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Relação de trabalho e relação de consumo.

Discussão da competência da Justiça do Trabalho pós-Emenda Constitucional nº 45/2004

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03/04/2009 às 00:00
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5. SOBRE AS RELAÇÕES DE TRABALHO INSERIDAS NA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO.

Ponderaremos abaixo sobre as duas correntes teóricas mais extremistas quanto à competência da Justiça do Trabalho para relações não empregatícias. Óbvio que nem todas as interpretações sobre a Emenda 45/04 são tão radicais, chegando algumas a se posicionar no centro, relacionando certo número de situações decorrentes de relações trabalhistas para a Justiça do Trabalho e outro tanto para a Comum. Há, também, doutrinadores que defendem determinada posição, mas não concordam com todos os argumentos por nós apresentados no tocante a tal teoria.

No entanto, expor lado a lado os argumentos divergentes facilitará eventuais comparações. Além disso, seria impossível enumerar todas as teorizações criadas sobre o novo artigo 114 da Constituição.

5.1. Restritiva.

Esta corrente entende que a "relação de trabalho" presente na Emenda 45, e somente ela, é sinônima do binômio "relação de emprego". Na verdade, o que este teoria alega é que o legislador, na esteira do antigo artigo 114, utilizou novamente uma expressão imprópria para se referir à Competência da Justiça Trabalhista. A "relação de trabalho", por isso, não deixaria de ser gênero do emprego, mas seria considerada sinônima desta apenas na leitura do novo artigo 114 da CF.

Cumpre ressaltar que a doutrina restritiva não alega a total inexistência de ampliação da competência da Justiça do Trabalho, mas apenas no tocante a outras relações de trabalho que não a empregatícia. A Emenda 45/04 teria ampliado, sim, a competência da Justiça Trabalhista, pois "os incisos II a VIII da CR/88 atendem aos anseios da sociedade, transferindo para a Justiça do Trabalho situações que realmente guardam pertinência com seus princípios norteadores e que decorrem da relação de emprego [43]" (grifo nosso).

Vejamos os principais argumentos utilizados pelos partidários da corrente restritiva:

5.1.1. Complementaridade entre os incisos I e IX.

Somente se interpretados de acordo com a ótica restritiva, os incisos I e IX fariam sentido, pois aquele determinaria tão somente a competência da Justiça do Trabalho para julgar ações decorrentes de emprego, enquanto este último daria a possibilidade do legislador alargá-la infraconstitucionalmente. Dessa maneira, este último seria um complemento ao primeiro.

Todavia, caso forem analisados ampliativamente, tais incisos se mostrariam incoerentes, segundo a presente corrente. Se o inciso I envolvesse toda e qualquer ação oriunda do labor humano, então o IX seria contraditório, pois as "outras controvérsias decorrentes de relação de trabalho" já estariam automaticamente admitidas pela Justiça Trabalhista, sem necessidade de lei específica. Os partidários da teoria restritiva acreditam na infalibilidade na lei, partindo do pressuposto de "que não existem palavras inúteis na elaboração de qualquer dispositivo legal [44]".

Há um projeto de lei, de número 6.542/2005, já aprovado pela Comissão Mista Especial do Congresso Nacional, que segue exatamente o pensamento restritivo, ao entender que o inciso IX necessitaria de regulamentação, por tratar o inciso I de relação empregatícia. Para tanto, tal projeto, anexado ao presente estudo, acrescenta ao artigo 652 da CLT a alínea "f", enumerando vários casos de "outras controvérsias decorrentes de relação de trabalho". Segundo o site da Câmara dos Deputados, o referido projeto de lei se encontra na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania.

5.1.2. Natureza especial da justiça do trabalho.

Alegam, também, os defensores desta interpretação que se a competência fosse ampliada ao extremo, a Justiça Especializada perderia sua natureza, pois "a Justiça do Trabalho seria a Justiça Comum e a Justiça Comum passaria a ser a Justiça Especial [45]".

A Constituição de 1998 não destoou das passadas e manteve a mesma competência para a Justiça do Trabalho. Para tanto, esta tem aparato e organização únicos, desenvolvidos desde o período de sua institucionalização, além de magistrados especializados em questões empregatícias. Ampliando-se a competência, a Emenda 45 estaria desconsiderando todo este histórico evolutivo.

João José Sady não se preocupa apenas com o passado, mas também com as conseqüências que a ampliação pode acarretar no futuro:

O conúbio entre o Direito Civil e o Direito do Trabalho residindo na mesma casa que antes era, apenas, reservada ao Direito Social, pode apresentar o resultado inverso daqueles esperados pelos entusiastas da ampliação, ou seja, pode significar a intensificação de uma visão civilista da relação de trabalho no seio da magistratura trabalhista [46].

5.1.3. Julgamento da ADIN 3.395.

A partir da vigência da Emenda 45, a discussão sobre competência da Justiça do Trabalho para julgar ações de servidores estatutários ressurgiu à tona, principalmente em face da tramitação legislativa da Emenda. A Câmara dos Deputados aprovou o inciso I do artigo 114 com o texto atualmente em vigor; o Senado, contudo, aprovou a mesma redação com um adendo na parte final do dispositivo, grifada abaixo:

Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar:

I – as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, exceto os servidores ocupantes de cargos criados por lei, de provimento efetivo ou em comissão, incluídas as autarquias e fundações públicas dos referidos entes da Federação.

Em teoria, o texto de um projeto modificado no Senado deveria ser devolvido para discussão e aprovação na Câmara, mas o texto publicado foi o aprovado apenas pela Câmara. Tal situação levou a AJUFE – Associação dos Juízes Federais do Brasil – a propor a ADIN 3.395, para que a situação dos servidores fosse esclarecida.

Em 28 de janeiro de 2005, o Ministro Nelson Jobim julgou medida cautelar, interpretando o dispositivo em questão de maneira excludente aos servidores estatutários. Em 05 de abril de 2006 o Plenário do STF confirmou, por maioria, a liminar em questão. Segue ementa do julgamento:

EMENTA: INCONSTITUCIONALIDADE. Ação direta. Competência. Justiça do Trabalho. Incompetência reconhecida. Causas entre o Poder Público e seus servidores estatutários. Ações que não se reputam oriundas de relação de trabalho. Conceito estrito desta relação. Feitos da competência da Justiça Comum. Interpretação do art. 114, inc. I, da CF, introduzido pela EC 45/2004. Precedentes. Liminar deferida para excluir outra interpretação.

O disposto no art. 114, I, da Constituição da República, não abrange as causas instauradas entre o Poder Público e servidor que lhe seja vinculado por relação jurídico-estatutária. [47]

Dessa forma, para os conflitos entre a União e os servidores públicos estatutários federais será competente a Justiça Federal, bem como nas lides entre Estados e Municípios contra seus funcionários públicos estatuários será competente a Justiça Estadual; já para os trabalhadores regidos pela CLT, a Justiça do Trabalho continuará julgando seus litígios.

Os adeptos desta doutrina entendem que, indiretamente, o STF adotou uma posição restritiva não somente quanto às relações com a Administração Pública, mas também no tocante às outras relações trabalhistas, expandindo o alcance original da decisão.

5.1.4. Inexistência de benefício para os trabalhadores, se ampliada a competência.

João José Sady lembra que, se integrados à Justiça Trabalhista, os trabalhadores não-empregados, não serão beneficiados pelos direitos materiais dos outros jurisdicionados por ela. Segundo tal doutrinador, atribui à Justiça do Trabalho "missão de aplicar direito comum aos prestadores autônomos de serviços não vai incrementar em nada a proteção da ordem jurídica sobre este contingente de atores [48]". Portanto, em caso de ampliação, os Juízes do Trabalho continuariam a aplicar o Direito Comum (Código Civil e leis correlatas) aos seus novos jurisdicionados e o Direito do Trabalho (Consolidação das Leis do Trabalho e legislação material correspondente) aos empregados.

Além disso, no tocante ao aspecto processual, também não há muito a ganhar, pois as eventuais novas relações sob competência da Justiça do Trabalho não serão agraciadas com o procedimento já adotado às relações empregatícias, no que conflitarem com estas. Segundo Edilton Meireles:

Em suma, são os valores inerentes à relação de emprego que justificam o rito da ação trabalhista. Incorreto pensar, portanto, que o rito se justifica em face do órgão julgador (porque na JT, deve ser rito da CLT). Não à toa que perante o juiz de direito, no exercício da jurisdição trabalhista é adotado o rito da CLT nas reclamações trabalhistas, assim com tal ocorria junto à Justiça Federal, quando esta tinha competência para julgar causas em relação à União, suas autarquias e suas empresas públicas (art. 125, I, da CF de 1967/69).

5.2. Ampliativa.

A corrente ampliativa, por sua vez, opina pela intenção do legislador em conferir competência à Justiça do Trabalho para dirimir todas as possíveis lides decorrentes de quaisquer relações de trabalho existentes. Considera, portanto, que o conceito de "relação de trabalho" aceito pela doutrina pré-Emenda 45, é o mesmo utilizado por tal dispositivo.

Nesse sentido, a Justiça do Trabalho não seria mais a "Justiça do Emprego", mas passaria "a cuidar do trabalhador em geral, de todo o trabalhador, de todo aquele que, pessoa física, empresta seu esforço (físico ou mental) em favor de outrem mediante contra prestação in pecúnia [49]" (grifos do autor). Ainda em 1948, o doutrinador espanhol Pérez Leñero já apontava para esta visão evolucionista:

[...] esse mesmo fato social trabalho pode dar origem a relações que não são jurídicas, mas morais, salientando-se do conteúdo da nossa ciência. No direito positivo, pode ser fundamento de relações jurídicas, que hoje, não obstante, não entram, todavia, no direito laboral, tal como correntemente se entende (por exemplo, o trabalho profissional e o autônomo), mas que doutrinariamente, como dissemos, terão que entrar no dia em que nossa ciência adquirir a substantividade e independência que terá que alcançar. [50]

Vejamos abaixo, as principais alegações dos defensores desta doutrina:

5.2.1. Literalidade da relação de emprego e relação de trabalho.

Como já analisado no tópico 4.2.3., a relação empregatícia é espécie da relação de trabalho. Esta última abarca inúmeras outras situações em que o labor humano é objeto. Tais entendimentos já estão pacificados doutrinária e jurisprudencialmente. Por essa razão, argumenta-se a impossibilidade do legislador desconhece-los.

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Ao lermos um dispositivo legal, aplicamos sobre ele, instintivamente, a interpretação literal (gramatical). Ela é o primeiro estágio no processo interpretativo, fazendo-nos trazer à tona nossos pré-conceitos. Por isso, a expressão "relação de trabalho", logo traz à mente do aplicador do Direito, uma noção de gênero.

"Assim, não há qualquer dúvida de que se apreendermos a ‘relação de trabalho’ no seu sentido mais literal, estaremos concordando em enviar para a Justiça do Trabalho todas as relações jurídicas em que ocorra o ‘dispêndio de energia do ser humano’ [51]".

5.2.2. Racionalidade do inciso IX.

Aqueles que vêem a ampliação da competência como positiva, não entendem serem os incisos I e IX contraditórios entre si.

Vejamos a explicação de Amauri Mascaro Nascimento:

Entendemos que primeiro houve uma inversão. O que só podia ser julgado em caráter excepcional mediante lei autorizante, passou a não mais depender de uma lei atributiva de competência. [...] E por outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma de lei, o que nos parece viável entender é que, diante da ampliação do quadro da competência para toda relação de trabalho e tendo em vista a amplitude desse quadro, poderá o legislador, a seu critério, ampliar, ainda mais, a competência do Judiciário Trabalhista, por exemplo, no futuro para previdência complementar ou oficial [52] (grifo do autor).

Por meio dessa argumentação, procura-se dar ao artigo 114 da Constituição o maior vigor e eficácia possíveis, invocando o princípio da máxima efetividade.

5.2.3. Necessidade de ampliação da competência material.

A doutrina em questão argumenta que a criação da Emenda Constitucional 45 está temporalmente inserida na última fase da evolução do Direito do Trabalho, a de crise e transição, apontada no tópico 2.1.. Antônio Álvares da Silva demonstra esse entendimento, afirmando que a competência trabalhista pré-reforma estava "condenada a uma morte lenta, pela extinção paulatina, mas sempre progressiva, das relações individuais de trabalho e da relação de emprego [53]".

Em face disso, o legislador teria chegado às seguintes conclusões: a relação empregatícia não é a única trabalhista existente e vêm perdendo gradativamente espaço para outras. Assim sendo, mais cedo ou mais tarde a Justiça do Trabalho se tornaria inútil, pois era competente para julgar, essencialmente, dissídios decorrentes da relação de emprego. Por isso, a Emenda teria incorporado "quase que explicitamente, o estratagema oficial dos anos 90, do fim do emprego e do envelhecimento do Direito do Trabalho [54]". Não vislumbrando a possibilidade de acabar com a Justiça do Trabalho, o legislador teria passado para esta a competência para sentenciar litígios derivados de outras relações trabalhistas, antes julgados pela Justiça Comum.

A ampliação, portanto, seria necessária (ainda que alguns a tenham como um "mal necessário"), para que a Justiça do Trabalho não pereça.

5.2.4. Racionalidade na ampliação da competência material.

Outro ponto positivo destacado pela presente teorização é a coerência da ampliação. Até a Emenda 45, os litígios decorrentes das relações trabalhistas deveriam ser distribuídos entre as Justiças Comum e Trabalhista. Porém, após a referida norma, todas as relações trabalhistas seriam analisadas por somente uma Justiça, tornando a jurisdição mais coerente.

No mesmo sentido, quando verificado tratar-se de relação não-empregatícia, o magistrado tinha duas opções, até a Emenda 45 – ou julgava a lide improcedente e excluía o feito, obrigando o autor a entrar com nova ação na Justiça Comum, ou remetia os autos ao juízo competente. Porém, segundo a presente corrente, tais medidas não seriam mais necessárias, pois o processo apenas mudaria de "reclamação empregatícia" para "trabalhista (lato sensu)".

Poder-se-ia argumentar a falta de experiência dos juízes do trabalho para com as relações não-empregatícias. Contudo, Grijalbo Fernandes Coutinho, ex-presidente da ANAMATRA – Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho, alega o seguinte:

Ninguém como o juiz do trabalho se encontra tão apto a tratar desses conflitos. Em seu dia-a-dia, invariavelmente, sempre lidou com esses elementos diferenciadores das peculiares relações de trabalho, como matéria prejudicial de mérito nas situações em que o tomador de serviços impugna a configuração da pretendida relação de emprego [55].

Portanto, apesar de não enfrentar tais questões como mérito da lide, o magistrado trabalhista teria conhecimento suficiente sobre elas e capacidade para analisá-las. Utilizando-se dos argumentos expostos, foi julgado no TRT paranaense um recurso de advogado pleiteando danos morais em decorrência de seus serviços, na Justiça Trabalhista:

JUSTIÇA DO TRABALHO. AMPLIAÇÃO DA COMPETÊNCIA. [...] O principal fundamento [para a total ampliação da competência] é o de que não se pode negar aos trabalhadores, empregados ou não, a eficácia dos princípios da dignidade humana e do valor social do trabalho em igual medida, o que também significa dizer, pelo mesmo órgão julgador. Admitir que esferas distintas do Poder Judiciário apreciem conflitos que, na essência, têm a mesma origem, permitiria valorações diversas e possivelmente conflitantes, em prejuízo à garantia de todos os trabalhadores, empregados ou não, de obter do Poder Judiciário resposta às demandas ajuizadas, da maneira mais eficaz e uniforme possível. Ainda que a interpretação literal não seja a melhor forma de extrair o sentido da norma, o dispositivo constitucional do art. 114, I, não contempla ressalvas quanto às relações de trabalho que devam ser processadas e julgadas pela Justiça do Trabalho. E, se o texto da lei não restringe, não cabe ao intérprete fazê-lo. A única exigência da norma constitucional é que se averigúe se o conflito decorreu de efetiva relação de trabalho, por suas variadas formas, o que retira, em princípio, a relevância da indagação sobre eventual relação de consumo. Recurso provido para reconhecer a competência da Justiça do Trabalho para apreciar ação de indenização por danos morais ajuizada por advogado em face de cliente e determinar o retorno dos autos à origem para processamento e julgamento do feito. [56]

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Sobre o autor
Pedro Fauth Manhães Miranda

Graduado em Direito pela Universidade Estadual de Londrina e Especilizando em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade Estadual de Londrina.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MIRANDA, Pedro Fauth Manhães. Relação de trabalho e relação de consumo.: Discussão da competência da Justiça do Trabalho pós-Emenda Constitucional nº 45/2004. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2102, 3 abr. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12577. Acesso em: 24 nov. 2024.

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