6. RELAÇÃO DE CONSUMO.
6.1. Conceito.
A expressão "relação de consumo" é um binômio, assim como "relação de trabalho". Desse modo, aproveita-se o tópico sobre o conceito de relação jurídica (número 4.2.1.).
As relações tidas como "de consumo" são reguladas, primordialmente, pelo Código de Defesa do Consumidor (lei 8.078 de 11 de setembro de 1990). Doutrina e jurisprudência não divergem muito acerca de sua conceituação, pois ela geralmente se limita a estabelecer seus elementos formativos. "Haverá relação jurídica de consumo sempre que se puder identificar num dos pólos da relação o consumidor, no outro, o fornecedor, ambos transacionando produtos e serviços [57]". O próprio Código de Defesa do Consumidor se limita a enumerar tais elementos, sem conceituar a relação de consumo em si.
O vocábulo "consumo" sequer é definido pela doutrina, pois se entende que ele é a concretização do uso ou aproveitamento do objeto (produto ou serviço). Portanto, em havendo este objeto e sendo ele transacionado pelos sujeitos mencionados, haverá consumo, residindo o problema em definir consumidor, fornecedor, produto e serviço.
6.2. Consumidor.
O conceito de consumidor está exposto no Código de Defesa do Consumidor, o qual dispõe no caput do artigo 3º que "Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final [58]". Este dispositivo trata do consumidor stricto sensu, já que existem também as figuras equiparadas ao consumidor a serem analisadas posteriormente.
Porém, a conceituação de consumidor não é assim tão clara como nos faz parecer o dispositivo acima. O problema reside no termo "destinatário final" e, como em tudo no Direito, aqui também existem teorias contrapostas sobre seu conceito. Analisaremos três diferentes teorias sobre o consumidor, sendo que as duas primeiras são as mais extremistas e a última importa dados de ambas as teorias para uma formulação nova e original.
6.2.1. Teoria Finalista.
Esta corrente avalia que a obtenção ou utilização do produto ou serviço para o exercício de atividade civil, empresária ou econômica (elemento subjetivo), ainda que de maneira indireta, descaracteriza a destinação final do objeto da relação de consumo. Como este será aplicado no incremento da atividade lucrativa, a circulação econômica não se encerraria nas mãos da pessoa que o obteve. Não importa se o bem ou serviço seria repassado ao consumidor (por transformação ou diretamente) ou somente anexado ao aparato empresarial.
Imaginemos que um contabilista e um aposentado comprem um computador cada um, sendo estes objetos idênticos. Até então, não haveria diferença entre os negócios jurídicos realizados. Porém, a partir do momento que o contabilista utiliza-se do bem para a prática do seu trabalho e o aposentado usufrui da máquina para seu próprio lazer, estaria configurada uma relação de consumo entre este último e a loja, enquanto que aquele teria firmado uma relação civilista.
Cláudia Lima Marques assevera que para ser destinatário final, não bastaria "ser destinatário fático do produto, retira-lo da cadeia de produção, levá-lo para o escritório ou residência: é necessário ser destinatário final econômico do bem, não adquiri-lo para revenda, não adquiri-lo para uso profissional [59]".
O consumidor teria a necessidade final (daí o termo "finalista") de obter o produto apenas para suprir uma satisfação pessoal, caracterizando-se tanto por ser um destinatário final fático, usufruindo do objeto para suas necessidades pessoais, como econômico, retirando o bem do mercado de consumo, sem reutilizá-lo profissionalmente.
Já o contabilista é forçado a adquirir o computador em face da essencialidade instrumental da profissão. Sua necessidade não é final, mas sim intermediária, ainda que não repasse o objeto a terceiro. É verdade que ele também é destinatário final fático, mas não seria econômico, já que se utiliza do objeto para a obtenção de benefícios econômicos (lucro), além de indexar o seu custo no preço final da sua cobrança profissional. A sua condição seria a mesma de uma montadora de computadores, que compra o mesmo computador para montar com outras peças e revender.
Nesse sentido, julgamento do Superior Tribunal de Justiça:
COMPETÊNCIA. RELAÇÃO DE CONSUMO. UTILIZAÇÃO DE EQUIPAMENTO E DE SERVIÇOS DE CRÉDITO PRESTADO POR EMPRESA ADMINISTRADORA DE CARTÃO DE CRÉDITO. DESTINAÇÃO FINAL INEXISTENTE.
A aquisição de bens ou a utilização de serviços, por pessoa natural ou jurídica, com o escopo de implementar ou incrementar a sua atividade negocial, não se reputa como relação de consumo e, sim, como uma atividade de consumo intermediária. Recurso especial conhecido e provido para reconhecer a incompetência absoluta da Vara Especializada de Defesa do Consumidor, para decretar a nulidade dos atos praticados e, por conseguinte, para determinar a remessa do feito a uma das Varas Cíveis da Comarca. [60]
Importante gizar que as pessoas jurídicas que não possuem intuito de lucro (associações, entidades religiosas, partidos políticos e fundações), não precisam demonstrar a finalidade do produto, por razões óbvias de que sempre serão destinatárias finais econômicas.
Formulando outra exemplificação, ainda com o contabilista e o computador (mais especificamente um laptop), imaginemos que este é adquirido para ser utilizado no trabalho, mas que ao final do expediente, o contabilista o leva para casa. Esta é a figura do consumidor misto que nem sempre será consumidor para esta teoria. Para definir a natureza desta relação, Ronaldo Alves de Andrade afirma que deve ser utilizado o critério de preponderância do bem adquirido, "de forma que se o bem for utilizado na maior parte do tempo para finalidade pessoal do adquirente, não se tratará de relação de consumo, mas o será se o bem for utilizado na maior parte do tempo para finalidade pessoal [61]".
6.2.2. Teoria Maximalista.
A segunda corrente considera que a utilização ou obtenção do produto na condição de destinatário final fático caracteriza por si só a relação de consumo, por força do ato de consumo (elemento objetivo).
Não faria diferença para a conceituação de consumidor a finalidade de uso do bem, porquanto mesmo quem adquire ou utiliza bem ou serviço, com vistas ao exercício de atividade econômica, sem que o produto ou serviço integre diretamente o processo de produção, transformação, montagem, beneficiamento ou revenda, o faz na condição de destinatário final, ainda que meramente fático.
Para esta corrente, o contabilista adquire o computador, mas o utiliza como bem de produção, ao passo que o aposentando usufrui dele como bem de consumo. Ainda assim, ambos serão consumidores do computador, pois depreciarão o seu valor de troca e não o colocarão no mercado novamente, sendo seus destinatários finais.
O "consumidor misto", por sua vez, sempre será parte de relação de consumo, excluindo a necessidade de se provar a preponderância do bem ou serviço para necessidades pessoais ou profissionais do indivíduo. Mesmo os defensores da tese anterior concordam que a prova dessa preponderância é extremamente difícil de ser concretizada, trazendo economia processual e igualdade de decisões, se utilizada a presente teoria.
A montadora de computadores, porém, continua não sendo caracterizada como consumidora, pois nunca será destinatária final fática ou econômica do computador, mas sim intermediária. Ela inclui o produto no "processo de produção, transformação, montagem, beneficiamento ou revenda". O valor de troca, neste caso, é valorizado e o bem volta ao mercado, ainda que em partes.
A Ministra Nancy Andrighi explica essa diferenciação no voto vencedor, pela procedência de recurso interposto no STJ em que uma empresa de produtos alimentícios busca rescindir o contrato com uma prestadora de serviços de informática, procurando enquadrar tal relação como sendo de consumo.
Não se enquadra em tal definição [destinatário final] aquele que utiliza do bem para continuar a realizar a sua produção, pois estaria transformando e utilizando o bem para oferecer ao seu cliente/consumidor. Portanto, uma empresa que utiliza um bem para transformá-lo e incorporando um produto, que será utilizado por terceiros, não pode ser considerada consumidora final desta cadeia produtiva.
Extrai-se dos autos que a recorrente é qualificada como destinatária final, já que se dedica à produção de alimentos e que se utiliza dos serviços de software, manutenção e suporte oferecidos pela recorrida, apenas para controle interno de produção. Deve-se, portanto, distinguir os produtos adquiridos pela empresa que são meros bens de utilização interna da empresa daqueles que são, de fato, repassados aos consumidores [62].
Percebamos que a pessoa jurídica consumerista assemelhar-se-ia quase que totalmente à física, pois também não age "em caráter profissional e especializado [...] tendo em vista que nesta situação torna-se igualmente a qualquer um, vulnerável em relação ao respectivo fornecedor, sem nenhuma diferença jurídica relevante". Relacionando os exemplos acima, efetuada a compra do mesmo objeto (computadores), a empresa de produtos alimentícios está na mesma condição do contabilista e do aposentado, mas nunca da revendedora de peças. Esta última não é vulnerável quanto ao fornecedor, enquanto todas as outras pessoas o são.
A teoria maximalista, portanto, abarca o maior número possível de indivíduos sob a égide protetiva do Direito do Consumidor.
6.2.3. Teoria Finalista Aprofundada.
Esta última corrente teórica parte do mesmo pressuposto que a finalista, ou seja, é consumidor aquele destinatário final simultaneamente fático e econômico do produto ou serviço. Contudo, ela vai além e abarca também os destinatários finais não-econômicos, desde que vulneráveis perante o tomador de serviços. Desse modo, ela se assemelha também à teoria maximalista, no sentido de não se fixar tão somente na destinação econômica do produto.
O próprio CDC assume a condição de vulnerabilidade do consumidor no seu artigo 4º:
Art. 4° A Política Nacional de Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito a sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:
I - reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo [63].
Cláudia Lima Marques enumera as modalidades de vulnerabilidade do consumidor, explicando-as:
[...] existem quatro tipos de vulnerabilidade: a técnica, a jurídica, a fática e a informacional. Na vulnerabilidade técnica, o comprador não possui conhecimentos específicos sobre o objeto que está adquirindo. [...] Já a vulnerabilidade jurídica ou científica é falta de conhecimentos jurídicos específicos, conhecimentos de contabilidade ou de economia. [...] Mas há ainda a vulnerabilidade fática ou socioeconômica, em que o ponto de concentração é o outro parceiro contratual, o fornecedor que, por sua posição de monopólio, fático ou jurídico, por seu grande poder econômico ou em razão da essencialidade do serviço, impõe sua superioridade a todos com que ele contratam. [...] A vulnerabilidade informativa não deixa, porém, de apresentar hoje o maior fator de desequilíbrio da relação vis-à-vis dos fornecedores, os quais, mais do que experts, são os únicos verdadeiramente detentores da informação [64].
Não se discute a vulnerabilidade dos reais consumidores (destinatários finais fáticos e econômicos), pois esta qualidade é intrínseca a eles, presumida. Todo consumidor está em desvantagem em relação ao fornecedor, já que não tem poder de barganha. Desse modo, o fornecedor aumenta o preço o máximo que puder, deixa de oferecer condições benéficas ao consumidor e formula típico contrato de adesão. Ao consumidor restam três opções: ou adquire o produto o serviço em questão do modo como lhe é ofertado; ou procura-o em outro estabelecimento que, em geral, lhe estabelecerá as mesmas condições; ou, em último caso, deixa de adquiri-lo.
Já aquele que não é destinatário final econômico tem, em geral, possibilidade de realizar uma transação menos custosa, por ser, geralmente, pessoa jurídica de grande porte e/ou atuante no mercado há muito tempo. Contudo, há destinatários finais não-econômicos que fogem à regra e são vulneráveis no mercado de consumo.
Em resumo, a teoria finalista opina pela exclusão destes últimos da incidência do CDC, enquanto que a maximalista inclui todos os destinatários finais econômicos, mesmo os não vulneráveis. Com isso, a tese finalista aprofundada se posiciona no centro e, por não ser extremista, além de respeitar o espírito do CDC, têm ganhado terreno no STJ. Abaixo, dois julgamentos unânimes do STJ, que demonstram esse viés.
Caso de reconhecimento de várias modalidades de vulnerabilidade, em que um hotel impetrou ação contra fornecedora de gás, diante da impossibilidade de aproveitar as sobras remanescentes de gás em recipientes de gás GLP:
Com essas considerações, seja por reconhecimento da vulnerabilidade da pessoa jurídica empresária, em face da suprema necessidade do bem para o exercício da atividade hoteleira (vulnerabilidade fática), da natureza adesiva do contrato de compra e venda estabelecido (vulnerabilidade jurídica), e da impossibilidade de extração total do produto dos botijões (vulnerabilidade técnica); ou seja por equiparação, em razão da exposição da sociedade empresária às práticas comerciais abusivas, o CDC deve ser aplicado à hipótese [...]. [65]
Caso de não reconhecimento de relação de consumo, pela inexistência de vulnerabilidade em qualquer modalidade, especialmente na fática (socioeconômica):
COMPETÊNCIA. CLÁUSULA DE ELEIÇÃO. EQUIPAMENTOS MÉDICO-HOSPITALARES. EMPRESA DE PORTE.
A clínica médica que adquire equipamento de valor acima de um milhão de dólares tem, presumidamente, condições de exercer a sua defesa no foro previsto no contrato. Precedente.
A mera circunstância de a vendedora do referido equipamento ser empresa de maior porte que o da compradora não é suficiente, por si só, para afastar o foro eleito.
Recurso conhecido e provido. [66]
Desse modo, a vulnerabilidade se tornaria pressuposto para a configuração do destinatário fático não-econômico como consumidor, mas tão somente conseqüência para o econômico. Porém, ao consumidor (qualquer que seja a teoria adotada), sempre serão devidas garantias decorrentes da vulnerabilidade, como inversão do ônus da prova, a responsabilidade objetiva e a facilitação de seu acesso aos instrumentos de defesa, notadamente no âmbito coletivo.
6.3. Consumidor por equiparação.
Também pode ser considerado consumidor aquele que não preenche necessariamente os requisitos para tal configuração. Essa nivelação ocorre porque o Direito do Consumidor não tutela apenas as relações de consumo concretizadas, mas o mercado de consumo como um todo. Esta previsão se encontra em três dispositivos do Código de Defesa do Consumidor: no parágrafo único do artigo 2º, e nos artigos 17 e 29, sendo que somente depois de analisados, a abrangência do conceito de consumidor poderá ser compreendida.
O parágrafo único do artigo 2º ordena que "equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo [67]". Esta norma não está circunscrita a qualquer seção ou capítulo, permeando todo o Código de Defesa do Consumidor, no que não houver norma contrária. O artigo 17, por exemplo, é muito mais específico, como será visto a seguir, sendo contrário àquele.
As pessoas a serem equiparadas a consumidores por este artigo só precisam estar submetidas a alguma relação de consumo, formando uma coletividade considerada como um todo. "O que a lei diz é que, uma vez existindo qualquer prática comercial, toda a coletividade de pessoas já está exposta a ela, ainda que em nenhum momento se possa identificar um único consumidor real que pretenda insurgir-se contra tal prática [68]".
Portanto, mesmo que os prejudicados por contrato de adesão ou publicidade enganosa não acione o Poder Judiciário para buscar seus direitos, o Ministério Público o fará não somente em seu nome, mas de todos os outros lesados ou que poderiam vir a ser por tal acontecimento, mesmo que não presentes na relação de consumo em questão.
O artigo 29, por sua vez, determina que "para os fins deste Capítulo e do seguinte equiparam-se aos consumidores todas as pessoas determináveis ou não, expostas às práticas neles previstas [69]". Os referidos capítulos são o V (das práticas comerciais) e o VI (da proteção contratual). Entende-se que o legislador preferiu pecar pela ação à omissão, pois tal artigo apenas reforça o disposto pelo 2º, no tocante aos capítulos por ele abrangidos.
Já o artigo 17 ordena que "para os efeitos desta Seção, equiparam-se aos consumidores todas as vítimas do evento". A referida seção é a denominada "da responsabilidade por vício do produto ou do serviço", sendo que este dispositivo, ao contrário do anterior, pressupõe a lesão do indivíduo para sua equiparação, podendo sê-lo consumidor direto ou não.
Através do uso ponderado do art. 17 do CDC, a jurisprudência brasileira já equiparou moradores próximos a uma refinaria por dano ambiental resultante de acidente de consumo e produção, proprietários e locadores de prédio desabado, consumidores desalojados por oito meses pelo desabamento do prédio ao lado, todas as vítimas de incêndio em shopping center, o locador de shopping center que tem seu carro furtado no estacionamento e aquele comerciante que se fere com explosão de garrafa de cerveja. [70]
6.4. Fornecedor.
O fornecedor proporciona tanto a entrega de produtos como a realização de serviços, sendo definido no artigo 3º do CDC:
Art. 3º. Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços [71].
Desse modo, qualquer pessoa, física ou jurídica, que tenha qualquer função na cadeia de consumo, desde a produção inicial até a comercialização final de produtos ou serviços, são fornecedores. Também não importa a relação destes com o consumidor, podendo ser direta ou indireta, contratual ou extracontratual.
As atividades elencadas são tipicamente de produção, nos fazendo pensar que somente pessoas que atuam profissionalmente no mercado de consumo são fornecedores. Porém, tal questão não deve ser analisada sob esta ótica. A pessoa não deixa de ser considerada fornecedora por não exercer sua atividade de maneira profissional, mas sim pela ausência de habitualidade ou eventualidade regular.
Se uma loja de roupas vende seu computador usado para poder adquirir um novo, ainda que se possa descobrir no comprador um "destinatário final", não se tem relação de consumo, porque essa loja não é considerada fornecedora. A simples venda de ativos [bem como o fornecimento de serviços] sem caráter de atividade regular ou eventual não transforma a relação jurídica em relação jurídica de consumo. [...] Define-se como relação de consumo a venda do computador pela loja de roupas, se tal estabelecimento imprime uma regularidade a esse tipo de venda, visando a obtenção de lucro [72] (grifo nosso).
A pessoa jurídica, portanto, pode ser fornecedora, desde que preencha os requisitos de atividade profissional, seja ela habitual ou eventual. Assim, mesmo a pessoa jurídica de fato, que possui sede, empregados e horário de funcionamento (ex: "camelô") será fornecedora.
Em se tratando de pessoa física, imaginemos um professor de eletrônica que não tem um bom salário e habitualmente faz "bicos", consertando aparelhos de alunos e amigos, mediante pagamento. Sua função profissional (atividade típica) é passar conhecimento em sala de aula, mas a habitualidade da atividade informal faz dele um fornecedor de serviços, abarcado pelo artigo 3º do regulamento mencionado.
Outro exemplo parecido é o da estudante que vende bijuterias sempre na época do natal, para comprar presentes aos familiares. Apesar de não fazer isso regularmente como o professor de eletrônica, está no mercado de consumo de modo eventual (somente em uma época do ano), porém, reiterado (todos os anos), configurando-se também como fornecedora.
Não podemos deixar de discorrer sobre o profissional liberal, outro exemplo de pessoa física que, por meio de atividade comercial, busca obter lucro. Porém, ao contrário dos outros, ele, obviamente, o faz de modo profissional. Sua condição será pormenorizadamente discutida no tópico 6.7.2.
As figuras do fornecedor a título gratuito, do que exerce atividade não-lucrativa ou mesmo da administração pública configurada como tal, serão analisadas indiretamente no tópico 6.6, sobre os serviços da relação de consumo.
6.5. Produto.
Assim como os elementos subjetivos da relação de consumo (consumidor e fornecedor), os objetivos (produto e serviço) também são definidos de forma abrangente. O produto a ser entregue é definido como "qualquer bem móvel ou imóvel, material ou imaterial [73]", pelo parágrafo 1º do artigo 3º do CDC.
Vale dizer que ao adquirir um produto, qualquer que o seja, o consumidor obtém o benefício correspondente, sendo o produto apenas uma conseqüência. O indivíduo que compra uma casa não quer um amontoado de tijolos e telhas, mas sim um lugar confortável para fincar moradia com sua família e que possa lhe trazer segurança e conforto.
A noção de produtos móveis e imóveis é trazida pelos artigos 79 a 83 do Código Civil, já que o sentido buscado pelo CDC é o mesmo. Aquele código, contudo, utiliza-se do vocábulo "bem" ao contrário de "produto":
Art. 79. São bens imóveis o solo e tudo quanto se lhe incorporar natural ou artificialmente.
Art. 80. Consideram-se imóveis para os efeitos legais:
I - os direitos reais sobre imóveis e as ações que os asseguram;
II - o direito à sucessão aberta.
Art. 81. Não perdem o caráter de imóveis:
I - as edificações que, separadas do solo, mas conservando a sua unidade, forem removidas para outro local;
II - os materiais provisoriamente separados de um prédio, para nele se reempregarem.
Art. 82. São móveis os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social.
Art. 83. Consideram-se móveis para os efeitos legais:
I - as energias que tenham valor econômico;
II - os direitos reais sobre objetos móveis e as ações correspondentes;
III - os direitos pessoais de caráter patrimonial e respectivas ações. [74]
Tal definição, portanto, não comporta maiores discussões, já que os dispositivos acima são suficientemente claros.
Passemos à diferenciação de produtos materiais e imateriais. Os materiais são "coisas", objetos corpóreos, produtos que podem ser presenciados pelo homem e ocupam lugar no espaço, como uma cadeira, mesa ou prédio etc.
Já os produtos imateriais são incorpóreos, porquanto não podem ser faticamente presenciados. Um software de computador, por exemplo, se enquadra nesta classificação. Rizzatto Nunes afirma que tal designação também "é utilizada, por exemplo, nas atividades bancárias (mútuo, aplicação em renda fixa, caução de títulos etc.) [75]".
Apesar de não trazer a diferenciação de produtos em duráveis e não duráveis, tal distinção é importante para fins de consumo, pois o próprio artigo 26 do CDC dispõe prazos prescricionais diferentes para produtos ou serviços duráveis e não duráveis. O produto durável não se extingue pelo uso, levando tempo para se desgastar, não sendo, todavia, eterno (exs: imóvel, geladeira, carro etc). Ele se desgasta aos poucos com o uso, mas não se extingue.
Os produtos não duráveis se extinguem totalmente com o uso, perdendo sua essência. "Note-se que se fala em extinção imediata, como é o caso de uma bebida, pela ingestão ou extinção consumativa seqüencial, como é o caso do sabonete: este se vai extinguindo enquanto é usado [76]". Observemos que a casa vai se desgastando, mas apenas o sabonete se extingue.
O produto descartável, ao contrário do que se poderia pensar, é considerado durável, pois ele até pode ser utilizado outras vezes, mas não o é, devido a sua baixa qualidade e seu caráter de consumação imediata (exs: copos e pratos de plásticos devidamente lavados podem ser reutilizados). Depois de aproveitado, ele não perde a sua essência, mas seu desgaste é mais acentuado do que o do produto durável "normal".
6.6. Serviço.
Quando se pensa em relação de consumo, geralmente, vem à mente uma obrigação de dar (ex: compra e venda de um produto material). Mas é necessário frisar que os serviços também podem ser objetos de relação consumerista. As obrigações de fazer e de dar têm disposições legais e execuções diferenciadas, mas, ainda assim, Cláudia Marques constata certa igualdade entre tais negócios jurídicos, ao afirmar o seguinte sobre o texto do CDC:
Em suas normas contratuais stricto sensu e pré-contratuais dos arts. 29 a 54 do CDC, o legislador omitiu qualquer tipo de tratamento diferenciado entre estes dois contratos.
Conclui-se, portanto, que a disciplina da formação e do controle do equilíbrio contratual será a mesma tratando-se de um contrato de prestação de serviço ou de um contrato de fornecimento de produto. [77]
Além disso, a entrega de produto e a prestação de serviços se confundem na concretização de suas obrigações, pois, apesar de terem seus conceitos analisados separadamente, não é possível efetuar a entrega de um produto sem a concretização de um serviço. A recíproca, contudo, não é verdadeira.
Para vender um par de sapatos, o lojista tem de, ao mesmo tempo, prestar serviços: vai atender o consumidor, trazer os sapatos por ele escolhidos, coloca-los nos seus pés para que o experimente, dizer como pode ser feito o pagamento, passar o cartão de crédito na maquineta etc. Já na prestação de consulta médica, por exemplo, há apenas serviço.
Por conseguinte, não nos parece desmedido afirmar que qualquer relação de consumo se completa numa prestação de serviço. O vocábulo "serviço" é conceituado, pelo parágrafo 2º do artigo 3º do CDC, como sendo "qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista [78]".
Comecemos pela exceção apontada no final do artigo. Ela exclui as atividades provenientes de relação trabalhista do conceito de "serviço" presente na relação de consumo, retirando-as da abrangência do CDC. Novamente, há opiniões e argumentos para todos os gostos. Os que opinam pela ampliação da competência da Justiça do Trabalho, alegam que o Código de Defesa do Consumidor foi promulgado à época em que a expressão "relação de trabalho" da CLT era interpretada como sinônimo de relação de emprego, retomando o CDC tal entendimento. Já aqueles que esperam uma restrição da referida competência, argumentam que o CDC utilizou o termo como gênero que é, excluindo todas as relações de caráter trabalhista.
A lógica nos passa a idéia de que o CDC, como norma infra-constitucional, seguiu os parâmetros da Lei Maior e se subsumiu às suas interpretações. Desse modo, com a sua modificação, a interpretação majoritária deveria ser estendida ao CDC. No entanto, o CDC é lei específica e a CF geral, apesar de ser obviamente superior, o que daria àquele código a última palavra. Contudo, antes de tomarmos qualquer posição, melhor concluir primeiramente pela abrangência das relações de consumo, bem com verificar se estas podem realmente ser espécies trabalhistas.
Por outro lado, o artigo em questão incluiu as atividades bancárias, financeiras, de créditos e securitárias sob a égide do CDC. Apesar de tê-lo feito de modo expresso, houve tentativa por parte dos bancos de se obter decisões em sentido contrário, levando o Judiciário a pacificar entendimento em assunto no qual a lei já era clara. Súmula 297 do STJ: "O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras". Desse modo, apesar dos bancos se posicionarem contrários a esta determinação, tal discussão não tem mais sentido, porquanto a lei deve ser seguida, já que não é inconstitucional.
Passemos ao termo "atividades". Segundo Cláudia Marques, esta expressão "parece indicar a exigência de alguma reiteração ou habitualidade [79]", se harmonizando com a compreensão de fornecedor avaliada. Desse modo, não há atividade na venda de um carro usado, realizada por alguém que nunca fez isso antes e não pretende faze-lo novamente.
Assim sendo, estariam todos os serviços, desde que prestados de forma habitual ou eventualmente reiterados, abarcados pelo presente dispositivo? Não necessariamente, pois o referido artigo nos traz outro problema, já que ressalta que a atividade deve ser fornecida "mediante remuneração". James M. de Souza comenta o assunto:
Deve-se entender a expressão "mediante remuneração", não apenas como representativa da remuneração direta, isto é, o pagamento diretamente efetuado pelo consumidor ao fornecedor. Compreende também a remuneração do fornecedor o benefício comercial indireto advindo de prestações de serviços aparentemente gratuitas, assim como a remuneração "embutida" em outros custos. [80]
Em face desse entendimento uníssono entre os aplicadores do Direito, tanto o "polimento grátis" na lavagem do carro como a viagem-prêmio de um cartão de crédito são serviços de consumo. Mesmo que não haja um pagamento direto sobre os serviços e produtos pagos pelo consumidor, há um repasse cobrado indiretamente. Os "serviços gratuitos" servem, portanto, de meio para a consecução da relação jurídica onerosa. Por isso, são apenas atividades a título gratuito. Exemplo costumeiro é o do estacionamento gratuito de estabelecimento comercial, pacificado pelo STJ, em sua súmula 130: "A empresa responde, perante o cliente, pela reparação de dano ou furto de veículo ocorridos em seu estacionamento".
Analogamente, os produtos entregues sem remuneração direta, como cafezinho "por conta da casa" de um restaurante ou promoções do tipo "leve dois, pague um" terão incidência das normas do CDC.
Porém, é necessário que o fornecedor tenha como objetivo a aferição de lucro. O indivíduo que, ao passar pela rodovia, ajuda no conserto do carro de outrem sem nada cobrar, não prestou atividade consumerista. Do mesmo modo, atividades filantrópicas, culturais ou religiosas não são objetos de relação de consumo. Se furtado ou danificado automóvel que estava no pátio de uma igreja, tal situação não sofrerá incidência do CDC, por não haver serviço. Porém, apesar de não serem fornecedores, ainda assim responderão quanto à responsabilidade civil (ex: produto tóxico vendido por bazar beneficente não é objeto de consumo, mas gera responsabilidade civil).
Compreendamos que neste capítulo sobre as Relações de Consumo, não foi necessário criarmos sub-tópicos, pois as análises eram feitas pontualmente sobre os temas. Ou seja, procuramos delimitar os conceitos por si mesmos (ao analisar serviços, não ponderamos sobre produtos, por exemplo), na medida do possível, obviamente. Desse modo, escolhemos deixar alguns exemplos para serem considerados em separado, pois são de tal complexidade que será necessário invocar todos os conceitos retro analisados, simultaneamente.
6.7. Análises concretas de relações de consumo.
6.7.1. Serviço Público.
O serviço público aqui tratado é o prestado pela Administração Pública, direta ou indiretamente, e não o decorrente de relação estatutária entre o servidor público e Estado (tópico 5.1.3.).
Nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello:
Serviço público é toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material destinada à satisfação da coletividade em geral, mas fruível singularmente pelos administrados, que o Estado assume como pertinente a seus deveres e presta por si mesmo ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de Direito Público – portanto, consagrador de prerrogativas de supremacia e de restrições especiais -, instituído em favor dos interesses definidos como públicos no sistema normativo. [81]
O serviço público não está expressamente incluso no parágrafo 2º do artigo 3º do CDC, mas tal lei incluiu-o indiretamente por meio de dois dispositivos: o primeiro é o caput do artigo 3º, o qual afirma de modo expresso ser a pessoa pública fornecedora (incluídas aí incluindo autarquias, fundações e sociedades de economia mista); o segundo é o artigo 22, que tem o seu texto transcrito abaixo:
Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.
Parágrafo único. Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste Código. [82]
A Administração Pública, porém, apesar de fornecer serviços, não o faz inserida no mercado de consumo. Contudo, não deixa de se concretizar no consumo de um serviço, muitas vezes, por destinatário final (ex: morador de uma residência recebe eletricidade para consumo próprio, e não insumo de produção, como uma fábrica qualquer).
Existentes, portanto, bases para a conceituação de consumidor e fornecedor. Resta saber se os serviços públicos são exemplos de objeto de relação de consumo.
O serviço público, essencial ou não, é, em última análise, uma obrigação de fazer quase sempre acompanhada pela entrega de um produto. No caso do provimento de água, por exemplo, ela é o produto recebido pelo consumidor, sendo entregue pelo sistema de saneamento, encanamento e transmissão, caracterizando um serviço. Do mesmo modo, a eletricidade, o gás encanado e outros produtos desse porte também não são dissociados de seus serviços públicos. Contudo, apesar de serem entregues a destinatário final e por pessoas que poderiam ser consideradas fornecedoras, a jurisprudência majoritária nega relação de consumo a alguns serviços públicos, como no julgamento unânime abaixo:
PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. EXCEÇÃO DE COMPETÊNCIA. AÇÃO INDENIZATÓRIA. PRESTAÇÃO DE SERVIÇO PÚBLICO. AUSÊNCIA DE REMUNERAÇÃO. RELAÇÃO DE CONSUMO NÃO-CONFIGURADA. DESPROVIMENTO DO RECURSO ESPECIAL.
[...] não se pode falar em prestação de serviço subordinada às regras previstas no Código de Defesa do Consumidor, pois inexistente qualquer forma de remuneração direta referente ao serviço de saúde prestado pelo hospital público, o qual pode ser classificado como uma atividade geral exercida pelo Estado à coletividade em cumprimento de garantia fundamental (art. 196 da CF).
4. Referido serviço, em face das próprias características, normalmente é prestado pelo Estado de maneira universal, o que impede a sua individualização, bem como a mensuração de remuneração específica, afastando a possibilidade da incidência das regras de competência contidas na legislação específica.
5. Recurso especial desprovido. [83]
Somente os serviços públicos remunerados por tarifa ou preço público enquadrar-se-iam numa relação de consumo, sendo excluídos os servidos por impostos, taxa ou contribuição de melhoria. Nesse sentido, José Geraldo Brito Filomeno:
Importante salientar-se, desde logo, que aí não se inserem os ''tributos'', em geral, ou ''taxas'' e ''contribuições de melhoria'', especialmente, que se inserem no âmbito das relações de natureza tributária.
Não há que se confundir, por outro lado, referidos tributos com as ''tarifas'', estas, sim, inseridas no contexto de ''serviços'' prestados diretamente pelo Poder Público, ou então mediante sua concessão ou permissão pela iniciativa privada.
O que se pretende dizer é que o ''contribuinte'' não se confunde com ''consumidor'', já que no primeiro caso o que subsiste é uma relação de Direito Tributário, inserida a prestação de serviços públicos, genérica e universalmente considerada, na atividade precípua do Estado, ou seja, a persecução do bem comum. [84]
Contudo, há argumentação contrária, no sentido de que não é preciso remuneração direta do serviço público para configurar-se relação de consumo. O contribuinte-consumidor pagaria indiretamente por qualquer serviço público, ainda que por meio de impostos, assim como efetua pagamento disfarçado pelo estacionamento "gratuito" de um shopping center.
6.7.2. Profissional Liberal.
O profissional liberal é espécie de trabalhador autônomo, que exerce trabalho sem subordinação (tópico 4.2.4.5), não se confundindo com ele. Francisco Feijó, presidente da Confederação Nacional das Profissões Liberais – CNPL, explica:
[...] enquanto o autônomo pode ser qualquer individuo, com ou sem qualificação profissional, desde que trabalhe por conta própria, o liberal é sempre um profissional de nível universitário ou técnico, registrado, porém, em uma ordem ou conselho profissional, pagando contribuição anual, para poder exercer sua atividade profissional e se filiando a um sindicato de sua categoria, para receber da entidade, a defesa de seus direitos e interesses. [85]
Desse modo, o profissional liberal (ex: médico, engenheiro, advogado, contador, economista, administrador etc) é espécie de trabalhador, inserindo-se numa relação de trabalho. Quanto à inclusão destes serviços nas relações de consumo, novamente há divergência. Em voto vencedor, o ministro relator Antônio de Pádua Ribeiro, assim alega:
[...] a legislação de consumo abrangeu os serviços prestados pelos profissionais liberais, apenas excluindo-os da responsabilidade objetiva. O tratamento diferenciado é explicado pela natureza intuitu personae dos serviços prestados.
Nos dias atuais a forma de atuação tradicional dos profissionais liberais mudou muito, podendo existir casos em que o contrato, inclusive de honorários, pode ser caracterizado como tipicamente de consumo, como, por exemplo, nos casos de adesão massificada a contrato padrão destinado a lides coletivas. [86]
A exclusão da responsabilidade objetiva aos profissionais liberais, mencionada no fundamento colacionado do voto, é feita pelo artigo 14, §4º do CDC, o qual determina que a responsabilidade destes seja apurada mediante a verificação de culpa. Ora, se o próprio CDC cita em seu bojo este tipo de serviço, é de se concluir que ele é objeto de relação de consumo.
Contudo, há entendimento oposto, de que alguns serviços prestados por profissionais liberais, como o advocatício, não se enquadrariam nestas situações:
PROCESSO CIVIL. AÇÃO DE CONHECIMENTO PROPOSTA POR DETENTOR DE TÍTULO EXECUTIVO. ADMISSIBILIDADE. PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS ADVOCATÍCIOS. INAPLICABILIDADE DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR.
[...] Não há relação de consumo nos serviços prestados por advogados, seja por incidência de norma específica, no caso a Lei n° 8.906/94, seja por não ser atividade fornecida no mercado de consumo.
As prerrogativas e obrigações impostas aos advogados - como, v. g., a necessidade de manter sua independência em qualquer circunstância e a vedação à captação de causas ou à utilização de agenciador (arts. 31/ § 1° e 34/III e IV, da Lei n° 8.906/94) – evidenciam natureza incompatível com a atividade de consumo.
Recurso não conhecido. [87]
6.7.3. Contrato de empreitada.
A discussão central do nosso trabalho recai na possibilidade da relação de consumo figurar ou não na competência material da Justiça Trabalhista. Interessante notar, todavia, que ao menos uma destas relações já é julgada pela referida Justiça há muito tempo. É a empreitada, regulada pelos artigos 610 a 626 do Código Civil, na qual o trabalhador não é necessariamente subordinado ao seu tomador de serviços (e, portanto, não há emprego), preservando direção sobre a concretização da obra pactuada e podendo contratar ajudantes. A competência material da Justiça do Trabalho para conhecer os litígios decorrentes desta relação não é novidade, pois o artigo 652, III, "a" da CLT assim determina, desde a sua promulgação:
Art. 652 - Compete às Juntas de Conciliação e Julgamento [hoje, Varas do Trabalho, segundo EC 24/1999]:
a)conciliar e julgar:
III - os dissídios resultantes de contratos de empreitadas em que o empreiteiro seja operário ou artífice. [88]
Não há dúvida de que a empreitada se perfaz em um trabalho, porquanto o seu objeto central é a prestação de um serviço (realização de certa obra) em benefício de outrem. Apesar disso, nunca chegaria a ser competência da Justiça do Trabalho, antes da EC 45, se não pelo texto expresso da CLT. O interessante é notar que a empreitada pode ser um exemplo de relação de consumo. Nas palavras de Ancona Lopez:
O contrato de empreitada ora é contrato civil, com amplas discussões de suas cláusulas pelas partes, como geralmente é o contrato de grandes construtoras com empresas, ora é contrato do consumidor, quando há vulnerabilidade por parte do cliente (dono da obra). Essa vulnerabilidade existe para todas as pessoas físicas. [89]
Reforçamos a idéia de que será contrato de consumo, não só quando houver vulnerabilidade, mas também quando existir destinatário final fático e econômico não vulnerável. Tal idéia se harmoniza com a teoria finalista aprofundada do consumidor, pois nestes casos não há escopo produtivo.
Além do mais, demonstra que afirmações do tipo "nenhuma relação de consumo pode ser de competência da Justiça do Trabalho", defendidas pelos adeptos das teorias restritivas ao extremo, estão incorretas. "Talvez não houvesse uma formalização adequada da matéria, mas isso não desnatura a matéria envolvida na discussão. Mesmo antes da EC 45 a Justiça do Trabalho poderia aplicar o Direito do Consumidor nesses casos. [90]".
De acordo com o artigo 652, III, "a" da CLT, a Justiça do Trabalho seria competente apenas para julgar casos em que o empreiteiro fosse operário ou artífice. Contudo, após a promulgação da EC 45/04, tornou-se pacífico o entendimento de que a Justiça do Trabalho é competente para conhecer qualquer contrato de empreitada, desde que o trabalhador seja pessoa física, obviamente. Logo, um número ainda maior de relações de consumo se encontra sob a égide da Justiça do Trabalho, ainda que adotada a teoria restritiva.