 221.
  • LYON-CAEN, Gerard, PÉLISSIER, Jean, SUPIOT, Alain. Droit du travail. p. 467.
  • VIANA, Márcio Túlio. Salário em utilidades. p. 222.
  • VIANA, Márcio Túlio. Salário em utilidades. p. 220.
  • VALLEBONA, Antonio. Istituzioni di Diritto del Lavoro: il rapporto di lavoro. v. II. 4ª ed. Padova: CEDAM, 2004. p. 279.
  • VALVERDE, Antonio Martín, GUTIÉRREZ, Fermín Rodriguez-Sañudo, MURCIA, Joaquín García. Derecho del Trabajo. p. 576 e 579.
  • LYON-CAEN, Gerard, PÉLISSIER, Jean, SUPIOT, Alain. Droit du travail. p. 467.
  • LYON-CAEN, Gerard, PÉLISSIER, Jean, SUPIOT, Alain. Droit du travail. p. 467.
  • VALLEBONA, Antonio. Istituzioni di Diritto del Lavoro: il rapporto di lavoro. p. 279.
  • VALVERDE, Antonio Martín, GUTIÉRREZ, Fermín Rodriguez-Sañudo, MURCIA, Joaquín García. Derecho del Trabajo. p. 576.
  • DELGADO. Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. p. 730.
  • VIANA, Márcio Túlio. Salário em utilidades. p. 221.
  • DELGADO. Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. p. 732.
  • VIANA, Márcio Túlio. Salário em utilidades. p. 221.
  • VIANA, Márcio Túlio. Salário em utilidades. p. 222.
  • VALLEBONA, Antonio. Istituzioni di Diritto del Lavoro: il rapporto di lavoro. p. 267.
  • VALLEBONA, Antonio. Istituzioni di Diritto del Lavoro: il rapporto di lavoro. p. 268.
  • Essa é a posição de Antonio Vallebona: "no sistema da Constituição, é atribuída à autonomia coletiva a determinação do variável ponto de equilíbrio entre interesses contrapostos em cada fase do desenvolvimento econômico das diversas regiões, de modo que não haveria sentido, além de perigoso pelo seu inevitável subjetivismo, uma verificação da suficiência e proporcionalidade que nela se inscrevem". VALLEBONA, Antonio. Istituzioni di Diritto del Lavoro: il rapporto di lavoro. p. 269-270. Traduação nossa.
  • Nesse sentido, cft as decisões da Corte de Cassação n. 7563, de 13 de outubro de 1987, n. 11881, de 14 de dezembro de 1990 e n. 12490, de 23 de novembro de 1992.
  • PERONE. Giancarlo. Lo Statuto dei Lavoratori. Torino: UTET, 1997. p. 106. Nesse sentido, vide a decisão da Corte de Cassação n. 9.968, de 23 de junho de 2003, in Repertorio del Foro Italiano, ano de 2004, Roma, Il Foro Italiano, 2005. p. 1535.
  • Vide as decisões da Corte Constitucional n. 174, de 12 de dezembro de 1972; n. 40 e 41, de 1º de junho de 1979; n. 42, 43 e 44, de 18 de junho de 1979; n. 13, de 10 de fevereiro de 1981, in PERONE. Giancarlo. Lo Statuto dei Lavoratori. p. 107. Acerca do regime da tutela real, Antonio Vallebona nota que "a propósito se fala de relações de trabalho estáveis ou resistentes, nas quais o trabalhador perde o temor reverencial causado pelo poder do empregador de dispensa livre ou a baixo custo e pode, assim, agir para a tutela dos próprios direitos já no curso da relação.". VALLEBONA, Antonio. Istituzioni di Diritto del Lavoro. Il rapporto di lavoro. p. 424-425.
  • O valor do SMIC, em 1º de julho de 2004, foi reajustado para 7,61 euros/hora, totalizando-se 1154 euros brutos mensais (para uma jornada semanal normal de 35 horas). Ele é automaticamente reajustado toda vez que o índice de preços INSEE aumenta mais de 2% e, demais disso, o Governo francês o reajusta em 1º de julho de todo ano, de modo a assegurar-lhe uma progressão ao menos igual à média do aumento do poder de compra dos salários médios (por isso ele é um salário mínimo de "crescimento). In RAY, Jean-Emmanuel. Droit du travail: doit vivant. 13ª ed. Paris: Liaisons. 2004. p. 164.
  • RAY, Jean-Emmanuel. Droit du travail: doit vivant. p. 165.
  • A população atual do país é 40,2 milhões de pessoas. VALVERDE, Antonio Martín, GUTIÉRREZ, Fermín Rodriguez-Sañudo, MURCIA, Joaquín García. Derecho del Trabajo. p. 597.
  • VALVERDE, Antonio Martín, GUTIÉRREZ, Fermín Rodriguez-Sañudo, MURCIA, Joaquín García. Derecho del Trabajo. p. 598.
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    Sobre a autora
    Lorena Vasconcelos Porto

    Doutora em Direito do Trabalho pela Universidade de Roma II. Mestre em Direito do Trabalho pela PUC-Minas. Especialista em Direito do Trabalho e Previdência Social pela Universidade de Roma II. Bacharel em Direito pela UFMG. Advogada.

    Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

    PORTO, Lorena Vasconcelos. A remuneração do trabalhador no Brasil e no direito comparado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2112, 13 abr. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12570. Acesso em: 25 abr. 2024.

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