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Competência material trabalhista.

Critério científico para interpretação do inciso I do artigo 114 da CF/88

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29/04/2009 às 00:00
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7 - Jurisdição internacional e imunidades: jurisdição e execução.

É princípio comezinho do direito das gentes que os entes soberanos não se submetem às ditames de outro ente igualmente soberano. A partir desta idéia as relações internacionais passaram a se desenvolver.

Nada obstante o princípio em comento, a Constituição Federal, desde a redação originária do artigo 114, atribuiu à Justiça do Trabalho competência para julgar as ações envolvendo os entes de direito público externo. Variadas posições surgiram para questionar e restringir essa competência constitucional.

Nessa linha de raciocínio, passou a ser de entendimento corriqueiro a existência de imunidades de jurisdição e execução de entes internacionais, de modo que a jurisprudência que primeiro se firmou foi pela impossibilidade de submissão dos entes ao Poder Judiciário nacional. Somente com expressa renúncia destes às imunidades é que se admitia a jurisdição. Em um segundo passo, firmou-se posição pela possibilidade de julgamento, sem necessidade de renúncia, mas para os atos de execução, que importariam ataque à soberania dos entes externos, a renúncia expressa continua a ser exigida pela maioria dos Tribunais e pelo c. STF.

Vejamos o posicionamento prevalente da maioria dos Tribunais:

"IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO - AÇÃO DE CONHECIMENTO E DE EXECUÇÃO TRABALHISTA E OS ENTES DE DIREITO PÚBLICO EXTERNO - A Constituição Federal de 1988, em seu art. 114, estabeleceu a competência da Justiça do Trabalho para conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores, abrangidos os entes de direito público externo. Como se denota, a partir da nova ordem constitucional, os entes de direito público externo sujeitam-se à jurisdição trabalhista brasileira. Portanto, quanto ao processo de conhecimento à competência é incontroversa, o que não ocorre quanto à execução trabalhista. Será que é possível a execução da sentença diante da impenhorabilidade pela jurisdição trabalhista quanto aos bens de uma embaixada brasileira? O art. 114 da Constituição Federal só assegura a jurisdição trabalhista para a ação de conhecimento, não se justificando a execução forçada contra o ente de direito público externo. Não há como se impor à execução forçada, com a penhora de bens do recorrente, sob pena de violação do seu território. A competência trabalhista, no máximo, estará circunscrita até o momento da exata liquidação do presente feito, com a prolação da sentença de liquidação pelo MM. Juízo a quo e com a expedição do ofício, observando-se o procedimento diplomático cabível." (TRT 2ª R. - RO 02791199644502006 - 4ª T. - Rel. Juiz Paulo Augusto Camara - DJSP 12.03.2004 - p. 227).

Muito embora o entendimento dominante da doutrina e jurisprudência seja pela imunidade de execução, salvo em caso de renúncia expressa, muitos dos organismos internacionais passaram a celebrar com o Brasil Tratados Internacionais com o escopo de positivar essa posição, entre eles a Convenção sobre Privilégios e Imunidades das Nações Unidas, da qual o Brasil é signatário e de igual forma a incorporou em nosso ordenamento por intermédio do Decreto 27.784/50.

Com objetivo de questionar a posição decantada, sempre fazemos a indigação se os referidos tratados internacionais, ratificados pelo Brasil, estão em consonância com o ordenamento constitucional?

Tentando responder esta pergunta, julguei ação deveras curiosa, na qual entendi pela inconstitucionalidade do referido tratado, motivo pelo qual conclui pela possibilidade de submeter os entes internacionais à jurisdição e execução.

Segue o resumo de minha fundamentação [17]:

É ponto pacífico na doutrina e jurisprudência pátria que os tratados internacionais que o Brasil seja signatário, após ratificados pelo Decreto Executivo e incorporados em nosso ordenamento, adquirem status de lei ordinária, vale dizer, mesmo após a sua admissão em nosso ordenamento, as normas internacionais devem guardar relação de dependência com as normas constitucionais, face à teoria triangular de HANS KELSEN, de onde a Carta Política de um povo irradia efeitos de validade para todas as demais normas do sistema.

Com efeito, se os tratados internacionais ratificados pelo Brasil, como é o caso do invocado pelo requerente (Decreto 27.784/50), afrontam qualquer norma ou princípio da Constituição Federal, estes devem ser declarados inconstitucionais, sem que isso signifique a denúncia internacional da avença.

O magistrado condutor do feito tem garantida a faculdade de analisar incidentalmente (incidenter tantum), em controle difuso de constitucionalidade, a compatibilidade material e formal hierárquica da legislação ordinária com à Carta Magna de 1988 e, em se constatando a incompatibilidade, declarar com efeitos inter partes a inconstitucionalidade do dispositivo invocado.

Na hipótese, a indigitada imunidade prevista no Decreto 27.784/50 – Convenção sobre Privilégios e Imunidades das Nações Unidas – afronta as normas e princípios mais comezinhos de proteção à pessoa do trabalhador, senão vejamos:

A dignidade da pessoa humana (inciso III do artigo 1º); os valores sociais do trabalho (inciso IV do artigo 1º); valorização do trabalho e justiça social (artigo 170); função social da propriedade (inciso III do artigo 170); busca do pleno emprego (inciso VIII do artigo 170), entre tantos outros.

A toda evidência a normatização ordinária afronta os ditames da Constituição, quando quer obter o benefício de aproveitar da força de trabalho do operário e após invoca a imunidade para não quitar as verbas devidas, razão pela qual não há outra conclusão que não àquela que a imunidade de jurisdição e execução, além de ser deveras discutível juridicamente, por isso a existência de decisões vacilantes, é flagrantemente inconstitucional.

Nesse particular, faço minhas as lições de CARLOS MAXIMILIANO [18]:

"A Constituição é a ossatura de um sistema de governo, um esqueleto de idéias e princípios gerais, que formam o núcleo, o credo, o dogma fundamental de um regime, o diálogo político de um povo. Não pode especificar todos os direitos, nem mencionar todas as liberdades. A lei ordinária, a doutrina e a jurisprudência completam a obra, sem desnaturá-la, revestindo e não deformando, o arcabouço primitivo. Nenhuma inovação se tolera em antagonismo com a índole de regime, nem com os princípios firmados pelo código supremo. Portanto, não é constitucional apenas o que está escrito no estatuto básico, e sim o que deduz do sistema por ele elastecido, bem como o conjunto de franquias dos indivíduos e dos povos universalmente considerados.".

De outro giro, acrescento que a idéia de imunidade está vincada na garantia da soberania territorial dos Estados internacionais, de forma que é vedada a interferência da jurisdição alienígena nos limites territoriais do ente internacional, o qual não se submete à execução da Justiça brasileira, quando esta pretenda adentrar em território internacional, assim também considerados as embaixadas e demais bens imóveis fincados em solo nacional.

Ocorre que a presente execução se processa em território nacional, sem determinação de qualquer ordem que golpeie a soberania do ente internacional, pelo que é juridicamente possível o seu prosseguimento.

Logo, não há falar em imunidade de jurisdição ou de execução do requerente, com muito mais razão quando tal questão já foi exaustivamente discutida na fase cognitiva, inclusive com abuso de medias judiciais para obstar à atividade executiva estatal, quando alcançou o status de coisa julgada material.

Ressalto, por oportuno, que o magistrado condutor do feito está adstrito apenas à sua consciência e as norma legais para proferir sua decisão (livre convencimento motivado), não lhe sendo imperativo obediência à qualquer precedente jurisprudencial, sequer do e. STF, muito menos de qualquer outro Tribunal, pelo que a existência de sentenças divergentes é aceita em nossa processualística, fundamento de validade este para a uniformização pelos pretórios, razão pela qual não tem qualquer peso jurídico as decisões juntadas.

Contudo, a posição por nós externada no julgado citado foi objeto de recurso, cuja medida cautelar chegou a julgamento do STF. A d. Presidente do STF concedeu a liminar para liberação dos numerários bloqueados. Mas, com grande felicidade, consegui ver no julgamento Plenário o e. Ministro CELSO DE MELLO rever seu posicionamento e alinhar-se à nossa tese, mantendo a decisão, de igual forma o Ministro CARLOS BRITTO após votar com a maioria, refluiu em sua posição e também votou com a divergência, pedindo vista para fundamentar seu voto. Os dois ilustres Ministros votaram pelo afastamento das ditas imunidades.

Oxalá que, brevemente, a jurisprudência do STF possa ser revista.

Alguns Tribunais do Trabalho tem avançado neste diapasão:

"ORGANISMOS INTERNACIONAIS - IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO TRABALHISTA - INEXISTÊNCIA - Considerando a modificação dos paradigmas em que se sedimentou a postura delineadora das imunidades, é exigida a atuação do Estado no sentido de garantir ao trabalhador o acesso ao Poder Judiciário pelo malferimento aos preceitos básicos aplicáveis aos contratos de emprego firmados no âmbito nacional e em garantia aos valores de cidadania, à luz da propalada democracia, independentemente de figurar no pólo ativo da avença Estado estrangeiro ou Organismo Internacional, por não se aplicar a jurisdição nacional do Estado estrangeiro ou a do Tribunal Administrativo das Nações Unidas (TANU), uma vez que não se está a discutir questões peculiares ou regras próprias a que se submetem as relações de referidos funcionários, mas sim as regras mínimas de proteção ao trabalho vigentes no país da contratação e execução dos serviços." (TRT 20ª R. - RO 00911-2004-005-20-00-1 - (1398/05) - Rel. Juiz Eliseu Pereira do Nascimento - J. 24.05.2005).


8 - Alteração de competência: conhecimento e execução.

Para as ações que tramitam na fase de conhecimento, aplica-se a regra do artigo 87 do CPC, o qual adverte que a competência se firma no momento da propositura da ação, sendo irrelevante qualquer alteração posterior, consagrando o princípio da perpetuatio jurisdictionis. Contudo, o dispositivo legal invocado traz duas exceções à regra: quando as alterações posteriores abarcarem modificação de competência material ou competência hierárquica. Por se tratar as alterações da Emenda 45 de 2004 de competência material, por corolário, todos os processos que tramitam em outros ramos do Poder Judiciário, e que se encontram em fase de conhecimento, devem ser remetidos para a Justiça do Trabalho, a qual aproveitando os atos processuais dará seguimento ao feito.

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A doutrina ensina que referida regra não se aplica, no entanto, aos processos em fase de execução, pois quanto a estes o artigo 87 do CPC cede passo ao artigo 575 do mesmo diploma processual. A regra geral da competência para a execução dos títulos executivos judiciais é de que o mesmo juízo que proferiu a decisão em primeiro grau de jurisdição, na fase de conhecimento, é o competente para executar o título, conforme inciso II do artigo 575 do CPC:

"Art. 575 A execução, fundada em título judicial, processar-se-á perante: (...) II - o juízo que decidiu a causa no primeiro grau de jurisdição.".

Nesse sentido, a unanimidade da doutrina entende pela manutenção dos processos em execução nos limites da Justiça Comum, sem haver remessa dos processos afetos a nova competência do artigo 114 para a Justiça do Trabalho.

Todavia, divirjo de tal posicionamento, por uma razão muito simples.

Durante muito tempo debateu-se na doutrina e jurisprudência pátria a natureza do critério competencial citado; se é relativo, passível de deslocamento, ou se é absoluto, insuscetível de modificação. Caminhavam no sentido da possibilidade de modificação vários doutrinadores de nomeada, entre os quais PONTES DE MIRANDA [19] e AMÍLCAR DE CASTRO [20], defendendo que o título poderia ser executado em juízo diverso daquele que proferiu a decisão da fase cognitiva, pois a mens legis era a facilitação do acesso ao judiciário para o exeqüente.

Com fundamento na possibilidade de modificação de competência do inciso II do artigo 575 do CPC, muitas decisões passaram a admitir a execução em juízo diverso, com muito mais razão naquelas hipóteses de modificação do critério material da competência, como é a situação desvendada pela EC 45/2004, passando-se a admitir a execução no ramo do Poder Judiciário que posteriormente à formação do título passou a ser materialmente competente.

Leciona neste sentido o ilustre Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI [21], senão vejamos: "Há situações concretas em que a competência – absoluta – do ‘juízo que decidiu a causa no primeiro grau de jurisdição’ (CPC, art. 575, II), é inconciliável com regra de competência – também absoluta – prevista na Constituição, caso em que o dispositivo do Código cede passo à norma hierarquicamente superior.".

As novas alterações do CPC refletem com exatidão essa tendência outrora já ressaltada por PONTES DE MIRANDA quanto ao caráter relativo da competência executiva, quando no novel artigo 475-P reafirma a competência do juízo que processou a causa no primeiro grau de jurisdição para a execução, mas no parágrafo único traz a seguinte relativização:

"No caso do inciso II do caput deste artigo, o exeqüente poderá optar pelo juízo do local onde se encontram bens sujeitos à expropriação ou pelo do atual domicílio do executado, casos em que a remessa dos autos do processo será solicitada ao juízo de origem.".

A jurisprudência mais atual do STJ, mesmo anterior às alterações do CPC, já se manifestava neste diapasão:

"I – No confronto entre a competência do juiz que julgou a causa em primeiro grau, para os julgados que proferiu, e a competência ratione personae da Justiça Federal, fixada na Constituição, deve prevalecer esta última. II – A competência da Justiça Federal é definida em sede constitucional em razão das pessoas que figuram na relação processual como autor, réu, assistente ou oponente, não logrando ser ampliada por qualquer razão. III – Conforme afirmou esta Seção no CC 16.397-7-RJ, por mim relatado, com suporte principalmente na doutrina de Amílcar de Castro, somente na hipótese do inciso I a competência para a execução, prevista no art. 575, CPC, é absoluta." (STJ – CC 17897/SC – 2ª Seção – Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira – DJU 02.08.1999).

Para finalizar, colho da lição nascida da pena genial do maior dos constitucionalistas, o Professor JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO [22], verbis:

"Um dos mais importantes princípios constitucionais a assinalar nesta matéria é o princípio da indisponibilidade de competências ao qual está associado o princípio da tipicidade de competências. Daí que: de acordo com esse último, as competências dos órgãos constitucionais sejam, em regra, apenas as expressamente enumeradas na Constituição; de acordo com o primeiro, as competências constitucionalmente fixadas não possam ser transferidas para órgãos diferentes daqueles a quem a Constituição as atribuiu.

Dada a convergência destes dois princípios, compreende-se que, pelo menos em relação aos órgãos de soberania, as competências legais, ou seja, as competências atribuídas por via de lei, devam ter fundamento constitucional expresso.".

Logo, estamos convencidos que em relação aos processos em que a competência cognitiva tenha sido de ramo diverso do Poder Judiciário, mesmo após o trânsito em julgado, mas que após a publicação da EC 45/2004 a matéria tratada foi alcançada pela ampliação de competência da Justiça do Trabalho, deve ser por este órgão executado o título, pois a norma geral, de natureza infraconstitucional, do Código de Processo Civil (inciso II do artigo 575), deve ceder espaço à norma específica prevista na Constituição Federal (inciso I do artigo 114), em obediência aos princípios da máxima efetividade das normas constitucionais, da tipicidade e da indisponibilidade de competências constitucionais.

Não nos esqueçamos que é a legislação infraconstitucional que deve ser interpretada com os olhos voltados para a Constituição e não o contrário, como faz a maioria, que nada obstante a novel regra do inciso I do artigo 114 da CF/88 continua colhendo no artigo 575 do CPC fundamento para manter a execução nos limites do ramo do Judiciário que formou o título. Se este posicionamento antes se observava sem maiores discussões, é fora de dúvida que a alteração competencial da Carta Maior deve refletir juízo de inconstitucionalidade a todas as interpretações que visem tolher a competência constitucional com base na legislação ordinária.

Esse posicionamento não significa dizer que o artigo 575 do CPC não foi recepcionado pelo inciso I do artigo 114 da CF, mas apenas que a aplicação dele na fixação de competência trabalhista não deve ser observada, utilizando-se da técnica da interpretação conforme à constituição, pois a sua aplicação para as ações de competência da Justiça do Trabalho é inconstitucional, em nada alterando a sua plena vigência em relação ao processo civil.

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Sobre o autor
André Araújo Molina

Doutorando em Filosofia do Direito (PUC-SP), Mestre em Direito do Trabalho (PUC-SP), Especialista em Direito do Trabalho e Direito Processual Civil (UCB-RJ), Bacharel em Direito (UFMT), Professor da Escola Superior da Magistratura Trabalhista de Mato Grosso e Juiz do Trabalho Titular na 23ª Região.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOLINA, André Araújo. Competência material trabalhista.: Critério científico para interpretação do inciso I do artigo 114 da CF/88. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2128, 29 abr. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12723. Acesso em: 19 abr. 2024.

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