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Estado e discurso jurídico.

A defensoria pública brasileira frente ao processo crime tráfico de drogas

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23/05/2009 às 00:00
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8. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O sujeito advogado a partir da interpretação do enunciado do sujeito Juiz, na Sentença, reconstrói sentidos a partir de indicações presentes no enunciado produzido e, assim, a construção de um novo sítio de significância. Ao mesmo tempo em que os discursos parecem se confraternizar eles "lutam" em uma esfera social.

Isso se dá pela materialidade da linguagem, pelo lingüístico e pelo histórico, inseparáveis no campo do discurso, o que resulta na amostragem do sujeito e, conseqüentemente, dos sentidos. Discurso como peça-objeto de um jogo ou uma circunstância, mas, ainda melhor, como uma peça no século XXI que produz efeito, efeito de sentido entre sujeitos ideologicamente significantes. Tal peça construída sobre uma base sólida entre o histórico e o social, portanto o discurso efetivamente constrói redes de significância ao longo do tempo, em um determinado espaço, seja ele pequeno ou não, e, principalmente, para outros sujeitos.

O que determina um sentido e não outro, ou vice-versa, o que determina uma dada significância e não outra, nas relações sociais modernas que vivemos, é o discurso. Assim o discurso estabelece a existência do sujeito, a sua significância, por enunciar um conjunto de palavras. É preciso que as palavras já signifiquem para que elas façam sentido. Além disso, diante do objeto simbólico, o sujeito é incitado a dar sentido, a significar. Mas os sentidos jamais estão de forma solta e aleatória e sim sempre na injunção a significar (ORLANDI, 1996).

O que é e o que deve ser, como tanto Pêcheux mencionou em Semântica e Discurso, em um sujeito, é o trabalho da exterioridade discursiva, do conjunto dizível, isto é, do interdiscurso que determina o que fala sempre antes, em outro lugarejo e de forma não dependente. Ele que fornece as evidências pelas quais o sujeito identifica o que é tal coisa e assim se posiciona.

Essas evidências, no campo jurídico, especificamente, no processo penal, corpus desta pesquisa, foram possíveis de serem identificadas ou reconhecidas a partir de seqüências discursivas ou acontecimentos discursivos tanto dos sujeitos réus e advogado, quanto do sujeito Juiz. Dessa forma, cada sujeito teve um lugar de significância no decorrer do processo jurídico, no espaço de poder, de liberdade e de reclusão. Como afirmou Courtine (2006): o sujeito que se dispõe a enunciar um discurso realmente assujeita-se a muitas condições de produção e recepção de seu enunciado.

Pêcheux (1995) afirma que o dizer de um sujeito sempre se inscreve por identificação em alguma FD que autoriza e também impede certos discursos, mesmo indo a desencontro de determinados sentidos, como ocorreu após a Sentença, vistos na Apelação do sujeito defensor público. Assim este sujeito tem relação com o discurso assim como tem também com a realidade discursiva, pelo efeito de exterioridade. Esse efeito possibilita a relação discursiva real/realidade. Real no que tange à materialidade das condições de produção dos sujeitos envolvidos no processo penal e realidade no que diz respeito à relação imaginária especificamente do sujeito defensor público, o qual tem a função de defender os réus e lutar pela absolvição.

Ora, a relação discursiva real/realidade não é consciente, pois é efeito da relação do sujeito com a língua (tal como é enunciada) e com a história [29] (enquanto materialidade simbólica). Só pode ter língua e história conjuntas pelo efeito ideológico. Isso para dizer que o discurso do sujeito advogado é a conjuntura da língua com a história, pois ele produz a impressão de realidade e formula os enunciados, como podemos ver anteriormente. Tal formulação é o gesto ideológico, o que põe em jogo o "ego imaginário" (uma relação entre o campo do simbólico, do imaginário e do real [30]) nesse sujeito em que o assujeitamento está sob a forma da autonomia (PÊCHEUX, 1995; ORLANDI, 1996).

O assujeitamento sob a forma da autonomia é o que permite ao Código Civil determinar ao sujeito os direitos e as obrigações. Por isso, na Ordem Jurídica Brasileira, um dos princípios fundamentais é o reconhecimento da pessoa e dos direitos da personalidade, a partir da concepção e do nascimento com vida do ser humano, conforme artigo 2º (BRASIL, 2005). Isso envolve inclusive ao respeito devido aos direitos fundamentais do homem e o da autodeterminação.

Para o Direito, o homem é, de uma maneira geral, ser racional. Ser que existe como um fim em si mesmo e não só constituído pela arbitrariedade desta ou daquela vontade. Uma pessoa autônoma é um indivíduo capaz de deliberar sobre seus objetivos pessoais e de agir na direção desta deliberação (KANT, 2003; COELHO, 2004).

Em relação às considerações, tanto ancorado na Análise do Discurso, na Filosofia, como no Direito, o sujeito advogado, o qual cumpre o papel de defensor público, segundo informação obtida no arquivo jurídico, ao mesmo tempo é livre e submisso. A Formação Discursiva lhe possibilita ser livre e independente quanto à produção de sentidos, e assim significar-se, e, ao mesmo tempo, submisso a ela, pelas estruturas internas, as quais vão estabelecer relação de encontro ou desencontro, confraternização ou luta entre os enunciados dos diferentes sujeitos envolvidos na rede discursiva. Essa interpelação constitui contraditoriamente uma dupla determinação. O sujeito é determinado pela exterioridade o que vem determinar, internamente, o sentido e a significância pela FD, resultando em uma posição-sujeito.

Com isso, vê-se o sujeito advogado como sujeito ideológico em um determinado espaço, tempo, e por um discurso constituído de significados, os quais possibilitam a luta por determinado objetivo. Desidentificando-se com a FD do sujeito Juiz, o defensor organiza, pela forma-sujeito, os saberes na sua FD. Portanto, desliza de uma determinada forma de subjetivação para assumir outra, o que permite identificar-se com uma outra forma-sujeito e, em vista disso, outro domínio de saber, tudo para cumprir o seu papel, libertar o criminoso.

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Neste contexto, o sujeito representa valores, sentidos e símbolos. Assim o sujeito advogado representa-se com um valor de Direito e cujo símbolo de defensor público, tudo formulado e constituído por uma rede ideológica em que ele se encontra numa conjuntura de poder e coerções, as quais são direcionadas para determinado lugar e não outro, para uma significância e não outra, dependentemente da(s) Formação Discursiva que o domina(m).

Em razão a isso, o sujeito defensor público representa uma concepção ideológica, o que não difere do sujeito Juiz. Este, no entanto, apresenta uma concepção mais sociológica, pois se mantém diante da certeza e da compreensão do fato humano, muitas vezes vindo a solucionar o caso/fato em consonância com soluções já realizadas em outros casos/fatos, assim assumindo o caráter de Direito sob a perspectiva de jurisprudência, assumindo a função de legislar, aplicar as leis, os conhecimentos (KELSEN, 2006).

Destaca-se, então, o "eu real" do advogado, pois ele é formado e modificado num diálogo contínuo com a realidade capitalista, individualista e baseada no poder, na coerção, mantendo-se uma relação, às vezes, de conflitos com o mundo da Justiça, dos valores e princípios regulados pelos documentos oficiais, como os Códigos Penal e Civil, por exemplo. Com isso, a posição do sujeito defensor público se constitui, como observamos nas análises, desidentificando-se com o sujeito universal, sujeito da ciência jurídica, mesmo visando ao Direito, para poder atingir a absolvição.


Notas

  1. Pêcheux desde sua produção teórica inicial reconstruiu e retificou aspectos teóricos no campo da Análise do Discurso de linha francesa (GREGOLIN, 2004). Alguns enfoques dados pelo autor em 1969 (sua tese AAD-69), que embasaram a constituição do projeto teórico da Análise do Discurso no contexto histórico francês dos anos 1960, foram revisitados e reconsiderados em 1975 na obra Les Vérités de La Palice, Paris, Maspero, traduzida por Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação ao óbvio, Campinas: Editora da Unicamp, 1988. Com uma nova conjuntura teórica da Análise do Discurso nos anos de 1980, especificamente sobre a necessidade de repensar o funcionamento das práticas discursivas, de admitir a existência do equívoco como fato estrutural, por exemplo, Michel Pêcheux publica sua obra, original em francês, derivada da conferência "Marxismo e Interpretação da Cultura: Limites, Fronteiras, Restrições" realizada em 8 a 12 de julho de 1983 na Universidade de Illinois Urbana-Champaign, Discourse: Structure or Event? Illinois University Press, 1988, traduzida mais tarde por Eni P. Orlandi, sem o ponto de interrogação, em O Discurso: estrutura ou acontecimento, Campinas, São Paulo: Pontes. O presente artigo "navegará" teoricamente por esses textos com especial atenção ao último citado.
  2. Esse texto foi publicado em Por uma Análise Automática do Discurso: Uma introdução à obra de Michel Pêcheux (obra conhecida também como AAD-69). Na visão de Gregolin (2004, p. 61), nesse livro é tratado "de uma proposta teórico-metodológica impregnada pela releitura que ele faz de Saussure, deslocando o objeto, pensando a langue (sua sistematicidade; seu caráter social) como a base dos processos discursivos, nos quais estão envolvidos o sujeito e a História". Também, nessa mesma obra, no artigo "A Análise de Discurso: Três Épocas", Pêcheux mantém duas idéias básicas de Saussure: "a língua é um sistema e, portanto, tem uma organização; a língua é uma instituição social" (nota 41). Daí, então, o autor pensou e focalizou o processo discursivo, tratando de um novo objeto: o discurso.
  3. Como o próprio nascimento da análise do discurso, origem francesa da dupla fundação, no final dos anos 60, de Jean Dubois e de Michel Pêcheux, na França, de um cenário epistemológico inter/transdisciplinar entre lingüística (uma teoria lingüística), marxismo (uma teoria da história) e psicanálise (de uma teoria do sujeito), em torno, respectivamente, de Saussure, Marx e Freud.
  4. Direito visto como ciência associada à "jurisprudência". Bobbio, por exemplo, mostra uma mudança no entendimento da razão e da verdade como pontos absolutos de sustentação do saber científico. "A concepção da verdade absoluta seria trocada por uma concepção convencionalista da verdade". Em tal concepção "se trata de uma expressão da mentalidade iluminista em sentido amplo, contendo, pois, elementos da lógica abstrata e da Matemática. Duas asserções a demarcam claramente: 1) o mundo é um sistema ordenado regido por leis universais e necessárias (racionalismo objetivo ou metafísico); 2) o homem é um ser razoável, isto é, dotado de uma faculdade que lhe permite compreender aquelas leis (racionalismo subjetivo e metodológico)" (NAPOLI & GALLINA, 2005, p. 24-25).
  5. "O objeto da ciência jurídica compreende as normas postas pelas autoridades competentes" (COELHO, 2001, p. 49).
  6. "Os enunciados pertinentes à conduta humana, nos quais se afirma a derivação de determinadas conseqüências da verificação de certos fatos, não são essencialmente diversos dos formulados pelas outras ciências" (COELHO, 2001, p. 49).
  7. Processo discurso no sentido de produção de enunciados ao decorrer do processo penal.
  8. Corpus ou forma de corpus, noção de Courtine. Ver COURTINE, J. J. Analyse du discours politique. Le discours communiste adressé aux chrétiens. In.: Langages, 62, 1981.
  9. Ver GUILHAUMOU, Jacques. Le corpus em analyse de discours: perspective historique. Corpus, Número 1. Corpus et recherche linguistiques – novembro 2002.
  10. Para ele, inconsciente sob os postulados freudianos, prova disso a alusão que o teórico francês faz à frase conhecida pela Psicologia: "o inconsciente é eterno" (PÊCHEUX, 1995).
  11. Ideologia sob a visão marxista, conforme Pêcheux (na obra Semântica e Discurso) a partir de Althusser (na obra Aparelhos Ideológicos do Estado). Mergulhado em Marx, Althusser afirma que a ideologia não tem história, em relação à concepção de Freud segundo a qual o inconsciente é eterno, assim formarão o alicerce de uma ideologia vista como eterna, onipresente e imutável, representante da relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência (ALTHUSSER, 1992, p. 85).
  12. Com essa herança teórica, Pêcheux afirma desde AAD-69 o caráter social do sujeito: "lugar determinado na estrutura social" (in GADET & HAK, 1997, p. 82).
  13. Ambos no "processo do Significante na interpelação e na identificação" (PÊCHEUX, 1995).
  14. Termo buscado por Pêcheux em Foucault. Segundo Foucault (1972), uma formação discursiva se estabelece a partir de determinadas regularidades que definem as condições de existência, coexistência, transformação e desaparecimento de certos enunciados discursivos.
  15. Com base nessa informação, Pêcheux afirma a articulação entre ideologia e inconsciente emergentes ao sujeito.
  16. Palavras e expressões destacadas conforme o autor em Semântica e Discurso.
  17. Como o lugar ao qual o sujeito retorna para produzir o seu dizer. O interdiscurso representa uma dimensão não-linear do dizer, sua verticalidade, fazendo-nos ingressar no campo do pré-construído, do já-dito, para o qual o sujeito se volta ao identificar-se com a formação discursiva (FD) a partir da qual construirá o seu discurso.
  18. Conforme o rito processual Relatório – p. 06-07 (processo penal LRAB Nº 70010801421).
  19. Foi substituído o nome dos denunciados por "X", "Y" e "Z", para fim de sigilo nominal. A partir já deste recorte do processo penal será referido aos denunciados, sujeitos que praticaram o crime, por esta legenda.
  20. Na seção 6 Estrutura: Enunciado, Ideologia e Deslizamento.
  21. Conforme o rito processual Relatório – p. 06-07 (processo penal LRAB Nº 70010801421).
  22. O artigo 12 "prevê a reclusão de 3 (três) a 15 (quinze) anos e pagamento de 50 (cinqüenta) a 360 (trezentos e sessenta) dias multa" e o artigo 14 "prevê a reclusão de 3 (três) a 10 (dez) anos" e o mesmo pagamento, conforme artigo 12, à associação de 2 (duas) ou mais pessoas para o fim de praticar tal crime (BRASIL, 1976).
  23. Foucault nomeia alguns teóricos como Beccaria, Bentham, Brissot.
  24. Esta não permitida no Brasil: "Mata-se quem matou; tomam-se os bens de quem roubou; quem cometeu uma violação..." (FOUCAULT, 2005, p. 83).
  25. Conforme rito processual pág. 07-08 (processo penal LRAB Nº 70010801421).
  26. Trata-se de um defensor público, conforme o processo penal.
  27. Se olharmos esse sujeito pelo ato de enunciar, como "sujeito da enunciação", só pode ser visto, conforme Pêcheux (1997, p. 314), "em termos da ilusão do "ego eu" ["moi-je"] como resultado do assujeitamento (...) freqüentado pelo tema spinozista da ilusão subjetiva produzida pela "ignorância das causas que nos determinam". (Os destaques são do autor referido).
  28. Essa ocorrência funciona pela memória do sujeito advogado, de forma inconsciente, pois "o sujeito diz, pensa que sabe o que diz, mas não tem acesso ou controle sobre o modo pelo qual os sentidos se constituem nele". Por isso, o dizer sempre pode ser outro, o que vem demonstrar a existência da ideologia (ORLANDI, 2003, p. 33).
  29. História no que diz respeito a discurso, a tempo (na relação sujeito/sentido) e espaço.
  30. Lembrando aqui termos lacanianos.
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Sobre o autor
Lucas do Nascimento

Graduado em Letras; Graduando em Direito na UNIP; Mestrando no Programa de Pós-graduação em Linguística, no Centro de Educação e Ciências Humanas, da Universidade Federal de São Carlos; Assessor e consultor do MEC (gestão 2009-2010); Integrante aos grupos de pesquisa LABOR (UFSCar/CNPq) e GEADA (UNESP/CNPq).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NASCIMENTO, Lucas. Estado e discurso jurídico.: A defensoria pública brasileira frente ao processo crime tráfico de drogas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2152, 23 mai. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12826. Acesso em: 26 abr. 2024.

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