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Distinção das espécies normativas à luz da teoria dos princípios

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10/04/2009 às 00:00
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SUMÁRIO: 1- Introdução. 2- A Força Normativa dos Princípios e o Conceito de Norma Jurídica. 3- Por uma Distinção entre Princípios e Regras. 4- Hierarquia e Colisão entre Espécies Normativas. 5- Os Postulados Normativos. 6- Os Elementos Estruturantes do Sistema Jurídico 7- Considerações Finais. 8- Referências.

RESUMO

O direito contemporâneo é palco de verdadeira quebra de paradigmas clássicos em torno do conceito, normatividade e hermenêutica dos princípios, em especial, da sua relevância para a compreensão da estrutura lógico-argumentativa das normas jurídicas. O presente estudo enfatiza a valiosa "Teoria dos Princípios" de Humberto Ávila, que superou a tradicional classificação dicotômica das espécies normativas enquanto princípios e regras, por meio da apresentação dos postulados normativos como normas de segundo grau. O tema é pulsante, já que a compreensão das distinções entre as espécies normativas e seus respectivos critérios é condição indispensável para a garantia da ordem e unidade do sistema jurídico.

Palavras - Chave: Norma Jurídica, Princípios, Regras, Postulados, Sistema

ABSTRACT

The contemporary Law is scene for the real breach of classical paradigms around the concept,  rules and hermeneutics principles, mainly the relevance for the comprehension of the argumentative-logical structure of legal rules. This study emphasizes the valuable "Principles Theory" from Humberto Ávila, that overcame the traditional dichotomous classification of the rule species as principles and rules, through the presentation of normative postulates as second degree rules. The theme is intense, as the understanding of distinctions between the rule species and their normative criteria is an indispensable condition to guarantee the order and unity of the law system.

Key Words: Legal Rules, Principles, Rules, Postulates, System


1- INTRODUÇÃO

O direito brasileiro contemporâneo (ou pós- moderno, como preferem alguns) vive um momento marcado por acentuada preocupação com a principiologia. Após a promulgação de Carta Magna de 1988, onde os dispositivos constitucionais são dotados de plena normatividade, a Lei Fundamental e seus princípios, deram novo alcance e sentido a todos os ramos jurídicos.

A consciência acerca do papel normativo dos princípios vem crescendo entre os estudiosos do direito, tendo adquirido enorme importância no cenário atual, reclamando dos juristas todo o esforço para garantir a sua aplicabilidade e efetividade, bem como despertando o interesse no estabelecimento de critérios distintivos entre as espécies normativas.

Verifica-se que a maioria da doutrina nacional insistiu por muito tempo em concordar e reproduzir as teses defendidas por alguns pensadores (Larenz, Dworkin, Alexy, Canotilho, etc.) da temática dos princípios, o que acabou por retardar o reconhecimento da sua força normativa, principalmente no caso dos princípios constitucionais, que hoje sim, passaram a ter aplicação direta e imediata.

Alguns esforços isolados foram empreendidos neste sentido, como é o caso do Prof. Humberto Ávila, marco teórico deste singelo estudo, que com sua inovadora "Teoria dos Princípios", representou uma quebra de paradigmas do modelo dual que vinha sendo sustentado em prol de uma distinção entre as espécies normativas. A contribuição notável do autor será aqui analisada apenas com ares de recensão, sem qualquer pretensão de propor algo diferente de tudo o que já foi escrito.

A proposta deste trabalho é, inicialmente, apresentar as teorias que sedimentaram o reconhecimento da força normativa dos princípios, bem como evidenciar o conceito de norma jurídica. A partir daí, será feito um exame detido das diferenças entre as espécies normativas, dando especial atenção às críticas lançadas por Ávila à dogmática tradicional e sua proposta de distinção, destacando também o papel dos postulados no ordenamento jurídico. Serão feitas algumas reflexões sobre o já ultrapassado conceito de ordenamento jurídico sustentado por Kelsen, enquanto uma estrutura escalonada e hierarquizada de normas jurídicas. Far-se-á também uma análise sobre os caminhos para a resolução de conflitos entre espécies normativas. E por fim, buscar-se-á identificar quais são os verdadeiros elementos estruturantes do sistema jurídico, que se prestam a garantir a sua composição ordenada e harmônica, encarando a teoria do pensamento sistemático preconizada por Canaris.

Surge daí a necessidade de manter vivo este incandescente debate, sendo que apesar da vasta doutrina sobre o tema, há muito que se produzir, estando ainda diversos aspectos das mais diversas teorias carentes de reflexões mais sérias e profundas.


2- A FORÇA NORMATIVA DOS PRICÍPIOS E O CONCEITO DE NORMA JURÍDICA

Antes de ingressar na discussão central deste estudo, são necessárias algumas reflexões acerca do conceito de norma jurídica e do já cediço reconhecimento da força normativa dos princípios.

Por isto é que neste trabalho serão tratadas as distinções entre princípios e regras, enquanto espécies normativas, classificação sedimentada na doutrina, em que pesem as imperdoáveis confusões em que ainda incorrem alguns juristas da atualidade ao igualar regras a normas ou mesmo dissociar os princípios das normas. Nada mais incoerente, na medida em que tanto os princípios quanto as regras impõem um dever-ser.

Sustentando a força normativa dos princípios, Bobbio os insere no conceito amplo de normas:

Os princípios gerais são apenas, a meu ver, normas fundamentais ou generalíssimas do sistema, as normas mais gerais. A palavra princípios leva a engano, tanto que é velha questão entre juristas se os princípios gerais são normas. Para mim não há dúvida: os princípios gerais são normas como todas as outras. E esta é também a tese sustentada por Crisafulli. Para sustentar que os princípios gerais são normas, os argumentos são dois, e ambos válidos: antes de mais nada, se são normas aquelas das quais os princípios gerais são extraídos, através de um procedimento de generalização sucessiva, não se vê por que não devam ser normas também eles: se abstraio da espécie animal obtenho sempre animais, e não flores ou estrelas. Em segundo lugar, a função para qual são extraídos e empregados é a mesma cumprida por todas as normas, isto é, a função de regular um caso. E com que finalidade são extraídos em caso de lacuna? Para regular um comportamento não-regulamentado: mas então servem ao mesmo escopo que servem as normas. E por que não deveriam ser normas? [01]

Para Espíndola, os princípios são normas jurídicas, possuindo, assim, "positividade, vinculatividade, caráter obrigatório" e que comportam "eficácia positiva e negativa sobre comportamentos", contribuindo para a "interpretação e a aplicação de outras normas, como as regras e outros princípios derivados de princípios de generalizações mais abstratas". [02]

O reconhecimento da eficácia normativa dos princípios, os quais são dotados de maior densidade valorativa, é conseqüência da pós-modernidade, que demanda um conjunto normativo mais flexível e aberto à subjetividade do aplicador do Direito. Já as regras, dotadas de reduzida carga valorativa, não realizam os anseios de justiça e legitimidade de uma sociedade em cuja estrutura social vacilam as certezas existenciais e multiplicam-se as incertezas ético-filosóficas. Nesse contexto, os princípios realizam simultaneamente a reflexão acerca dos deveres dos indivíduos e a normatização da vida social, razão pela qual se exige do hermeneuta jurídico o percurso de um caminho mais longo entre a abstração principiológica e a realização da justiça no caso concreto, através da argumentação e da motivação mais elaborada de seus atos. [03]

É possível concluir que na atual classificação pós- positivista norma é o gênero do qual são espécies as regras e os princípios. E se isso já foi tomado por verdade pela maciça doutrina moderna, não havendo mais tanta discussão quanto havia em outros tempos, por qual motivo os Tribunais ainda insistem em não reconhecer a força normativa dos princípios? Há quem afirme que os princípios isoladamente não podem fundamentar uma pretensão jurídica em juízo. Existem também aqueles que sustentam que um princípio não é direito líquido e certo capaz de dar ensejo a um mandado de segurança baseado exclusivamente em princípios. Ora, isto ainda acontece é porque os nossos juristas ainda não dão o devido valor à força normativa dos princípios. [04]

Para ressaltar a importância do reconhecimento da normatividade dos princípios, é que se transcreve a seguir importante conclusão de Bonavides:

Tudo quanto escrevemos fartamente acerca dos princípios, em busca de sua normatividade, a mais alta de todo o sistema, porquanto quem os decepa arranca as raízes da árvore jurídica se resumem no seguinte: não há distinção entre princípios e normas, os princípios são dotados de normatividade, as normas compreendem regras e princípios, a distinção relevante não é, como nos primórdios da doutrina, entre princípios e normas, mas entre regras e princípios, sendo as normas o gênero, e as regras e os princípios a espécie.

Daqui já se caminha para o passo final da incursão teórica: a demonstração do reconhecimento da superioridade e hegemonia dos princípios na pirâmide normativa; supremacia que não é unicamente formal, mas sobretudo material, e apenas possível na medida em que os princípios são compreendidos e equiparados e até mesmo confundidos com os valores, sendo, na ordem constitucional dos ordenamentos jurídicos, a expressão mais alta da normatividade que fundamenta a organização do poder. [05]

Nesta esteira, a qualificação de determinadas normas como princípios ou como regras, depende da colaboração constitutiva do intérprete. Para tanto, como bem salientado por Ávila, é preciso ter em mente que "normas não são textos nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos". Não existe correspondência entre norma e dispositivo. Isto é, nem sempre que houver um dispositivo haverá uma norma e vice versa. O autor sustenta sua posição invocando os princípios da segurança jurídica e certeza do direito, os quais são normas que não têm dispositivos específicos para lhes dar suporte físico. [06]

Neste ponto, ousamos discordar da posição de Ávila, apesar do enorme admiração e respeito por sua "Teoria dos Princípios". O autor acaba por acolher doutrina [07] que concebe a possibilidade de norma sem base em enunciados prescritivos. Preferimos a posição do Prof. Paulo de Barros Carvalho que assim leciona:

Sucede que as construções de sentido têm de partir da instância dos enunciados lingüísticos, independentemente do número de formulações expressas que venham a servir-lhe de fundamento. Haveria, então, uma forma direta e imediata de produzir normas jurídicas; outra, indireta e mediata, mas sempre tomando como ponto de referência a plataforma textual do direito posto. [08]

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Certo é que a norma jurídica não se encontra enraizada apenas no enunciado prescritivo, ou seja, no texto legal, oriundo exclusivamente de um ato emanado de fonte autorizada. A norma jurídica surge sim, da interpretação, da conjugação entre a sua programação de variantes semiológicas e dos dados concretos que se propõe elucidar, ou seja, o seu âmbito de realidade. [09]

Fixar estas premissas tem relevância prática na compreensão do direito. Uma vez que os dispositivos são os pontos de partida para a construção de normas pelo intérprete é que não se pode concluir que determinado texto legal contém uma regra ou um princípio. E neste aspecto, Ávila está correto ao afirmar que a qualificação de uma espécie normativa depende muito mais das conexões axiológicas que são construídas pelo próprio intérprete. Mas, incorre em equívoco ao afirmar que tais conexões são independentes do texto legal [10]. Isto porque não se pode perder de vista, em momento algum, que o dispositivo textual deve ser justamente o ponto de referência do aplicador do direito para solucionar um caso concreto.

Carvalho, citando o ilustre Prof. Sacha Calmon Navarro Coelho, demonstra que há muito a importância da distinção entre texto e norma jurídica já era objeto de preocupação da doutrina: "Frise-se que a norma – produto do universo legislado – se não confunde com seus veículos, os entes positivos (leis, decretos – leis, etc.). Tampouco se confunde com as proposições jurídicas que a ciência do direito produz ao descrever a norma, sob a forma, quase sempre de juízos hipotéticos." [11]

Assim, a norma jurídica é exatamente o juízo (ou pensamento) que a leitura do texto provoca em nosso espírito. Um único texto pode originar significações diferentes, de acordo com as mais diversas noções que o intérprete tenha dos termos empregados pelo legislador. O fato é que o termo "norma" pode assumir uma multiplicidade de significados, dada a sua largueza semântica, que continua a comportar ambigüidades.

Os positivistas compreendiam a norma como juízo hipotético condicional, isto é, "se ocorrer o fato X, então deve ser a prestação Y" [12]. Assim, toda norma jurídica, enquanto juízo hipotético condicional deveria ser composta por uma hipótese ou descritor e uma conseqüência ou prescritor. O elo de ligação entre estes dois elementos da norma jurídica, hipótese e conseqüência, é o dever-ser ou deôntico. Desta maneira, realizado o fato previsto no suposto, instaura-se, automaticamente, a conseqüência. De forma bastante sintética, ocorrendo a subsunção do fato à norma (ocorrência no mundo fenomênico do evento descrito na hipótese na norma jurídica), inevitavelmente os efeitos da norma jurídica, presentes no conseqüente da mesma, nascerão, surgindo para o sujeito passivo o dever de cumprimento de um dos modais deônticos (proibido, permitido e obrigado).

Tal posicionamento encontra-se superado na atualidade, na medida em que confere verdadeira primazia da lei na solução dos conflitos e um papel secundário aos princípios, sendo aplicados tão somente em caso de eventuais lacunas da lei, no desempenho de uma função meramente supletiva.

Ávila acredita que o fenômeno da subsunção do fato a norma é típico (o que é diferente de ser exclusivo) das regras e não dos princípios, que segundo o autor, são normas finalísticas, para cuja aplicação demanda uma avaliação da correlação entre os estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção [13]. Ademais, existem outros tipos de normas, qualificadas como de segundo grau, que não se limitam a determinar condutas obrigatórias, permitidas e proibidas ou mesmo estabelecer um fim a ser atingido. São os postulados, que servem como parâmetro para a realização de outras normas.

Fica claro, portanto, que o atributo da normatividade não é exclusividade das proposições jurídicas. Nesse diapasão, registre-se o pensamento pós- positivista de Leite:

É indiscutível que os princípios desempenham esse papel orientador na ordem jurídica, mas sua relevância não se adstringe a esse aspecto diretivo. De fato, no estágio atual de sua compreensão, a sua elevada generalidade não lhes retira a capacidade de solver situações fáticas controvertidas, posto que são considerados, não como simples pautas valorativas, senão como autênticas normas jurídicas, conforme se verá. (...) Os princípios, frise-se, são normas jurídicas que impõem um dever- ser, dotados de cogência e imperatividade, não podem ser relegados aos casuísmos de quem quer que seja, posto que são a própria essência e substância da consciência jurídica presente em determinado seio coletivo. (...) [14]

Não restam dúvidas de que os princípios têm eficácia normativa, tendo sido superada a crença de que teriam uma dimensão puramente axiológica, ética, sem eficácia jurídica ou aplicabilidade direta e imediata. Tal conclusão reflete diretamente na superação da dogmática jurídica tradicional, aquela desenvolvida sob o mito da objetividade do Direito e da neutralidade do intérprete. Na verdade, esta evolução do pensamento jurídico, muito marcada pela ascensão dos valores, vai ao encontro do pós- positivismo, que ultrapassa o estrito legalismo, sem ter de recorrer às categorias da razão subjetiva do jusnaturalismo. [15]

Feitas estas considerações preliminares, passar-se-á ao exame detido da distinção entre as espécies normativas à luz da "Teoria dos Princípios" de Humberto Ávila, fazendo-se mais uma recensão às valiosas contribuições trazidas pelo autor para a ciência jurídica contemporânea, do que tentando propor algo diferente de tudo que já foi produzido a respeito.


3- POR UMA DISTINÇÃO ENTRE REGRAS E PRINCÍPIOS

Partindo do pressuposto de que não mais restam dúvidas acerca da eficácia normativa dos princípios, serão examinadas as principais propostas de distinção entre os conceitos de regras e princípios, enquanto espécies do gênero norma jurídica. Para tanto, é válida a exposição de um breve panorama evolutivo dos critérios de distinção propostos pela boa doutrina ao longo dos tempos.

Para Larenz, os princípios estabelecem fundamentos normativos para a interpretação e aplicação do direito, deles decorrendo, direta ou indiretamente, normas de comportamento. São pensamentos diretivos, e não regras suscetíveis de aplicação, pois lhes falta caráter de proposição jurídica, isto é, a conexão entre uma hipótese de incidência e de uma conseqüência jurídica. [16]

No mesmo sentido, Canaris, discípulo de Larenz, leciona que os princípios possuem conteúdo axiológico explícito e carecem, por isso, de regras para sua concretização. Os princípios, ao contrário das regras, recebem seu conteúdo de sentido somente por meio de um processo dialético de complementação e limitação. [17]

Dworkin inaugurou o paradigma contemporâneo da teoria dos princípios, buscando proceder à distinção por meio do modo de operação e aplicação das regras e dos princípios. O autor entende que regras são aplicadas ao "modo ou tudo ou nada". Se uma hipótese de incidência de uma regra é preenchida, ou é a regra válida e a conseqüência normativa deve ser aceita ou não é considerada válida. No caso de colisão de regras, uma delas deve ser considerada inválida. Os princípios, ao contrário das regras, possuem uma "dimensão de peso" demonstrável na hipótese de colisão entre princípios, caso em que o de maior peso se sobrepõe ao outro sem perder sua validade. [18]

A posição de Alexy é bastante parecida com a de Dworkin. Para ele, a diferença entre as duas espécies normativas é de índole qualitativa. Os princípios jurídicos consistem apenas em uma espécie de norma jurídica, por meio da qual são estabelecidos "deveres de otimização" aplicáveis em vários graus, segundo as possibilidades normativas e fáticas, ou seja, os princípios impõem que algo seja realizado "na medida do possível". [19]

Canotilho também oferece alguns critérios para diferenciar os princípios das regras:

a) grau de abstração - os princípios possuem um grau de abstração relativamente elevado, ao passo que as regras têm esse grau relativamente baixo; b) grau de determinabilidade na aplicação do caso concreto - em decorrência do alto grau de abstração dos princípios, eles reclamam mediações para serem aplicados, enquanto a regras podem ser aplicadas diretamente; c) caráter de fundamentalidade no sistema das fontes do direito - os princípios desempenham um papel fundamental no ordenamento jurídico, por causa de sua posição hierárquica superior ou por força de sua importância estruturante no sistema jurídico; d) proximidade da idéia de direito - os princípios são "standards" juridicamente vinculantes, decorrentes de exigência da "justiça", enquanto que as regras podem ter um conteúdo meramente funcional; e) natureza normogenética - os princípios são fundamento das regras, daí terem uma função normogenética. [20]

A exposição dos pensamentos de alguns dos principais autores que já se preocuparam em empreender uma distinção acerca das espécies normativas comprova que os métodos e critérios estão em visível transição de paradigmas. Nesse diapasão é que se revela de extrema utilidade o enfoque crítico de Ávila, que apresentou modos de aperfeiçoamento aos padrões teóricos até então predominantes.

Porém, antes o autor avaliou detidamente os principais critérios de distinção de maior repercussão na dogmática jurídica, quais sejam: (i) o critério de caráter hipotético-condicional; (ii) o critério do modo final de aplicação; e (iii) o critério do conflito normativo.

O primeiro critério de distinção, pautado no caráter hipotético-condicional, distingue princípios e regras a partir dos elementos, hipótese de incidência e conseqüência. Para tal corrente, estes elementos se acham presentes nas regras, enquanto que os princípios, diferentemente, apenas indicam o fundamento a ser utilizado pelo aplicador para, a partir daí, encontrar a regra aplicável ao caso concreto. [21]

A crítica lançada a este critério é no sentido de que a existência de hipóteses de incidência nas regras é mera questão de formulação lingüística e não traço distintivo de espécies normativas. Existem princípios que também revelam proposições jurídicas ao modo, "Se, Então". Cite-se como exemplo, o princípio da anterioridade. Se determinada lei estabelecer a exigência de tributo no mesmo exercício da lei que o institui, então, tal norma deverá ser declarada inconstitucional. Além disso, o fato de um dispositivo ter sido elaborado seguindo os trâmites do devido processo legislativo não impede o aplicador do direito de entendê-lo como princípio, justamente porque cabe ao intérprete a apreensão do sentido do texto da lei, traduzindo-o como norma jurídica, a ser qualificada ou como princípio ou como regra. [22]

Assim, qualquer texto legal pode ser reformulado de modo a apresentar uma hipótese e uma conseqüência, o que poderia levar ao equívoco de se concluir que toda norma seria uma regra. Nada mais absurdo.

O segundo critério, pautado no modo final de aplicação, leva em consideração a forma como os princípios e as regras são aplicados ao caso concreto. As regras seriam aplicadas ao modo "tudo ou nada", enquanto os princípios seriam aplicados de maneira "mais ou menos gradual". Esta corrente é a defendida por Dworkin e Alexy, tendo sofrido severas críticas de Ávila. Uma delas é o fato de que nem sempre a conseqüência de determinada norma vai ser implementada de forma absoluta, mesmo tendo sido preenchidos todos os requisitos da situação hipotética respectiva. Outras razões podem se sobrepor àqueles requisitos e contribuir para que, ainda assim, não seja configurado aquele tipo normativo. [23]

Um exemplo seria o caso de uma regra que prevê a aplicação de multa para os condutores que ultrapassarem a velocidade de 70 Km/ h em determinada rodovia. Ora, e se um veículo estiver conduzindo uma mulher grávida em regime adiantado de parto? O aplicador da lei pode, naturalmente, entender que a vida da mãe e da criança são valores mais importantes a serem preservados. Assim, mesmo que o condutor tenha preenchido a situação prevista na hipótese, qual seja, ultrapassar a velocidade máxima permitida, por razões não previstas na regra, poderá se ver desobrigado ao cumprimento da obrigação estabelecida na conseqüência normativa.

Quanto ao terceiro critério pautado no conflito normativo, o mesmo será abordado com maior ênfase no tópico seguinte, que trata especificamente da colisão entre as espécies normativas.

Ao cabo de todas as críticas levadas a efeito por Ávila, o autor propõe outros critérios distintivos e uma nova proposta de classificação das espécies normativas, partindo do pressuposto que um ou vários dispositivos podem experimentar, simultaneamente, uma dimensão imediatamente comportamental (regra), finalística (princípio) e/ou metódica (postulado), a depender das conexões axiológicas do intérprete. E assim, supera o tradicional modelo dicotômico de classificação das espécies normativas entre regras/ princípios, adotando um modelo tricotômico, por meio da dissociação entre regras/princípios/postulados, estes últimos entendidos como "instrumentos normativos metódicos", os quais serão tratados em tópico especifico neste estudo. [24]

O primeiro critério distintivo proposto por Ávila é quanto ao "modo como as espécies normativas prescrevem o comportamento", pelo qual é possível concluir que as regras não se excluem, mas antes, se complementam. Eis a claríssima definição nas palavras do autor:

Enquanto as regras são normas imediatamente descritivas, na medida em que estabelecem obrigações, permissões e proibições mediante a descrição da conduta a ser adotada, os princípios são normas imediatamente finalísticas, já que estabelecem um estado de coisas para cuja realização é necessária a adoção de determinados comportamentos. Os princípios são normas cuja qualidade frontal é, justamente, a determinação da realização de um fim juridicamente relevante, ao passo que característica dianteira das regras é a previsão do comportamento. [25]

Outro critério distintivo apresentado é o da "natureza da justificação exigida", que leva em consideração a avaliação feita pelo intérprete e aplicador do direito ao confrontar o caso concreto com o dispositivo legal. Deve-se avaliar a correspondência entre a descrição do caso concreto e a descrição hipotética da regra. Os princípios, por sua vez, exigem uma correlação entre o estado de coisas que se busca atingir e os efeitos da conduta no caso concreto. [26]

Por fim, um último critério apontado por Ávila é o que distingue as espécies normativas "quanto ao modo como contribuem para a decisão". Neste sentido, as regras distinguem-se dos princípios na medida em que aquelas consistem em "normas preliminarmente decisivas e abarcantes", uma vez que visa abranger todos os aspectos relevantes para se tomar a decisão. Já os princípios são "normas com pretensão de complementaridade e de parcialidade", pois não têm a pretensão de gerar uma solução específica, mas apenas contribuir, ao lado de outras razões, para a tomada de decisão. [27]

De todos os critérios proposto por Ávila em prol de uma distinção coerente, este último é, sem dúvida, um tanto quanto impreciso. Isto porque, se a norma jurídica é a interpretação obtida a partir dos dispositivos legais, denota-se que para uns o texto pode exprimir uma regra e para outros pode revelar um princípio. Por isto mesmo é que os princípios, em alguns casos, podem sim fundamentar isoladamente uma tomada de decisão, independentemente de terem de ser invocadas razões complementares. Por exemplo, se determinada lei majorou um tributo, tendo aplicado seus efeitos retroativamente, pode sim o juiz pautar-se tão somente na inobservância do princípio da irretroatividade em matéria tributária para manter a eficácia prospectiva da norma jurídica.

Souza Cruz conclama os juristas a refletirem sobre a relevância prática da distinção entre as espécies normativas:

Nem a hermenêutica nem tampouco a teoria do discurso devem suportar essa dicotomia de espécies normativas e, sim, alardear uma mudança no paradigma da interpretação como um todo, pois fora de uma visão em torno da ponderação de valores, qual a utilidade de separar regras e princípios nos parâmetros atuais de nossa racionalidade? Negar uma distinção ontológica entre as espécies normativas implicaria a quadra atual do pensamento jurídico um retrocesso ao positivismo? Cremos sinceramente que não, eis que o essencial é construir uma ‘argumentação de princípios’, ou seja, calcada na filosofia da linguagem, concretista e aberta, livre, pois, dos padrões formalistas e subsuntivos do positivismo e da filosofia da consciência. [28]

Apesar da admiração pelas idéias trazidas por Souza Cruz, ainda que se admita não haver uma essencial diferença entre as espécies normativas, sendo princípios e regras textos normativos, deve-se reconhecer que é papel dos estudiosos do direito envidar esforços para garantir a sua aplicabilidade e efetividade, razão pela qual se torna sobremaneira relevante a delimitação de seus critérios distintivos.

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Sobre a autora
Rosíris Paula Cerizze Vogas

Advogada, especialista em Direito Tributário pelo IBET, especialista em Direito Empresarial pela UFU/MG, mestranda em Direito Empresarial pela Faculdade de Direito Milton Campos/MG, professora universitária

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VOGAS, Rosíris Paula Cerizze. Distinção das espécies normativas à luz da teoria dos princípios. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2109, 10 abr. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12597. Acesso em: 24 dez. 2024.

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