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Ausência de motivação no recebimento da denúncia em crime de tóxicos.

Nulidade absoluta

07/05/2009 às 00:00
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" As leis mais liberaes, com providencias as mais sábias e justas para a proteção da liberdade individual, podem se transformar em verdadeiros flagellos, si as suas disposições forem manejadas, como latego de feitores, por juízes retrógrados, obtusos e cruéis ".

A realidade forense tem revelado uma determinada situação procedimental abusiva e que bem demonstra a falta de amor aos valores constitucionais por expressiva parcela do Judiciário. Felizmente, não a sua totalidade.

Tristemente, são ainda atuais as palavras de NOÉ AZEVEDO: "As leis mais liberaes, com providencias as mais sábias e justas para a proteção da liberdade individual, podem se transformar em verdadeiros flagellos, si as suas disposições forem manejadas, como latego de feitores, por juízes retrógrados, obtusos e cruéis ". 1.

O fato é que tem sido recebidas, a mãos cheias, denúncias e mais denúncias contra acusados inseridos na Lei de Tóxicos, sem a mínima fundamentação, fazendo-se TÁBULA RASA do Direito de Defesa e do Due Process.

Observa-se, de forma contumaz, que os Juízes, em lamentável e significativo número, vêm simplesmente utilizando uma "fórmula", um padrão pré-digitado no computador, onde repetem:

"Os fatos narrados na denúncia encontram correspondência no tipo penal citado.

As provas do inquérito demonstram indícios de autoria e materialidade, indicando a pertinência da denúncia, vez que presentes os requisitos legais.

Diante do exposto, recebo a denuncia de fls.... "

E por aí se vai, singrando os mares do arbítrio e recebendo tais denúncias com a automaticidade de um postalista dos Correios. Remetem, assim, às calendas gregas a necessidade de se mencionar, de maneira clara e precisa, quais fatos o levaram a considerar a denúncia como apta. E, em especial, no tangente às matérias de defesa apresentadas na Defesa Prévia, reina sepulcral silêncio.

Ora, parafraseando descaradamente HÉLIO TORNAGHI2, dizemos, de forma categórica: não basta de maneira alguma, não é fundamentação, frauda a finalidade da lei e ilude as garantias do processo o fato de o juiz apenas repetir uma "fórmula" de recebimento da denúncia, sem analisar o caso concreto que lhe é posto nas mãos, com suas nuances próprias, e, mais, ignorando olimpicamente todos os esforços da defesa. Fórmulas como essas são a mais rematada expressão da prepotência, do arbítrio e da opressão. Revelam displicência, tirania ou ignorância ao comando constitucional de fundamentação de todas as decisões judiciais, notadamente uma decisão de tal magnitude que modifica o status de cidadania, "dando início a uma ação penal que, por sua vez, pode afetar diretamente direito fundamental do cidadão sujeito a tal procedimento" 3. Veja-se, aqui, que não está a se tratar de um mero despacho de andamento processual. Trata-se de um ato processual decisório que instaura a própria relação processual penal.

Quando o constituinte brasileiro incluiu esta EXIGÊNCIA no artigo 93, IX, da Magna Carta republicana, evidentemente pretendeu criar um padrão para toda e qualquer manifestação judicial que apresente uma carga decisória, por menor que esta seja, só estando excluídos os denominados despachos de expediente, com a qual a decisão inaugural da relação processual penal, nem de longe, pode ser confundida. Nesse teor, explicita ANTONIO MAGALHÃES GOMES FILHO:

"Ao dizer que serão fundamentadas " todas " as decisões, a constituição brasileira não expressa apenas a extensão do dever de motivar; mais do que isso, prescreve um único modelo de decisão judical – A decisão fundamentada - , em que tal exigência deve condicionar o próprio raciocínio decisório". 4

Ainda nesse diapasão, vibrando e alertando contra o peso e as agruras de um processo criminal, inaugurado por esta decisão, CARLOS EDUARDO SHEID adverte que:

" observando – se o processo penal através da lente constitucional, pensa – se ser exigível que a decisão de recebimento da denúncia seja motivada ".5

Pergunta-se: frente à teoria de KELSEN e sua consagrada pirâmide, há outra lente a se observar qualquer lei nesse país? Há outro filtro interpretativo senão a Constituição?

Mais adiante, adentrando mais especificamente no tema, este mesmo autor elucida:

"(...) A motivação do recebimento da denúncia, no caso da (nova) Lei de Tóxicos, se apresenta necessária também à vista de presença da defesa prévia lançada pelo acusado. Com isso, quer – se dizer, em última análise, que a integralidade dos pontos abordados pela defesa técnica deve ser objeto de estudo jurisdicional. Impende – se ter em mente, nesse particular, que a motivação em rigor técnico, se trata da garantia das garantias, vale dizer, é uma garantia que dá vida às demais.

Com efeito, para ser válida sob a ótica constitucional, a motivação, que der causa ao ajuizamento da ação penal, deve esboçar uma análise frontal da integralidade dos aspectos apresentados na defesa prévia. É que, somente assim, se poderá perceber se a decisão de recebimento da denúncia se colocou como o resultado de uma ponderada reflexão sobre todos os pontos debatidos, não se constituindo em um ato de puro subjetivismo do julgador, o que viabiliza um controle objetivo (isto é: verificável à base de dados reais, como argumentos textualizados) sobre a atividade jurisdicional, o qual é levado a efeito pelas partes e pela sociedade, dando espaço, nesse particular, para democracia do processo penal. " 6

De fato. Do contrário, que sentido teria a Lei de drogas ter sido alterada – criando uma defesa preliminar (art. 55, caput), determinando ao juiz uma DECISÃO (art. 55 § 4º), procedimentos estes que são causa de nulidade absoluta se não observados (HC. 103121/SP, STJ; HC. 93.581-8/SP, STF) –, se, após tudo isso, pudesse o juiz, como um autômato, receber a denúncia sem a análise detida do caso e das alegações defensivas? Qual a mínima lógica disso?

Dessa situação não descurou-se GULHERME DE SOUZA NUCCI:

" finalmente, após longo percurso preliminar, chega-se ao recebimento da denúncia. Deve esta decisão ser fundamentada, pois, do contrário, terá sido em vão todo o trabalho da defesa, expondo inúmeros argumentos na peça preliminar ... " 7

Também o festejado mestre RENATO MARCÃO entende que:

"No âmbito da lei nº 11.343/2006, o despacho de recebimento da acusação inicial deve tratar de todas as matérias sustentadas na defesa prévia ou resposta preliminar, com a profundidade que o momento permite e recomenda." 8

É evidente que de absolutamente nada serviria assegurar às partes um debate preliminar, um espaço garantístico de refutação do alegado, se ao juiz fosse dado não observar tal espaço de contraditório, fazendo ouvidos surdos ao alegado.

Entre nós, é categórico BARBOSA MOREIRA:

" Last but not least, trata – se de garantir o direito que tem as partes de ser ouvidas e de ver examinadas pelo órgão julgador as questões que houveram suscitado. (...) de reclamar do órgão judicial a consideração atenta dos argumentos e provas trazidos aos autos ". 9

Contudo, divergimos do respeitadíssimo GUILHERME DE SOUZA NUCCI, o qual afirma que:

" A não-fundamentação, em nosso entendimento, gera nulidade relativa, uma vez que não há expressa determinação legal para que ocorra ", 10

Temos para nós que se trata de nulidade absoluta por solar ofensa à Constituição Federal.

Com TORNAGHI, aprendemos que:

" A lei do processo é o prolongamento e a efetivação do capítulo constitucional sobre os direitos e as garantias individuais ". 11

Diante de dispositivo processual que cria este espaço de debate a ser analisado pelo juiz no momento de receber ou não a denúncia, observa-se que, ao fraudar-se a análise, fraudados estão os princípios constitucionais do Contraditório, da Ampla Defesa, do Devido Processo Legal e da Motivação das decisões penais. Existe, sim, determinação legalíssima para que tal ocorra, pois, afinal, a Lei de Drogas também é terra onde a Constituição pisa sobranceira.

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Conforme alertado por WILLIAN TERRA DE OLIVEIRA:

" O juiz do Estado constitucional e democrático de Direito necessariamente deve utilizar os seus dois olhos para descobrir os dois ordenamentos jurídicos vigentes: o legalista e o constitucionalista. Deve olhar a lei e a Constituição Federal, concomitantemente. Havendo discrepância a prioridade recai sobre a Constituição Federal. " 12

Dar exigência à motivação no recebimento da denúncia é a garantia entre a eficiência da sanção e o respeito para com os direitos fundamentais, sendo todo este equilíbrio um permear constante dentro de um processo penal democrático. Dito de outro modo, tendo em vista o procedimento dialético previsto em lei juntamente com a decisão na lei estabelecida – art. 55, § 4ª da lei de drogas – , essa decisão há de ser motivada:

"por si só, se consubstancia em objetivo a ser perseguido e se reveste de valor ético a ser respeitado, não podendo ser sacrificado no altar da defesa social contra a criminalidade." 13

Sobre o tema da sanção de nulidade face ao desrespeito à garantia constitucional da motivação, o mestre das Arcadas ANTONIO MAGALHÃES GOMES FILHO encerra o assunto:

" (...) Cabe agora examinar a conseqüência processual do não-atendimento dos mencionados requisitos do discurso justificativo judicial.

A tarefa, nesse ponto, é sensivelmente facilitada pela clareza do texto constitucional: " Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade " (art. 93, IX).

Trata-se, portanto, de uma daquelas hipóteses em que a atipicidade do ato por inobservância de norma constitucional tem a sua conseqüência processual determinada na própria lei fundamental: as decisões judiciais de qualquer espécie (todas), não fundamentadas, são ineficazes.

A nulidade no caso é absoluta, pois o ato processual inconstitucional, quando não juridicamente inexistente, não pode dar lugar à nulidade relativa, uma vez que as garantias processuais – constitucionais, mesmo quando aparentemente postas em benefício da parte, visam em primeiro lugar ao interesse público na condução do processo segundo as regras do devido processo legal.

(...) Ademais, dizer que a nulidade é absoluta implica também admitir que o prejuízo acarretado pelo vício é evidente, dispensando a demonstração de dano para a parte ou para a própria decisão. No caso da decisão judicial não fundamentada, o prejuízo fica induvidosamente revelado pela frustração de todos aqueles objetivos políticos e processuais que determinam a exigência constitucional." 14

Como alento, a manifestação recente do Egrégio Tribunal Bandeirante:

" Apresentada a defesa prévia, deve o juiz decidir, no juízo de delibação, enfrentando todas as alegações feitas pelo acusado, pena de nulidade absoluta, por violação do direito de defesa e do devido processo legal, não sendo bastante a mera referência à presença dos pressupostos legais, máxime quando o acusado, na defesa prévia, invocou a ausência de interesse de agir, consistente na inexistência de elementos concretos a embasar a imputação ". 15

Sobre o tema, era o que tínhamos a expor. Acreditamos, com IHERING, que:

" A forma é inimiga jurada do arbítrio e irmã gêmea da liberdade ".

Acreditamos, com ELIÉZER ROSA, que:

" Num mundo democrático o Estado não tem o direito de sofismar com a liberdade do homem".


Bibliografia

1. As Garantias da Liberdade Individual em Face das Novas Tendências Penaes, Ed. RT, ano 1936, pág. 237/238;

2. Instituições de Processo Penal, Ed. Saraiva, ano 1978, vol. 3, pag. 334;

3. Renato de Oliveira Furtado – Denúncia: Necessidade de fundamentação de seu recebimento, RT 682/406;

4. A Motivação das Decisões Penais, Ed. RT, ano 2001, pág. 71 e 242

5. A Motivação das Decisões Penais – A partir da Teoria Garantista, Ed. Liv. do Advogado, ano 2009, pág. 151;

6. Lei de Drogas, Ed. Livraria do Advogado, ano 2008, pág. 60 e 61.

7. Guilherme de Souza Nucci – Leis Penais e Processuais Penais Comentadas, Ed. RT, ano 2009, pág. 396;

8. Renato Marcão – Tóxicos, Ed. Saraiva, edição 2009, pág. 441;

9. A Motivação das Decisões Judiciais como Garantia Inerente ao Estado de Direito – Temas de Direito Processual, 2ª série, São Paulo, ano 1980, pág. 88;

10. Guilherme de Souza Nucci – Obra Citada, pág. 396;

11. Helio Tonaghi - Obra Citada, vol. I, pág. 75;

12. Willian Terra de Oliveira - Lei de Drogas Comentada, Coord. Luiz Flávio Gomes, Ed. RT, ano 2007, pág. 279 );

13. Massimo Nobili apud Diogo Rudge Malan – Direito ao Confronto no Processo Penal, Ed. Lumen Júris, ano 2009, pág. 125;

14. Antonio Magalhães Gomes Filho - A Motivação das Decisões Penais, Ed. RT, ano 2001, pág. 202 e 203;

15. TJSP – Ap. Crim. nº 01142867.15 – 0000, Rel. Des. José Henrique Rodrigues Torres, j. 19.05.2008.

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Sobre o autor
Renato de Oliveira Furtado

Advogado Criminalista, Professor de Direito Processual Penal da Universidade Estadual de Minas Gerais - Campus Frutal, Membro do IBCCRIM

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FURTADO, Renato Oliveira. Ausência de motivação no recebimento da denúncia em crime de tóxicos.: Nulidade absoluta. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2136, 7 mai. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12762. Acesso em: 28 mar. 2024.

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