A Constituição Federal de 1988, ao estabelecer o Sistema Tributário Nacional, estipulou limitações ao poder de tributar, os quais constituem óbices a políticas tributárias indiscriminadas visando apenas interesses arrecadatórios do Estado, em detrimento a capacidade contributiva do cidadão.
Sendo assim, o constituinte originário visando proteger os sujeitos passivos das obrigações tributárias, impôs determinados limites ao Estado em matéria fiscal, visando resguardar o gozo dos direitos fundamentais, referentes às liberdades clássicas [01]. Os direitos fundamentais de liberdade, para seu efetivo gozo, exigem uma postura abstencionista por parte do Estado, no sentido deste não impedir o seu livre exercício, por isso, estes direitos são caracterizados por prestações negativas do poder público [02].
Podemos concluir que as limitações ao poder de tributar estão dentro desta lógica, ou seja, foram colocados limites à atuação estatal quanto sua competência tributária, uma vez que o livre arbítrio do Poder Público nesta matéria poderia impor severos obstáculos para a fruição dos direitos fundamentais de liberdade. Não podemos esquecer que "o poder de tributar, também pode ser o poder de destruir".
Em função de sua importância para a concretização dos direitos fundamentais, o próprio STF reconheceu que as limitações ao poder de tributar contidas na constituição são verdadeiros direitos e garantias individuais dos contribuintes, situados fora do rol do art. 5º deste diploma legal, protegidos por cláusula pétrea, ou seja, não podem ser suprimidos nem mesmo por emenda constitucional [03].
Dentre as limitações ao poder de tributar destaca-se a regra da não-cumulatividade do ICMS prevista no art, 155, § 2º, I e II da CF. de acordo com esta norma, em cada operação ou prestação a título de ICMS é resguardado ao contribuinte o direito a uma dedução relativa aos valores cobrados nas operações ou prestações anteriores.
O principal objetivo da regra da não-cumulatividade é desonerar a produção, tornando os produtos e serviços, objetos da tributação do ICMS, mais acessível à população. Destarte, o ICMS é um imposto indireto, onde quem arca com seu ônus econômico é o contribuinte de fato, de modo que a regra da não-cumulatividade beneficia, não apenas o sujeito passivo da obrigação tributária, garantindo seu direito de livre exercício profissional, assim como sua liberdade de iniciativa, tornando bens e serviços mais atrativos, mas também desonerando os contribuintes de fato (consumidores finais) que podem adquirir os bens necessários para suas necessidades sem gravames fiscais desproporcionais, frutos de uma tributação "em cascata".
Salta os olhos, verificar que determinadas legislações infraconstitucionais ignoram por completo o mandamento constitucional, limitando o conteúdo e o alcance da norma constitucional que garante a regra da não-cumulatividade. O Estado do Amazonas, através do art. 20, inc. XIV, da Lei Complementar nº 19/97 (Código Tributário do Amazonas), c/c o art. 31, inc. VII, do Dec. nº 20.686/99 (RICMS do Estado do Amazonas); instituiu a obrigação dos contribuintes em estornar os créditos do ICMS, sempre que alienar mercadorias por preço inferior à sua aquisição.
A vedação da utilização dos créditos nesta hipótese é manifestamente inconstitucional. A Constituição Federal de 1998 é categórica ao expor, no art. 155, § 2º, incs. I e II; que haverá limitação aos créditos de ICMS, somente em duas situações: isenção e não-incidência, casos em que o sujeito passivo deverá estornar o imposto objeto de creditamento.
Pela análise do referido dispositivo, percebe-se que a regra é a não-cumulatividade do ICMS, compensando-se o que foi pago nas operações anteriores com a seguinte. As únicas exceções a este dispositivo estão elencadas no inc. II, do mesmo diploma legal, ou seja, em caso de isenção ou não incidência. Deste modo, não há amparo legal para a exigência de estorno proporcional, quando se tratar de venda de mercadorias com preço inferior ao de custo, pelo simples fato de não se tratar de isenção ou não incidência.
Não pode uma norma infraconstitucional limitar um direito cosntitucionalmente previsto. O art. 155, § 2º, I, confere ao contribuinte o direito público subjetivo, oponível contra o Estado, de insurgir-se contra esta arbitrariedade, realizando as compensações devidas. Somente a própria constituição possui o condão de limitar esta regra, e o faz no inciso II, do § 2º, do art 155 da CF. Fora destas hipóteses qualquer óbice torna-se uma afronta ao mandamento constitucional, logo deve ser excluído do ordenamento jurídico. Como se não já bastasse à previsão constitucional, a não-cumulatividade foi reproduzida pela Lei Complementar 87⁄96 (Lei Kandir), que, mercê de norma regulamentadora, dispõe sobre a forma de compensação do tributo, disciplinando-a em seus arts. 19 e 20.
Em observância à Carta Constitucional e à citada LC 87⁄96, é possível afirmar-se que o princípio da não-cumulatividade enseja a utilização do crédito do imposto relativo à circulação de mercadorias diante de operações sucessivas, através do procedimento de compensação. In casu, a anulação parcial do crédito traduz desrespeito ao princípio da não-cumulatividade, e, destarte, aumento de tributo.
Como foi dito, a regra em apreço comporta, pelo Texto Constitucional, duas exceções, sendo vedado ao legislador infraconstitucional ampliar o alcance das mesmas. São elas as hipóteses da isenção e da não-incidência, casos em que o sujeito passivo deve estornar o imposto objeto de creditamento. Cumpre registrar, ainda, que o óbice imposto ao pretendido creditamento encontra vedação no disposto nos arts. 97, II e 99 do Código Tributário Nacional.
Abordando a questão em tela, pontua Roque Antônio Carraza [04]:
"Também a chamada venda com prejuízo dá direito a créditos de ICMS.
Melhor dizendo, se, na série de operações que levam a mercadorias do produtor ao consumidor final houver alguma "com prejuízo, nem assim o direito ao crédito se esvai (ou deve ser "estornado", na terminologia fazendária). Pelo contrário, o crédito não-utilizado, na "venda com prejuízo", é totalmente aproveitável na operação (ou prestação) seguinte, tributável por meio de ICMS.
Assim não é porque o contribuinte realizou a venda por preço menor ao da aquisição da mercadoria que pode ter restringido o gozo do direito.
Sustentar ao contrário é entrar em conflito com toda a sistemática da "não-cumulatividade" plasmada pela Constituição Federal.
Numa frase, o princípio da não-cumulatividade não perde sua eficácia quando, por qualquer motivo, houver "venda com prejuízo": a diferença acarretará crédito para compensação com o montante devido nas operações ou prestações seguintes."
A jurisprudência dos Tribunais Superiores em outras oportunidades ratificaram este entendimento [05]. Recentemente, o STF declarou a constitucionalidade do estorno proporcional dos créditos de ICMS, no RE 174.478-SP, quando há redução da base de cálculo, no momento da saída dos produtos. Neste caso, a Corte Maior considera que houve uma "isenção parcial". Hipótese que se enquadraria no § 2º, inc. II, do art. 155 da CF-88. Sem querer entrar no mérito da decisão da Suprema Corte, observamos que tal decisão não se aplica no caso em comento, pois não se trata de redução de base de cálculo (isenção parcial), mas sim da mera venda de mercadorias com preço abaixo do custo. Nesta hipótese ninguém se atreveria a enquadrá-la como "isenção parcial", não incidindo assim, na norma do § 2º, inc. II, do art. 155 da CF-88.
A Lei do estado do Amazonas impõe um gravame desproporcional às operadoras que prestam o serviço móvel pessoal – SMP, em virtude de limitarem o direito constitucional da não-cumulatividade das companhias, ao realizarem vendas de estações móveis celulares (aparelhos celulares) por um preço inferior ao da aquisição, impondo a elas a realização do estorno proporcional dos créditos.
Destarte, as operadoras inseridas em um mercado de alta competitividade, no qual o consumidor é o principal beneficiado, utiliza-se de estratégias comerciais agressivas em busca da captação de novos clientes (market share), bem como da fidelização de seus usuários. Uma das formas de alcançar estes objetivos é a venda das estações móveis celulares por preços subsidiados, onde as empresas de telefonia vendem estes produtos por um preço abaixo do mercado, objetivando a obtenção do lucro através da prestação de serviço de comunicação e serviços agregados, também conhecidos como "facilidades adicionais".
Quando o Estado do Amazonas ignora as disposições da carta Magna, esvaziando a regra da não-cumulatividade, desrespeita o direito fundamental de livre iniciativa das operadoras, realizando intervenções injustificadas no plano econômico. Ademais, prejudica toda a sociedade, onerando e dificultando o acesso destes bens cada vez mais necessários no cotidiano dos brasileiros, pois o ônus financeiro do aumento da carga tributária é inevitavelmente repassado para os consumidores finais, na figura de contribuintes de fato, pela própria natureza do ICMS.
A regra da não-cumulativade, neste mister, constitui-se em uma garantia do contribuinte, pois visam resguardar a eficácias de outros direitos. A regra da não-cumulativade tem como finalidade assegurar outros princípios como proporcionalidade, capacidade contributiva e vedação ao confisco [06]. No caso em comento, sua principal função é resguardar o direito da sociedade, nas suas diferentes classes sociais de consumirem estações móveis celulares a preços acessíveis, assim como a livre iniciativas das operadoras em empreender de forma livre, de modo que não sejam constrangidas por meio de tributação injusta e odiosa.
CONCLUSÃO
Por todo exposto, nos manifestamos pela inconstitucionalidade do art. 20, inc. XIV, da Lei Complementar nº 19/97 (Código Tributário do Amazonas), c/c o art. 31, inc. VII, do Dec. nº 20.686/99 (RICMS do Estado do Amazonas); que institui a obrigação dos contribuintes em estornar os créditos do ICMS, sempre que alienar mercadorias por preço inferior à sua aquisição, em razão da violação do art. 150, §§ 1º e 2º da CF-88, c/c arts. 19 e 20 da LC 87/96.
Caso prevaleça as disposições das normas do Estado do Amazonas, as quais limitam a regra da não-cumulatividade, a Constituição terá sido relegada a segundo plano em face dos objetivos financeiros imediatistas impostos pelo governo estadual; quando suas normas não são burladas, como no caso em comento, elas são "adequadas" aos planos de governo. Cada novo governo tenta "adequar" a Constituição de acordo com o seu projeto para o Estado brasileiro, e o resultado é uma instabilidade constitucional que chega a ponto de retirar da Constituição sua capacidade de regular a política, o que é manifestamente inconcebível em Estado Democrático de Direito.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CANOTILHO, JJ Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 2. ed. Coimbra: Almedina, 1998. p. 782
CARAZZA, Roque Antonio. ICMS. São Paulo: Ed. Malheiros. 10ª ed. 2005. p. 298
HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição (tradução de Gilmar Ferreira Mendes). Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991.
Notas
- Liberdade de livre iniciativa, liberdade de religião, liberdade de locomoção, liberdade de expressão, entre outras.
- Esta afirmação deve ser interpretada com suas devidas ressalvas. É certo que até mesmo nas liberdades clássicas, torna-se imperioso a intervenção estatal. Como exemplo, podemos citar a liberdade religiosa e a propriedade privada. A liberdade religiosa precisa que o Estado assegure à todos, o direito de manifestar sua religiosidade, impedido que outros cidadãos limitem esse exercício. Do mesmo modo a preservação do direito de propriedade depende de um eficiente sistema de segurança pública.
- ADI 939 / DF - DISTRITO FEDERAL
- CARAZZA, Roque Antonio. ICMS. São Paulo: Ed. Malheiros. 10ª ed. 2005. p. 298
- Recurso Especial Nº 615.365 - Rs (2003⁄0231333-3) – Stj - Primeira Turma
- Primeiramente é importante destacar a diferença conceitual entre direitos e garantias. Na verdade a diferença entre estas duas figuras reside, justamente na função para cada qual foi instituído, pois ambas são normas jurídicas, ou seja "direitos". A diferença consistiria na razão das garantias serem direitos que visam resguardar a observância e aplicação de outros direitos. Sendo assim, não me parece correto fazer a distinção entre "direitos e garantias", uma vez que ambos são direitos, mas sim fazer a distinção entre direitos-garantias e direitos-fins. Os primeiros teriam a função de resguardar a eficácia dos segundos. Imaginemos o seguinte caso, o direito ao habbes corpus não vale por si mesmo, este direito não é invocado para ser exercido de forma autonôma e exclusiva, o paciente quando o reclama visa obter um direito por ele resguardado, qual seja, o de liberdade. (CANOTILHO, JJ Gomes.Direito constitucional e teoria da constituição. 2. ed. Coimbra: Almedina, 1998. p. 782)
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE
Relator(a): Min. SYDNEY SANCHES
Julgamento: 15/12/1993 Órgão Julgador: TRIBUNAL PLENO
Publicação: DJ 18-03-1994 PP-05165 EMENT VOL-01737-02 PP-00160 RTJ VOL-00151-03 PP-00755