1 – INTRODUÇÃO
O direito de propriedade, por todos conhecido e almejado, outrora se apresentava de forma absoluta, sendo talvez o maior pilar do Estado Liberal. Hoje, sob o manto do pretenso, mas ainda não implementado, Estado Democrático de Direito, admite limitações de diversas ordens, seja por força de lei, do interesse público ou do interesse privado.
As limitações impostas pelo interesse privado são, em verdade, as conhecidas cláusulas restritivas do direito de propriedade, sendo as mais importantes: inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade. Esta última é de especial interesse ao presente estudo, cuja estreita via não permite uma abordagem das demais restrições.
Em análise primária e superficial, a cláusula de incomunicabilidade impede que os bens doados, herdados ou legados com este gravame se comuniquem em razão de casamento, vale dizer, integrem a meação dos cônjuges.
Como, sob o manto do Código Civil de 2002, os bens recebidos por doação, legado ou herança somente se comunicam no regime matrimonial da comunhão universal, a cláusula de incomunicabilidade se mostra útil e operante apenas nesta hipótese, quando a comunhão dos bens se efetivará de maneira análoga aos demais regimes, quais sejam, comunhão parcial – regime legal, na falta de pacto antenupcial –, separação de bens e participação final nos aquestos.
2 – CASAMENTO: COMUNHÃO DE BENS E FORMAS DE DISSOLUÇÃO
A palavra casamento se presta a definir tanto o ato solene de sua celebração, quando os noivos comparecem perante o oficial do Registro Civil e manifestam sua vontade de contrair matrimônio quanto a relação jurídica daí advinda.
Aqui interessa o casamento sob o prisma da relação jurídica matrimonial que se origina da celebração solene.
Sem adentrar a eterna discussão sobre a natureza jurídica do casamento, se contratual ou institucional, acrescente-se que o casamento pode ser visto sob duas dimensões: a existencial e a patrimonial.
A primeira remete às relações pessoais entre os cônjuges e demais membros da família, englobando não só a alteração do estado da pessoa – que, com a celebração do ato, se torna casada – mas todos os direitos e deveres conjugais, de observância cogente enquanto durar a sociedade conjugal, tais quais fidelidade, assistência mútua, respeito e consideração recíprocos, criação e educação dos filhos, dentre outros.
Observe-se que esta dimensão existencial engloba direitos e deveres extrapatrimoniais, uma vez ser impossível atribuir qualquer conteúdo econômico a estas obrigações.
A segunda dimensão do casamento se traduz no regime de bens adotado pelos nubentes, e sua conseqüente implicação na administração dos bens particulares e comuns. Nesta esfera patrimonial do casamento, a comunhão de bens nada mais é do que a formação de um patrimônio comum entre os nubentes, uma espécie de condomínio que não se mistura com os bens particulares de cada um.
Quando da inevitável dissolução do casamento, seja por divórcio, seja por morte, este patrimônio comum será partilhado na exata proporção de 50% (cinquenta por cento) para cada cônjuge, a chamada meação.
Deve-se atentar, desde já, que a causa da partilha, ou, em outras palavras, a forma como a dissolução do casamento se dá, altera fundamentalmente a destinação dos bens comuns. Se feita em vida, aplica-se o Direito de Família; se em razão de morte de um dos cônjuges, aplica-se o Direito das Sucessões.
Em apertada síntese, para não fugir dos objetivos deste trabalho, apresenta-se as características básicas de cada regime de bens:
a) comunhão parcial: os bens havidos por cada cônjuge antes do casamento não integram a comunhão; os bens adquiridos na constância do casamento, a título oneroso, integram a comunhão, com pequenas exceções legais (sub-rogação a bens particulares, bens de uso pessoal, proventos do trabalho, dentre outros). No caso de dissolução do casamento em vida, somente os bens comuns serão partilhados. Bens particulares, bens havidos por ato gratuito (doação, herança ou legado) e os bens legalmente excluídos não integram a partilha.
b) separação de bens: não há comunhão de bens neste regime. Cada cônjuge administra o seu próprio patrimônio. Na dissolução em vida, não há partilha ou meação, ficando cada qual com os bens que já lhe pertenciam.
c) participação final nos aquestos: regime híbrido, que mistura regras dos dois regimes anteriores. Os bens havidos antes do casamento não integram a comunhão; cada cônjuge, na constância do matrimônio, administra seu próprio patrimônio; a diferença em relação à separação de bens é que, na dissolução em vida, partilham-se os aquestos, ou seja, os bens adquiridos por cada cônjuge de forma onerosa na constância da união. As exceções, em essência, são as mesmas do regime da comunhão parcial.
d) comunhão universal: neste regime, praticamente inexiste patrimônio particular. Salvo pequenas exceções, entre elas os bens doados, herdados ou legados com cláusula de incomunicabilidade, todos os bens de ambos os nubentes se integram em um único patrimônio comum. Dissolvido o casamento em vida, o patrimônio total será igualmente partilhado, independentemente de quem era o original proprietário do bem.
3 – REGRAS GERAIS DE DIREITO DAS SUCESSÕES
Já foi dito que o evento que dá causa à partilha altera sobremaneira a sua configuração. Ao contrário da dissolução em vida, à dissolução do casamento por morte se aplicam as regras do Direito das Sucessões.
Interessa-nos especificamente a posição do cônjuge sobrevivente, que, com o advento do novo Código Civil, foi elevado à posição de herdeiro necessário, em concorrência com eventuais descendentes e ascendentes.
A primeira providência quando alguém morre casado é, apurado o patrimônio comum, subtrair-lhe a meação do cônjuge sobrevivente. Os bens particulares e a meação do falecido se unem para formar a herança, da qual se decotarão as dívidas deixadas. O resultado disto é exatamente o patrimônio a ser inventariado e transferido aos herdeiros.
Quanto ao cônjuge supérstite, a fórmula principal é simples: em concorrência com os descendentes, se foi meeiro, não herda. Se não o foi, herda. É dizer: o cônjuge sobrevivente somente participará da sucessão do de cujus em relação aos bens particulares deste; em concorrência com os ascendentes, ao contrário, o cônjuge participa na totalidade da herança, inclusive em relação aos bens da qual já foi meeiro.
Estabelecidas as premissas fundamentais, passa-se ao estudo da cláusula de incomunicabilidade.
4 – A CLÁUSULA DE INCOMUNICABILIDADE
Inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade são espécies do gênero cláusulas restritivas do domínio. Como tal, possuem caracteres comuns.
Podem ser temporárias ou vitalícias; absolutas ou relativas. Quando temporárias, são gravadas sob condições resolutivas, como "até que o beneficiário atinja a maioridade civil", "até que o beneficiário se case" ou "até que o beneficiário cole grau em curso superior".
Busca-se, aqui, o caráter benevolente, social, humano da clausulação, que, a princípio, denota uma preocupação do instituidor com o bem estar do beneficiário.
Se não houver ressalvas no título que transmite os bens clausulados, o gravame será vitalício, nunca podendo ultrapassar uma geração. Os bens transmitem-se, de todo modo, livres de quaisquer ônus aos herdeiros do beneficiário.
Isto porque o ordenamento jurídico não permite que se retire um bem de circulação econômica por toda a eternidade por capricho de um único proprietário.
A cláusula de incomunicabilidade nada mais é do que um gravame imposto por um testador ou doador, obviamente em ato de liberalidade, ao bem transmitido por herança, legado ou doação, a impedir que este bem integre o patrimônio comum do beneficiário casado sob o regime da comunhão universal.
A razão de existir desta cláusula remonta à possibilidade de um casamento de interesses ou com pessoa inidônea. O instituidor, temendo que o cônjuge do beneficiário se valha de artimanhas para angariar o patrimônio transferido por liberalidade, impõe o gravame para evitar o conhecido "golpe do baú".
Na eventualidade de uma separação ou divórcio, os bens gravados com incomunicabilidade não comporão a partilha. O grande problema, no entanto, é a situação destes bens na dissolução do vínculo conjugal por morte do beneficiário.
5 – A SUCESSÃO DO CÔNJUGE PROPRIETÁRIO DE BENS GRAVADOS COM A CLÁUSULA DE INCOMUNICABILIDADE
Viu-se que, na dissolução em vida, partilha-se somente o patrimônio comum. Na morte, em regra, ao cônjuge sobrevivente caberá a sua meação e uma porção dos bens particulares do falecido (em concorrência com descendentes) ou a sua meação e mais uma porção de todo o acervo patrimonial (em concorrência com ascendentes).
Indaga-se, então, onde se enquadraria o bem gravado com cláusula de incomunicabilidade. À evidência, não integra o patrimônio comum, pela própria essência da cláusula. Somente se pode entendê-lo, portanto, como um bem particular do beneficiário.
Observe-se, agora, o ponto crucial para o deslinde da questão. Como bem particular que é, o bem gravado com cláusula de incomunicabilidade não será partilhado por ocasião de eventual dissolução do casamento em vida, pois esta era a exata intenção do instituidor: proteger o beneficiário de possíveis desmandos de seu cônjuge. Aplica-se nesta forma de dissolução, é claro, as normas de Direito de Família.
Na dissolução por morte, todavia, a cláusula de incomunicabilidade não pode perdurar face às regras do Direito das Sucessões. Relembrando a fórmula proposta no capítulo 3, se o cônjuge sobrevivente é meeiro, não herda; se não o é, herda (em concorrência com descendentes).
É certo que, com relação aos bens gravados com cláusula de incomunicabilidade, o cônjuge supérstite nunca será meeiro, por situar-se a meação dentro do Direito de Família. Mas, ao aplicar-se as regras do Direito das Sucessões, não tendo sido o cônjuge meeiro daquele bem gravado, impõe-se a sua inclusão no rol de herdeiros deste bem, seja em concorrência com descendentes ou ascendentes.
6- CONCLUSÃO
Observada a clara autonomia entre o Direito de Família e o Direito das Sucessões, resta clara a conclusão de que os bens gravados com cláusula de incomunicabilidade só manterão este efeito enquanto viver o seu beneficiário.
Dissolvido o casamento em vida, é patente a produção de efeitos da cláusula restritiva, protegendo o seu beneficiário de um eventual "golpe do baú" ou de caprichos fúteis do cônjuge.
Ao contrário, dissolvido o casamento por morte, não mais persistem os efeitos da cláusula restritiva, pois a ninguém é dado perpetuar sua vontade sobre um bem. Ademais, não pode uma restrição imposta por ato de vontade se sobrepor a expressa disposição de lei. O cônjuge supérstite herdará, com ou sem concorrência, todos os bens do falecido gravados com cláusula de incomunicabilidade, que se transmitem aos herdeiros sem qualquer ônus.