3. CONCLUSÃO
Tristes tempos estes quando se faz necessário gastar tanto papel e tinta para dizer o óbvio!
Ora, dirão alguns, mas o óbvio não precisa ser dito, todos já o sabem, e aquele que perde tempo e despende energia para expor o óbvio não passa de um tolo.
Acontece que quando os erros se sucedem e se repetem, mesmo diante da obviedade da reiteração dos equívocos, outra opção não resta senão repetir o notório, na esperança de que, à força da repetição insistente, os surdos se disponham a ouvir e os cegos se disponham a ver, ainda que ambas, surdez e cegueira, sejam aquelas da pior espécie, quais sejam, as voluntárias.
O óbvio no tema ora em estudo é o equívoco da reiterada incidência legislativa voltada para a edificação de um "Direito Penal Simbólico", que apresenta sempre uma lei penal como suposta solução de cada problema social. Esse procedimento escamoteia a realidade, obstaculiza a adoção de soluções realistas e agrava os problemas ao invés de solucioná-los ou ameniza-los.
A Lei 11.923/09 exsurge como mais um lamentável exemplo dessa postura demagógica, como se o fenômeno dos denominados "sequestros – relâmpago" pudesse ser solucionado por uma penada do legislador através de uma lei criminal.
No seguimento dessa formulação crítica, intentou-se aprofundar o estudo da extorsão e do roubo com especial dedicação aos critérios distintivos formulados pela doutrina e jurisprudência ao longo do tempo.
Foi apontado um critério abrangente, composto de duas fases de análise, como aquele que melhor serve para proceder a uma boa diferenciação entre os crimes de roubo e de extorsão. Em suma, procede-se da seguinte forma: primeiro verifica-se se houve subtração ou tradição do bem. Se houve subtração, tendo em vista o verbo do artigo 157, CP, conclui-se pela ocorrência de roubo, sem maiores indagações. Se houve entrega do bem pelo ofendido, há indício de que pode tratar-se de extorsão, mas ainda poderá ser caso de roubo. É neste ponto e neste caso que se passa à segunda fase de análise: é preciso perquirir se a vítima tinha, nas circunstâncias do caso concreto, alguma liberdade de deliberação; se não tinha, atuando como mero instrumento nas mãos do agente, trata-se de roubo, mesmo com a ocorrência da tradição do bem. É que nesses casos acontece uma "tradição de fato", mas esta não apresenta relevância jurídica por ausência absoluta de voluntariedade por parte do ofendido, o qual pode ser considerado uma verdadeira "longa manus" do criminoso. Agora, se a vítima tem certo tempo de reflexão e deliberação, optando de alguma forma pela entrega do bem ou por ceder às exigências do infrator, trata-se realmente de extorsão. Nessas circunstâncias opera-se uma "tradição de fato", mas esta é dotada de relevância jurídica pela presença "in casu" de um certo grau de voluntariedade por parte da vítima.
Estabelecido esse critério distintivo, que é considerado o melhor, mais seguro e completo, norteando a maior parte da doutrina e da jurisprudência, passou-se para o estudo da tipificação dos casos do vulgarmente chamado "sequestro – relâmpago".
Chegou-se à conclusão de que, inobstante o pretensioso conteúdo da ementa da Lei 11.923/09, esta não tipifica sozinha e nem na maioria dos casos o denominado "sequestro – relâmpago". O legislador fez uso de uma expressão vulgar e polissêmica, sem, portanto, conteúdo definido, a qual abrange uma infinidade de situações práticas, ora tratando-se de roubo, ora de extorsão e até mesmo sendo possível lobrigar eventuais casos de extorsão mediante sequestro.
A manutenção da causa de aumento de pena em razão da restrição da liberdade da vítima no crime de roubo (artigo 157, § 2º., V, CP) reforça a conclusão de que, em verdade, é preciso analisar cada situação concreta em suas circunstâncias, de forma minuciosa, procedendo uma triagem inicial para formar a convicção pelo crime de roubo ou de extorsão. Dessa forma, somente nos casos em que a conclusão seja pelo crime de extorsão, é que se dará azo à aplicação do artigo 158, § 3º., CP, redigido na forma imposta pela novel Lei 11.923/09.
Também não se pode descartar, em determinadas situações, a ocorrência de concurso de crimes entre roubo ou extorsão e o delito de sequestro ou cárcere privado, previsto no artigo 148, CP. Os crimes de roubo ou extorsão serão majorados pelo fato da restrição de liberdade da vítima quando esta conduta do agente for meio para obter a subtração ou a vantagem econômica ilícita. Ausente esse "nexo de necessidade", configurada estará a situação de concurso de crimes.
Como já frisado, não é de se desprezar eventual ocorrência de extorsão mediante sequestro, tudo dependendo de uma análise criteriosa do caso concreto, tendo em consideração o tempo de privação da liberdade e a existência de refém e exigência de resgate para a libertação.
Não se comunga das teses mais generalizantes, que ora reduzem praticamente todos os casos a crimes de extorsão, agora qualificada, ora à extorsão mediante sequestro. No primeiro enfoque opta-se por eleger como critério praticamente isolado a imprescindibilidade do comportamento da vítima, olvidando a importante questão de sua capacidade deliberativa real e concreta, a qual efetivamente confere relevância jurídica à sua colaboração. A adoção desse critério redutor implicaria uma reviravolta injustificada no sistema predominante de interpretação da distinção entre roubo e extorsão e, se por um lado ampliaria sobejamente o campo de aplicação do artigo 158, § 3º., CP, reduziria a quase nada o espaço de incidência do artigo 157, § 2º, V, CP. Já que, de qualquer forma, restará um dispositivo legal de parca utilização, é melhor manter o entendimento corrente em prol de uma, ainda que relativa e precária, segurança jurídica. No segundo enfoque, tem-se que a generalização da aplicação da extorsão mediante sequestro a todos os casos do chamado "sequestro – relâmpago", não condiz com a melhor técnica, devendo ser analisado o caso concreto de forma minuciosa, tendo em conta a característica variada do uso da expressão popular em estudo, a qual jamais se presta a uma definição segura e genérica.
Aliás, por meio de um estudo casuístico, chegou-se à conclusão de que a maioria dos casos de maior incidência prática dos vulgarmente chamados "sequestros – relâmpago" são afetos ao crime de roubo majorado (artigo 157, § 2º., V, CP), eis que geralmente ou há subtração ou o ofendido entrega o bem totalmente coagido.
Enfim, conclui-se que a Lei 11.923/09 trouxe muito mais confusão do que segurança jurídica no que diz respeito aos chamados "sequestros – relâmpago". Obviamente ela não é o remédio milagroso que irá resolver esse problema e ainda ocasiona distorções terríveis na sistemática do Código Penal, principalmente quanto aos critérios de igualdade, proporcionalidade e razoabilidade de previsões de penas em abstrato.
Embora não se concorde com a necessidade de uma tipificação específica para o denominado "sequestro – relâmpago", se o legislador pretendia com tanto afinco levar adiante tal empreitada, por que não o fez criando uma figura autônoma, um novo crime, que poderia ser um complexo entre as condutas do roubo, da extorsão e do sequestro ou cárcere privado? Por que não criou essa espécie de quimera jurídico – penal e revogou expressamente o inciso V, do § 2º., do artigo 157, CP? Isso certamente não superaria em valor a inércia legislativa sobre o tema na seara penal, buscando soluções reais, mas ao menos não traria tantas dúvidas e complicações de tipificação.
Não há como escapar do fato de que essas tentativas desastrosas de tipificar especialmente o chamado "sequestro – relâmpago" só poderiam resultar, como resultaram, em uma legislação que, ao invés de se aperfeiçoar, vai sofrendo deformações.
Cabe neste ponto mencionar a conclusão de Carrazza, comentando a reforma procedida pela Lei 8137/90 quanto aos crimes contra a ordem tributária, a qual se ajusta como uma luva para o caso das modificações procedidas pela lei 11.923/09, na sanha de tipificar o "sequestro – relâmpago", prosseguindo sempre na senda do "Direito Penal Simbólico" e do "Punitivismo Irracional". Dissertando sobre o furor punitivista que contamina a produção legislativa nacional e mundial, destaca Carrazza o fenômeno de uma deterioração técnica dos tipos penais, trazendo à colação a expressão da lavra de Wagner Balera, que se refere a "uma degradação dos tipos", por meio da qual se erige, no dizer de Vico, uma verdadeira "monstra lego". [35]
Dando desfecho a este trabalho, pode-se dizer que, com o advento da Lei 11.923/09, passa-se a contar com uma nova lei "ordinária" no Brasil, bem "ordinária" mesmo!
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Volume 3. 4ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
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CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. 12ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2007.
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FRANCO, Alberto Silva, "et al.". Código Penal e sua interpretação jurisprudencial. 5ª. ed. São Paulo: RT, 1995.
FRANCO, Alberto Silva. Crimes Hediondos. 3ª. ed. São Paulo: RT, 1994.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Volume III. 4ª. ed. Niterói: Impetus, 2007.
JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal. 2º. Volume. 27ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
KAHN, Axel, LECOURT, Dominique. Bioética e Liberdade. Trad. José Augusto da Silva. Aparecida: Ideias & Letras, 2007.
MIRABETE, Julio Fabbrini, FABBRINI, Renato Nalini. Manual de Direito Penal. Volume II. 26ª. ed. São Paulo: Atlas, 2009.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 4ª. ed. São Paulo: RT, 2008.
ROTERDAM, Erasmo de. Elogio da Loucura. Trad. Paulo M. Oliveira. 12ª. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000.
TELES, Ney Moura. Direito Penal. Volume 2. São Paulo: Atlas, 2004.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl, BATISTA, Nilo. Direito Penal Brasileiro. Volume I. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2006.
Notas
Aqui se percebe como a expressão popular "bobo alegre" tem mesmo sua razão de ser.
Crimes Hediondos. 3ª. ed. São Paulo: RT, 1994, p. 36 – 37.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl, BATISTA, Nilo. Direito Penal Brasileiro. Volume I. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2006, p. 77.
Op. Cit., p. 65.
Antimanual de Criminologia. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008, p. 81.
KAHN, Axel, LECOURT, Dominique. Bioética e Liberdade. Trad. José Augusto da Silva. Aparecida: Idéias & Letras, 2007, p. 44.
Op. Cit., p. 68.
CARVALHO, Salo de. Op. Cit., p. 52.
Ética, Medicina e Técnica. Trad. António Fernando Cascais. Lisboa: Veja, 1994, p. 65. ónio Fernando Cascais. Lisboa: Vega,, a "combater males sociais os mais variados, por mais absurdas que sejam suas pretenss ajus
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Volume III. 4ª. ed. Niterói: Impetus, 2007, p. 107 – 108.
MIRABETE, Julio Fabbrini, FABBRINI, Renato Nalini. Manual de Direito Penal. Volume II. 26ª. ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 210.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 4ª. ed. São Paulo: RT, 2008, p. 703.
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Volume 2. 8ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 462 – 463.
GRECO, Rogério. Op. Cit., p. 108.
-
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Volume 3. 4ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 106.
TACrim SP, AC 882.591, rel. Penteado Navarro, RT, 718/429. Op. Cit., p. 107.
A Lei 11.923/09 não revogou o dispositivo sob comento expressamente e nem se pode sustentar a tese de que o teria feito tacitamente. Certamente, como se verá, não trata inteiramente da matéria e muito menos é incompatível com o dispositivo anterior (inteligência do artigo 2º., §§ 1º. e 2º., da Lei de Introdução ao Código Civil). A pretensão de tipificar o chamado "sequestro – relâmpago", expressa na ementa da lei, dando a falsa impressão de trataria inteiramente da matéria, é fatalmente frustrada pelo conteúdo indefinido e polissêmico do termo empregado pelo legislador.
Elogio da Loucura. Trad. Paulo M. Oliveira. 12ª. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000, p. 98.
FRANCO, Alberto Silva, "et al.". Código Penal e sua interpretação jurisprudencial. 5ª. ed. São Paulo: RT, 1995, p. 2002.
Direito Penal. Volume 2. São Paulo: Atlas, 2004, p. 378.
Neste sentido: JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal. 2º. Volume. 27ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 348.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. Cit., p. 106 – 108.
Observe-se que não há que cogitar nem mesmo a aplicação do aumento de pena previsto no § 2º., V, do artigo 157, CP, aos casos do seu § 3º., uma vez que é praticamente pacífico que as causas de aumento do § 2º., não se aplicam aos casos do § 3º. Acrescente-se ainda que mesmo que tal fosse possível e cogitando-se do aumento no patamar máximo (metade), a situação somente se abrandaria com relação ao roubo qualificado pela morte, já que no caso de lesões graves, mesmo com o aumento máximo a pena ficaria aquém daquela estabelecida para a extorsão qualificada. Note-se, por fim, que mesmo no caso do roubo qualificado pela morte com aumento máximo devido à restrição da liberdade, o problema não se resolveria, mas apenas se inverteria. Seria agora o roubo qualificado, com uma pena de 30 a 45 anos, que ostentaria sanção maior do que a extorsão qualificada. Enfim, logrou o legislador edificar um beco sem saída para a igualdade, proporcionalidade ou razoabilidade, com a edição da Lei 11.923/09.
Fala-se "até certo ponto" porque não se pode olvidar a possibilidade de análise da presença das causas de aumento do § 2º., do artigo 157, CP, como circunstâncias judiciais do artigo 59, CP.
GRECO, Rogério. Op. Cit., p. 83.
MIRABETE, Julio Fabbrini, FABBRINI, Renato Nalini. Op. Cit., p. 207.
NUCCI, Guilherme de Souza. Op. Cit., p. 697 – 698.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. Cit., p. 85 – 86.
Op. Cit., p. 82.
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Neste sentido: CAPEZ, Fernando. Op. Cit., p. 444.
Op. Cit., p. 108.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. Cit., p. 86.
Vide artigos 151 a 155 e 171, II, todos do Código Civil.
V.g. CAPEZ, Fernando. Op. Cit., 444.
CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. 12ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 576.