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Distinção das espécies normativas à luz da teoria dos princípios

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10/04/2009 às 00:00
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4- HIERARQUIA E COLISÃO ENTRE AS ESPÉCIES NORMATIVAS

Seria utópico se o sistema jurídico fosse baseado somente em regras, com a aplicação da letra fria da lei, por meio da mera subsunção do fato à norma, sem margem para integração ou interpretação. A sociedade vive em constante e acelerada mutação não sendo possível a existência de textos legais de tão ampla cobertura. Da mesma forma, se o sistema fosse baseado somente em princípios, careceria de precisão, sendo que estaria sempre na dependência da utilização da ponderação para auferir se determinado comportamento/ situação violou ou não algum princípio.

Partindo do pressuposto de que as diferentes espécies normativas devem coexistir harmonicamente, devendo-se manter a ordem interior e unidade do Direito [29], é que muito contribui para as discussões empreendidas no presente estudo avaliar se há hierarquia entre os princípios e qual o caminho mais acertado em caso de conflito entre as espécies normativas.

De acordo com a teoria preconizada por Kelsen, o ordenamento jurídico é um sistema hierárquico de normas. Neste sentido, eis um trecho tradicionalíssimo da obra, "Teoria Pura do Direito", do citado autor:

A ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano, situadas umas ao lado das outras, mas é uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas. A sua unidade é produto da conexão de dependência que resulta do fato de a validade de uma norma, que foi produzida de acordo com outra norma, se apoiar sobre essa outra norma, cuja produção, por sua vez, é determinada por outra; e assim por diante, até bicar finalmente na norma fundamental – pressuposta. [30]

Segundo o posicionamento de Ávila, ao avaliar a problemática da hierarquização das normas constitucionais, o intérprete deve preocupar-se em saber qual norma deverá prevalecer em caso de conflito, assim caracterizado como contraposição concreta entre normas jurídicas. Deve o hermeneuta ater-se ainda em perquirir se algumas normas jurídicas possuem hierarquia superior (qual norma "vale mais" ou se "sobrepõe"?), bem como investigar quais são as relações de dependência existentes entre as normas jurídicas dentre de um sistema específico. [31]

Ávila lança pesada crítica sobre a tradicional noção de hierarquia que parte do conceito de ordenamento jurídico enquanto uma estrutura escalonada de normas, sustentando que este modelo é insuficiente para cobrir a complexidade das relações entre as normas jurídicas. É posicionamento do autor a respeito:

Com efeito, várias perguntas ficam sem resposta, segundo esse modelo. Quais as relações existentes entre as regras e os princípios constitucionais? São somente os princípios que atuam sobre as regras ou será que as regras também agem simultaneamente sobre o conteúdo normativo dos princípios? Quais são as relações existentes entre os próprios princípios constitucionais? Todos os princípios possuem a mesma função ou há alguns que ora predeterminam o conteúdo, ora estruturam a aplicação de outros? Quais são as relações entre as regras legais, já consideradas válidas, e os princípios e as regras de competência estabelecidos na Constituição? São somente as normas constitucionais que atuam sobre as normas infraconstitucionais ou será que essas também agem sobre aquelas? [32]

O autor propõe a substituição da tradicional noção de hierarquia, pautada em uma sistematização linear (norma superior constitui o fundamento da norma inferior), simples (baseada numa relação de hierarquia linear entre as normas) e não gradual entre duas normas jurídicas (normas estão, ou não, sistematizadas enquanto hierarquicamente postas), que tem sérias implicações no plano da validade das normas, por um novo modelo de sistematização circular (normas superiores condicionam as inferiores, e as inferiores contribuem para determinar os elementos das superiores), complexo (não há apenas uma relação vertical de hierarquia, mas várias relações horizontais, verticais e entrelaçadas entre as normas) e gradual (a sistematização será tanto mais perfeita quanto maior for a intesidade da observância dos seus vários critérios). O novo modelo teria conseqüências, não no plano da validade das normas, mas sim no plano da eficácia, razão pela qual propõe a substituição do postulado da hierarquia pelo da coerência. [33]

Interessante examinar ainda a problemática da hierarquia das normas jurídicas, especificamente no que diz respeito aos princípios constitucionais. Lima, citando Canotilho, se posiciona acertadamente no sentido de que inexiste hierarquia entre princípios constitucionais:

Do ponto de vista jurídico, é forçoso admitir que não há hierarquia entre os princípios constitucionais. Ou seja, todos as normas constitucionais têm igual dignidade; em outras palavras: não há normas constitucionais meramente formais, nem hierarquia de supra ou infra-ordenação dentro da Constituição, conforme asseverou CANOTILHO. Existem, é certo, princípios com diferentes níveis de concretização e densidade semântica, mas nem por isso é correto dizer que há hierarquia normativa entre os princípios constitucionais. Com efeito, como decorrência imediata do princípio da unidade da Constituição, tem-se como inadmissível a existência de normas constitucionais antinômicas (inconstitucionais), isto é, completamente incompatíveis, conquanto possa haver, e geralmente há, tensão das normas entre si. [34]

Efetivamente não há hierarquia entre princípios constitucionais, apesar do senso comum sobre a existência de princípios de maior ou menor importância, decorrendo essa gradação da sua utilização mais freqüente e do fato de, muitas vezes, uns englobarem outros. [35] Tavares confirma tal entendimento, na medida em que sustenta que "não há hierarquia normativa entre princípios (...). Não se pode pretender atribuir a um princípio superioridade apriorística, em relação a outro princípio, por força de algum valor relevante que no primeiro se vislumbre". [36]

A questão posta em discussão não é pacífica. Ataliba afirma que "mesmo no nível constitucional, há uma ordem que faz com que as regras tenham sua interpretação e eficácia condicionadas pelos princípios. Estes se harmonizam, em função da hierarquia entre eles estabelecida, de modo a assegurar plena coerência interna ao sistema (...)". [37] Por esta razão é que alguns princípios são considerados "irreformáveis", ou seja, estão imantados pela cláusula da inabolibidade, ao passo que outros podem ser, na forma do processo constitucional legislativo, suprimidos pelo poder constituinte derivado. [38]

Parecem mais acertadas as conclusões dos que acreditam que não há hierarquia entre os princípios constitucionais, apesar de serem dotados de diferentes níveis de concretização e densidade semântica. Isto porque, o princípio da unidade da Constituição, impede a existência de normas constitucionais antinômicas ou incompatíveis, podendo haver, por outro lado, tensão das normas entre si, que pode ser resolvida, mediante utilização do postulado da coerência, conforme proposta de Ávila que será tratada mais adiante.

Fixando-se a premissa de que não há hierarquia entre os princípios e regras, imperioso se faz avaliar outra questão tormentosa: a de se definir qual o melhor caminho a ser seguido no caso de conflito ou antinomia entre normas jurídicas, especialmente entre princípios.

Maria Helena Diniz, em sua obra acerca dos conflitos entre normas, define a antinomia como "a presença de duas normas conflitantes, sem que se possa saber qual delas deverá ser aplicada ao caso singular". [39]

Para Bobbio, no caso de conflitos entre regras há três critérios distintos para solução do problema: (i) critério cronológico (lex posterior derogat priori), o critério hierárquico (lex superior derogat inferiori) e, por último, o critério da especialidade (lex specialis derogat generali). Aplicando-se, por escolha do intérprete, um destes três critérios, verificar-se-á a validade da regra e sua conseqüente aplicação ao caso concreto, o que necessariamente implica na invalidade da outra regra conflitante. [40]

Os métodos propostos por Bobbio, apesar de altamente eficazes, não são absolutos, vez que as normas em conflito podem conter características também antinômicas. É o caso, por exemplo, de uma regra hierarquicamente superior conflitar com outra que é especial em relação a ela. Se aplicado o critério hierárquico prevalecerá uma norma, se aplicado o critério da especialidade, prevalecerá outra norma. Para estes casos, o autor não tratou de uma solução, sendo a doutrina praticamente unânime no sentido de que a controvérsia é resolvida por meio da aplicação dos princípios gerais de direito e noção de justiça, enquanto fim maior do direito.

No caso dos princípios constitucionais não há o que se falar em antinomias, pois em caso de conflito, não se pode afastar a aplicação de um em detrimento de outro. Como se admitiu linhas acima, isto é que não há hierarquia entre princípios, como então resolver os casos de colisão entre princípios?

Alguns critérios foram delineados pela doutrina estrangeira, os quais têm sido bem recepcionados no ordenamento jurídico pátrio. Um dos critérios mais aceitos é aquele desenvolvido por Hesse, qual seja o da concordância prática, segundo o qual os direitos fundamentais e valores constitucionais deverão ser harmonizados, no caso sub examine, por meio de juízo de ponderação que vise preservar e concretizar ao máximo os direitos e bens constitucionais protegidos. [41] Outros critérios, não menos importantes, e que já foram inclusive comentados no tópico anterior, são aqueles preconizados por Dworkin e Alexy, podendo ser também ser utilizados nestes casos.

Lima assim se posiciona sobre a correta forma de aplicação dos critérios para solução de conflitos entre princípios:

A nosso ver, essas duas soluções (concordância prática e dimensão de peso e importância) podem e devem ser aplicadas sucessivamente, sempre tendo o princípio da proporcionalidade como "parâmetro": primeiro, aplica-se a concordância prática; em seguida, não sendo possível a concordância, dimensiona-se o peso e importância dos princípios em jogo, sacrificando, o mínimo possível, o princípio de "menor peso". [42]

Um dos critérios de distinção entre as espécies normativa aceito por boa parte da doutrina é o do "conflito normativo", segundo o qual a antinomia entre as regras consubstancia verdadeiro conflito a ser solucionado por meio da declaração de invalidade de uma das regras ou com a criação de uma exceção, ao passo que havendo conflito entre princípios, deve-se decidir mediante uma ponderação que atribui uma dimensão de peso a cada um deles. [43]

Ávila, de maneira bastante convincente, simplesmente desconstrói a tese dos autores defensores da ponderação enquanto método privativo dos princípios, demonstrando que ela pode ser utilizada também no caso de conflito entre regras, as quais podem entrar em rota de colisão em alguns casos, sem, contudo, perder sua validade, dependendo a solução da atribuição de peso maior a uma delas. [44] Tece também severas críticas a teoria de Dworkin, defendendo que não é coerente afirmar que somente os princípios possuem uma dimensão de peso. Do mesmo modo, a aplicação de regras exige o sopesamento de razões, cuja importância será atribuída pelo aplicador. São justamente as decisões que atribuem aos princípios um peso em função do caso concreto. [45]

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Ávila dá exemplos verdadeiramente capazes de confirmar sua tese. Um deles é genial, justamente porque suscita a aplicação de uma regra do Direito Penal, que privelegia o princípio da tipicidade cerrada, de cunho eminentemente positivista. É o caso da aplicação do Art. 224 do Código Penal, pelo qual a relação sexual praticada com menor de 14 (quatorze) anos deve-se ter por presumida a violência. Todavia, independentemente do teor do texto legal, o Supremo vem considerando "circunstâncias particulares não previstas pelas normas", tais como a aquiescência da vítima e sua aparência física e (ou) mental de pessoa com idade superior ao limite do tipo. [46]

Realmente a questão posta em exame não é das mais pacíficas. Afonso da Silva discorda do posicionamento de Ávila, ao afirmar que "ser passível ou carente de interpretação" é uma característica de textos que exprimem tanto regras quanto princípios. Mas "ser passível ou carente de sopesamento" é característica exclusiva dos princípios. [47]

A pesquisa acerca da hierarquia e conflitos entre as normas jurídicas é inesgotável. O tema é de relevância indiscutível para a compreensão do constitucionalismo moderno, do pós positivismo e das técnicas de interpretação, notadamente a sistêmica. Todavia, não restam dúvidas de que tanto os princípios quanto as regras contrapostas devem ser sopesados, e neste sentido, são preciosas as contribuições de Ávila, ao invocar a importância dos postulados para o aplicador do direito na solução de antinomias.


5- OS POSTULADOS NORMATIVOS

Os postulados são considerados como terceira espécie normativa de acordo com "Teoria dos Princípios" de Ávila, que veio quebrar o paradigma clássico e dicotômico defendido por Alexy e Dworkin. Na visão do autor, uma vez que os postulados não se enquadram nas tradicionais definições de princípios e regras, merecem tratamento diferenciado.

Os postulados são diferentes dos princípios e das regras, por não se situarem no mesmo nível de aplicação. Enquanto os postulados orientam a aplicação de outras normas, os princípios e regras são o próprio objeto da aplicação. Além disso, não possuem os mesmos destinatários, pois os princípios e regras são dirigidos primariamente ao Poder Público e contribuintes, ao passo que os postulados são dirigidos para o intérprete e aplicador do direito. Por isso é que se qualificam como "metanormas" ou "normas de segundo grau". [48] Nos dizeres de Cruz, "os postulados devem ser entendidos como elementos sem os quais soçobram a coerência, a integridade e a consistência do Direito". [49]

Mas os postulados normativos não funcionam como qualquer norma que fundamenta a aplicação de outra, como também é o caso dos sobreprincípios, tais como os princípios do Estado de Direito e do devido processo legal. A diferença é que os sobreprincípios situam-se no próprio nível das normas de aplicação, e não no nível das normas que estruturam efetivamente (e não somente fundamentam) a aplicação de outras. [50]

O autor defende a existência de dois tipos de postulados: os meramente hermenêuticos, que são aqueles destinados a compreensão em geral do Direito, e os aplicativos, cuja função é estruturar a correta aplicação de outras normas.

Como exemplos de postulados hermenêuticos, cite-se: (i) o postulado da unidade do ordenamento jurídico, o qual exige do intérprete o relacionamento entre a parte e o todo mediante emprego das categorias da ordem e unidade; (ii) o postulado da coerência, que impõe ao intérprete a obrigação de relacionar determinadas normas com outras que lhes são superiores; e (iii) o postulado da hierarquia, que requer a compreensão do ordenamento como uma estrutura escalonada de normas. [51]

Entre os principais postulados aplicativos, destacam-se: (i) postulado da razoabilidade; (ii) postulado da proporcionalidade; e (iii) postulado da proibição de excesso. A aplicação de uma norma (regra/princípio) seria razoável quando atendesse o fim a que ela se destina, seria proporcional quando encontrasse um equilíbrio entre o bem realizado e o sacrificado e seria não excessiva quando evitasse sacrificar um bem desnecessariamente ou mais que o necessário. [52]

Ousamos, novamente, discordar das lições de Ávila. Ora, não se pode ignorar que os postulados da razoabilidade e proporcionalidade, na classificação do autor, são nítidas manifestações da própria justiça no plano concreto. Nesta esteira, revelam, assim como os princípios, um estado ideal de coisas ou um fim a ser alcançado pelo aplicador do direito, sendo desprovida de qualquer relevância prática a classificação destas espécies enquanto postulados normativos.

Para Humberto Ávila, não pode haver violação de tais postulados, na medida em que violadas são as normas ou princípios que deixaram de ser corretamente aplicados. [53]

Pode-se também afirmar que os postulados não funcionam da mesma maneira, pois alguns são aplicáveis incondicionalmente e outros dependem da existência de determinados elementos, pautando-se por determinados critérios. Como exemplo de postulados inespecíficos (incondicionados), destaca-se a ponderação, a concordância prática e a proibição de excesso. Como exemplo de postulados específicos (condicionados) aponta-se a igualdade, a razoabilidade e a proporcionalidade. [54]

Em verdade, não se pode negar que a Teoria dos Princípios de Humberto Ávila é inovadora, porquanto traz uma inusitada distinção entre as espécies normativas. O autor abandona a tradicional distinção entre princípios e regras, e sustenta que independentemente da denominação que se empreenda, o importante é reconhecer a diferente operacionalidade dos postulados, enquanto deveres estruturantes da aplicação de outras normas.

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Sobre a autora
Rosíris Paula Cerizze Vogas

Advogada, especialista em Direito Tributário pelo IBET, especialista em Direito Empresarial pela UFU/MG, mestranda em Direito Empresarial pela Faculdade de Direito Milton Campos/MG, professora universitária

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VOGAS, Rosíris Paula Cerizze. Distinção das espécies normativas à luz da teoria dos princípios. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2109, 10 abr. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12597. Acesso em: 18 abr. 2024.

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