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Diretriz constitucional para políticas de salário mínimo

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O voluntarismo jurídico e o salário mínimo

Nesse quadro persistente de salário mínimo degradado, em 2002 aparecia ensaio produzido pelo grupo da constitucionalista Aldacy Rachid Coutinho (p. 221 a 253) descrevendo as desventuras do mínimo e projetando o impacto positivo de seus aumentos sobre a economia. Esse ensaio também destacava a importância do Poder Judiciário na realização do programa da Constituição e buscava reforçar a fundamentação para decisão judicial que enfrentasse o problema do salário mínimo na senda inaugurada entre nós por Lênio Streck,. Segundo esse autor ( apud Coutinho, 2002, p.233), a inadequação da lei que fixa o mínimo só pode ser resolvida pela tarefa criativa dos juízes, e os indivíduos encarregados de conduzir os processos democráticos necessitam de espírito crítico para compreender a complexidade da própria democracia, sob pena de a partir de uma formação dogmática e autoritária, construírem a antítese do processo democrático."

Percorrendo os sentidos da decisão do juiz, o texto resgata a idéia de que o magistrado não decide para depois buscar a fundamentação, mas que esta é a condição de possibilidade da decisão. Pretende-se, portanto, com âncora no texto constitucional, permitir a atuação criativa do Judiciário de modo a dar ao salário mínimo a dignidade que naturalmente lhe deveria pertencer.

Não se trata aqui de discutir essas idéias renovadoras cujos arautos são competentes professores. Todavia, a questão do mínimo, em sua formulação plena, toca toda a sociedade, todas as suas projeções fundamentais, de tal sorte que não seria um poder (que é mais uma função) e que tem natureza quase sempre funcional em relação ao modelo político-econômico posto que poderia trazê-la à baila e decidi-la.

Essa decisão pode até acontecer nos trabalhos da magistratura e se constituir em um dos momentos da vitalização do mínimo, mas ela não terá a menor condição de possibilidade, se fundamentos, para além dos fundamentos meramente jurídicos, não estiverem postos, se não houver a necessária correlação das forças políticas que o permita. Fora desse contexto, se cairia no que se poderia bem chamar de voluntarismo jurídico, o qual não teria senão existência meramente periférica em face da conservadora máquina judiciária e de suas decisões, ou, na melhor das hipóteses e no melhor do mundo, apenas produziria decisão ineficaz ou de baixíssima eficácia. O mínimo, como questão de amplitude total que é, diz respeito a todas as instituições que realmente contam, e não pode nem poderia ter a sua solução na movimentação meramente autopoiética do Poder Judiciário.


Conclusão

O texto da Constituição de 1988, comparado com os textos das Constituições anteriores que registraram a idéia de mínimo, deu mais precisão ao conceito de salário mínimo, respondendo ao novo momento político do país. Emprestou-lhe uma natureza, ao mesmo tempo, atual e programática. Passados vinte anos, observa-se, contudo, que a questão do mínimo ainda não recebeu solução consentânea com o texto constitucional. Durante esse período, o próprio conceito de salário mínimo sofreu ataques, os quais são basicamente os seguintes:

1) os aumentos substanciais do mínimo seriam apenas nominais;

2) o alcance dos aumentos do mínimo seria muito restrito;

3) o aumento substancial do mínimo implodiria necessariamente a previdência ;

4) não se poderia esperar que o trabalho de apenas um dos membros da família cobrisse o rol de necessidades previstas no conceito de salário mínimo.

a despeito dos ataques, o conceito seguiu solidamente implantado na Constituição, afinal suas raízes remontam à década de trinta. É um conceito que tem história e cobra a superação da dicotomia entre o chamado salário mínimo real e o salário mínimo necessário.8 A sua interpretação revela que, além de fazer parte da constituição social, é norma-diretriz da constituição econômica, esteja ou não lá.9 Eis onde exatamente se coloca como imposição programática para os Poderes executivo e legislativo. As conexões do conceito são, a uma só vez, tão profundas e amplas, que dificilmente ele poderia ser judicializado, pelo menos de modo a que suas exigências fossem razoavelmente atendidas. Sua solução e sua não solução seguem, portanto, essencialmente políticas.


Bibliografia

1)Bandeira, Moniz. O Governo João Goulart Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, 1977.

2) Canotilho, José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador. Coimbra: Coimbra Editora,1994.

3) Cardoso, Fernando Henrique. Cartas a um Jovem Político. Rio de Janeiro:Editora Alegro, 2006.

4) Coutinho, Aldacy Rachid et alii. "Direito Constitucional ao Salário Mínimo" in Revista Brasileira de Direito Constitucional, Curitiba, 2002.

5) D’Araújo, Maria C. e Castro, Celso, organizadores. Ernesto Geisel. 4ª edição, Rio de Janeiro: FGV, 1997.

6) Furtado, Adolfo. "Reflexões sobre a política de salário mínimo" in Cadernos Aslegis. Brasilia, 1999.

7) Furtado, Celso. Não à recessão e ao desemprego. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.

8) Ferreira, Oliveiros S. Vida e Morte do Partido Fardado. São Paulo: Editora Senac, 2000.

9) Maximiliano, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. Quinta edição. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1951.

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11) Peron, Juan Domingo, Obras Completas VOL.XXIII. Buenos Aires: Editora Projecto Hernanderias, 1974.

12) Prado Junior, Caio. História Econômica do Brasil. São Paulo: Editora Brasiliense,,1974.

13) Zica, Luciano in "Teoria e Debate", n. 71. São Paulo: editora Perseu Abramo, maio/junho de 2007.

Esse Texto foi publicado na coletânea Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira. Brasília, Edições Câmara, 2008.


Notas

01 Não se excluem aqui conflitos jurídicos, mas, como mostrarei adiante, a matéria é preponderantemente política.

2 Em Portugal, com o 25 de abril, as instituições do Poder Judiciário foram refundadas, aparecendo o Tribunal Constitucional de modo a garantir os fins da Constituição, por sua estrutura e composição. Esse não é o caso brasileiro, onde praticamente não há rupturas em nível do judiciário que sejam simétricas às rupturas políticas no sentido próprio.

3 O salário mínimo e outras medidas visando a melhorar a vida dos trabalhadores e consolidar o mercado interno no Brasil, como as anunciadas no famoso comício da Central, explicam as reações de militares como Ernesto Geisel:" O seu governo era faccioso, voltado inteiramente para os trabalhadores(...)" (D’Araújo, p. 141).

4 " Geralmente, os reajustes do salário mínimo resultam em benefício, como o aumento da renda do trabalhador, mas também produzem efeitos colaterais como o aumento do desemprego e da informalidade." Declaração à Folha de São Paulo, de 25 de maio de 2002, de Marcelo Néri, chefe do Centro de Políticas Sociais da FGV

5 O que se observa com a automação nos países desenvolvidos é exatamente o contrário. Os processos já não exigem a qualificação anteriormente requerida, pois são transferidos para a máquina.

6 Para ilustrar a distorção do modelo, é interessante notícia que o jornal O Estado de São Paulo publicava em 29 de maio de 2008: No melhor momento da sua história no País, a indústria automobilística foi a mais beneficiada pelos incentivos fiscais a investimentos concedidos pelo governo no pacote da nova política industrial. Dos R$ 6,1 bilhões em desonerações fiscais previstas para estimular os investimentos dos diversos setores da indústria até 2011, as montadoras e os fabricantes de autopeças vão ficar com R$ 3,2 bilhões, o que representa mais da metade (52,8%) dos subsídios.

"Não é justificável uma concentração tão significativa dos incentivos em um único setor", diz o economista Júlio Sérgio Gomes de Almeida, assessor do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi)e ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, autor do levantamento sobre a desoneração dos investimentos.

7 A opção do zoneamento ou plano diretor agrícolas das regiões produtoras poderia minorar o problema.(Zica, 2007, 38)

8 Salário mínimo necessário: Salário mínimo de acordo com o preceito constitucional "salário mínimo fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender às suas necessidades vitais básicas e às de sua família, como moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, reajustado periodicamente, de modo a preservar o poder aquisitivo, vedada sua vinculação para qualquer fim" (Constituição da República Federativa do Brasil, capítulo II, Dos Direitos Sociais, artigo 7º, inciso IV). Foi considerado em cada Mês o maior valor da ração essencial das localidades pesquisadas. A família considerada é de dois adultos e duas crianças, sendo que estas consomem o equivalente a um adulto. Ponderando-se o gasto familiar, chegamos ao salário mínimo necessário.

9 O intérprete "extrai da norma tudo o que na mesma se contém: é o que se chama interpretar, isto é, determinar o sentido e o alcance das expressões do direito( Maximiliano, p. 13)

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Sobre o autor
José Veríssimo Teixeira da Mata

advogado em Goiânia (GO)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MATA, José Veríssimo Teixeira. Diretriz constitucional para políticas de salário mínimo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2113, 14 abr. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12619. Acesso em: 25 abr. 2024.

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