5) Teses novas favoráveis ao INSS e pouco acolhidas
Outro fator de desequilíbrio do sistema atuarial decorre de decisões judiciais que não acolhem teses que são favoráveis ao INSS.
Como exemplo disso, trago à baila, a tese da decadência da revisão de benefícios previdenciários concedidos antes de 28 de junho de 1997, em ações ajuizadas posteriormente a 28 de junho de 2007, sob a alegação infundada de que a decadência não poderia retroagir para prejudicar benefícios concedidos antes de sua criação legal. Ocorre que, nesse caso, não estamos falando de aplicação retroativa da lei que criou o prazo decadencial, mas sim de aplicação imediata da norma jurídica, conforme ensinamentos de Paul Roubier [10]. Entendimento correto sobre a matéria foi sumulado pela Turma Recursal dos Juizados Especiais Federais do Estado do Rio de Janeiro, através do enunciado nº 63 [11], cuja redação é a seguinte:
"Em 01.08.2007 operou-se a decadência das ações que visem à revisão de ato concessório de benefício previdenciário instituído anteriormente a 28.06.1997, data da edição da MP 1.523-9, que deu nova redação ao art. 103 da L. 8.213/91." [12]
O Rio de Janeiro é, por enquanto, o único estado em que esta tese teve uma excelente receptividade. Preferindo o Poder Judiciário de outros estados continuarem a proferir decisões que representam uma sangria de dinheiro público, criando benefícios em que para o segurado não existiria prazo decadencial de revisão, mas para a Administração Pública sim. Ora, como é possível explicar que a Administração pode ser compelida a observar um prazo decadencial, contado a partir da vigência da lei de sua criação, e o segurado não, podendo optar por rever seu benefício a qualquer tempo?
Outra questão que merece análise mais aprofundada diz respeito à aplicação das teorias do venire contra factum proprium e da supressio em favor da Administração Pública. Tratam-se de instituto de Direito Privado que pode ser facilmente aplicado ao Direito Público, eis que referem-se a dois comportamentos de uma mesma pessoa para com outrem, com base no princípio da boa-fé objetiva, que vedam o comportamento contraditório.
O venire contra factum proprium refere-se a situação em que uma determinada pessoa, durante determinado lapso temporal, comporta-se de tal maneira que a outra pessoa cria uma legítima expectativa de que seu comportamento não se alterará, quebrando a boa-fé objetiva. São, portanto, quatro os seus elementos: comportamento, geração de expectativa, investimento na expectativa gerada e comportamento contraditório.
A supressio, por sua vez, consiste "em limitação ao exercício de direito subjetivo que paralisa a pretensão em razão do princípio da boa-fé objetiva. Para sua configuração, exige-se (I) decurso de prazo sem exercício do direito com indícios objetivos de que o direito não mais será exercido e (II) desequilíbrio, pela ação do tempo, entre o benefício do credor e o prejuízo do devedor. Lição de Menezes Cordeiro" (TJRS, Apelação Cível Nº 70001911684, Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Maria Isabel de Azevedo Souza, Julgado em 04/12/2000).
Exemplificando, trago um caso concreto onde atuei. O segurado, em 1998, requereu e teve concedido benefício de auxílio-doença por um mês, com Data de Cessação de Benefício (DCB) previamente fixada na Carta de Concessão, tendo este cessado em novembro de 1998. No final de 2007, o segurado, agora autor, ajuiza ação pretendendo o restabelecimento do referido benefício, cessado há quase 10 anos atrás, alegando que o INSS agiu de forma ilegal ao cessá-lo sem que o mesmo tivesse readquirido condições de trabalho. A defesa do INSS em Juízo, nesse tipo de ação, acaba por ser prejudicada eis que, em se tratando de concessão muito antiga, por vezes a Autarquia Previdenciária não encontra o processo administrativo de concessão, até mesmo porque o seu dever de guarda desses processos, em regra, é de 5 anos. Assim, não é possível verificar se o autor pleiteou ou não o restabelecimento do benefício ou não. Ora, será que nesse caso é justo que o INSS seja obrigado a pagar todo o período em que o segurado esteve sem receber benefício, mesmo sabendo que o grande culpado é o próprio autor, que demorou quase 10 anos para ajuizar uma ação judicial, sem nem mesmo ter requerido novamente o benefício? A solução para este caso está na aplicação das teorias do venire contra factum proprium e supressio, teorias que já são bem aceitas em nossa jurisprudência pátria [13], eis que o INSS tinha a legítima expectativa de não esperar que uma pessoa que ficou anos sem receber o benefício de auxílio-doença e somente havia recebido prestação eqivalente a um mês de benefício, venha agora a pleitear quase 10 anos de benefício.
6) Conclusão
Conforme se verificou no presente trabalho, as decisões do Poder Judiciário, por vezes (e muitas vezes), extrapolam o seu poder de Controle sobre a Administração Pública, afrontando a diversos princípios constitucionais, como o princípio da independência e harmonias entre os poderes, o princípio atuarial do sistema da Seguridade Social, o princípio da legalidade, o princípio da vedação à estensão de benefícios da seguridade social sem prévia dotação orçamentária, princípio da reserva de plenário, dentre outros.
Assume, assim, as funções similares a de um administrador assistencial, concedendo benefícios e permitindo revisões que, por nosso ordenamento jurídico, não seriam admitidos. Frise-se que o Poder Judiciário não apenas está estendendo, de forma exacerbada, as normas da seguridade social, como tem deixado de aplicar teses, com fundamentos incontestáveis, que são favoráveis à Administração Pública, como a da decadência do direito à revisão de benefício previdenciário, do venire contra factum proprium e da supressio.
Isso faz com que haja um prejuízo incalculável ao erário público, gerando prejuízo ao cálculo atuarial de todo o sistema de Seguridade Social e causando insegurança jurídica à Administração no que tange às ações de política pública. O assistencialismo que está sendo feito pelo Poder Judiciário agora, nas ações referentes aos benefícios da seguridade social, irá gerar prejuízos para as futuras gerações de segurados, inclusive com a possibilidade de ruptura econômica da Previdência Social, gerando sua "quebra", sua "falência".
Portanto, faz-se necessária uma reflexão aos operadores do Direito que atuam nessa área, a fim de questionar qual o país que esperamos no futuro.
BIBLIOGRAFIA
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 17ª Ed. São Paulo: Editora Atlas, 2004.
FILHO, MARÇAL JUSTEN. Curso de Direito Administrativo. 3ª Ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2008.
IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de Direito Previdenciário. 9ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Impetus, 2007.
MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 12ª Ed. São Paulo: Editora Revisa dos Tribunais, 2008.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 20ª Ed. São Paulo: Editora Atlas, 2006.
Notas
- Para maiores detalhes sobre Direito à saúde, ver artigo de minha autoria, tendo como co-autor o advogado Marcelo Dealtry Turra. TURRA, Marcelo Dealtry; LOPES, Carlos Côrtes Vieira. Direito à saúde como direito de cidadania. Alguns aspectos práticos. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 881, 1 dez. 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/7648>.
- Há doutrinadores que entendem equivocada a expressão, por entenderem que o Poder é uno, o que se divide são as funções desse poder. Utilizam para fundamentar esta posição dos ensinamentos de Montesquieu, em sua obra "O espírito das leis". A meu ver esta posição está equivocada, tendo em vista que o ordenamento pátrio tem por base a sua lei maior, a Constituição da República, promulgada pelo Poder Constituinte Originário, sendo este iniciador e desvinculado de qualquer doutrina anterior. Ora, não é a Constituição que deve se adequar à doutrina, mas sim a doutrina que deve fazer uma leitura adequada da Constituição. Trata-se do mesmo erro que incidem diversos penalistas ao afirmarem que a pessoa jurídica não pode responder por crime, querendo se utilizar de teorias trazidas do exterior que não se adéquam à Constituição Federal.
- FILHO, MARÇAL JUSTEN. Curso de Direito Administrativo. 3ª Ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2008. p. 879.
- FILHO, MARÇAL JUSTEN. Curso de Direito Administrativo. 3ª Ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2008. p. 894/895.
- DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 17ª Ed. São Paulo: Editora Atlas, 2004. p. 640. Ressalto aqui meu entendimento de que o ato imoral é aquele que tem desvio de finalidade e, assim, seria de plano ilegal, por vício em um dos seus requisitos de validade, qual seja a finalidade de interesse público.
- DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 17ª Ed. São Paulo: Editora Atlas, 2004. p. 67/68.
- MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 12ª Ed. São Paulo: Editora Revisa dos Tribunais, 2008. p. 124
- MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 20ª Ed. São Paulo: Editora Atlas, 2006. p.32.
- IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de Direito Previdenciário. 9ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Impetus, 2007. p.38.
- ROUBIER, Paul. Les Conflits de Lois Dans Le Temps, Paris, 1929
- Para maiores detalhes sobre o assunto recomendo a leitura de artigo de minha autoria, denominado "Decadência do Direito à revisão de benefício previdenciário (uma análise de Direito Intertemporal)" , publicado na Revista Direito e Política, n. 16 (IBAP); Revista de Direito do Trabalho, n. 8 (CONSULEX); Revista da EMERJ, n. 43; Revista da EMARF, n. 1, vol. 11; Revista Virtual da AGU, n. 77; Revista de Doutrina da 4ª Região, n. 24.
- O Superior Tribunal de Justiça tende a adotar este entendimento, reformando a jurisprudência sedimentada da corte, conforme decisões no RESP 110.526 e no RESP 110.836.
- No Superior Tribunal de Justiça (STJ) há diversas decisões: AI 1.130.131, AI 1.113.634, AI 1.085.209, RESP 207.509, RESP 214.680, AI 921.308.