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Os contratos do SFH anteriores ao CDC sem cobertura pelo FCVS.

Saldo residual e a Lei nº 11.922/09

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19/05/2009 às 00:00
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7.OS PRINCÍPIOS DA BOA-FÉ OBJETIVA E DA FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS

Como acima afirmado, os mutuários já foram suficientemente onerados do ponto de vista financeiro e jurídico.

Além de frustrados na execução contratual, porque esperavam sinceramente que ao final do pagamento de todas as prestações sua obrigação estivesse extinta, agora surge lei aparentemente benéfica que, entretanto, esconde em seu bojo mais um agravo aos princípios da boa-fé objetiva e da função social dos contratos, expressamente adotados pelo ordenamento jurídico pátrio.

A legislação vem em momento estratégico, em que o poder judiciário começa a rever as possibilidades de intervenção na contratualidade, declarando, em muitos casos, extinta a obrigação dos mutuários, como se pode ver dos excertos, que vale a pena transcrever, com alguns recortes feitos pelo autor do presente trabalho, de decisão liminar em ação civil pública, movida brilhantemente pelo núcleo da Defensoria Pública da União no Estado de Alagoas, processo n.º 2009.80.00.1675-2:

"Decisão

Trata-se de ação civil pública ajuizada pela Defensoria Pública da União em Alagoas contra a Caixa Econômica Federal, através da qual objetiva provimento jurisdicional, inclusive liminar, que obste a ré de proceder a cobrança do saldo residual dos contratos de financiamento habitacional, sem cobertura do fundo de compensação de variação salarial – FCVS -, após o pagamento das prestações devidas no período normal de amortização.

Esclarece a douta Defensoria que no início da década de 1990 a CEF celebrou numerosos contratos de adesão sem deles constar a cobertura do FCVS, mas sim a responsabilização do mutuário, após o pagamento das parcelas ajustadas, em adimplir eventual saldo residual.

A referenciada cláusula contratual, segundo a autora, colide com o princípio constitucional da proteção ao consumidor e com diversos preceitos da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código do Consumidor), eis que tem Ensejado a cobrança de prestações abusivas, colidentes com o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos, conduzindo os mutuários a uma situação de insuportabilidade financeira, desaguando na perda do imóvel financiado e pago durante longos anos.

Postula, em suma, que seja liminarmente proclamada a nulidade da cobrança do "saldo residual" dos contratos sem cobertura do FCVS, após ultimado o pagamento das prestações, exonerando-os das cobranças abusivas que têm sido praticadas pela CEF.

Decido.

A legitimidade ativa da douta Defensoria Pública da União se me mostra reconhecida diante do art. 134 da Constituição Federal, regulamentado pela Lei Complementar nº 80/94, que estabelece como função institucional da mesma o patrocínio de direitos e interesses do consumidor lesado". Nesse diapasão, o Colendo Superior Tribunal de Justiça, em acórdão relatado pelo eminente Ministro José Delgado, dispôs que esta corte "vem se posicionando no sentido de que, nos termos do art. 5º, II, da Lei 7.347/85 (com a redação dada pela Lei nº 11.448/87), a Defensoria Pública tem legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar em ações civis públicas que buscam auferir responsabilidade por danos causados ao meio-ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico (REsp 91 2849, 1ª Turma, julgado em 26/02/2008).

Analisando a questão sob o prisma do planejamento do sistema habitacional, e considerando as imperfeições com que os valores das prestações foram prognosticadas, o Desembargador Federal Francisco Cavalcanti, nos autos dos embargos infringentes na Apelação cível nº 177362- SE, assim se pronunciou:

"não é aceitável a imputação ao mutuário de todos os riscos que envolvem o negócio jurídico firmado, enquanto a instituição financeira fica salvaguardada de contínuas oscilações da economia e dos índices financeiros."

"A cláusula do resíduo, da forma como atualmente evolui o saldo devedor, transforma mesmo o contrato de mútuo/compra e venda em contrato de aluguel perpétuo, haja vista que, não tendo o mutuário como saldar o débito residual, perderá o imóvel que acreditava estar adquirindo a cada prestação adimplida (cf. fl. 21)."

Registrando idêntica sensibilidade jurídica à questão, o Des. Federal Paulo Gadelha, na AC 339465-CE, assentou que "seria iludir o mutuário manter um contrato de financiamento com prestações reajustadas pelo mesmo índice aplicada ao seu salário, possibilitando-lhe assim a satisfação dos encargos mensais por cerca de 20 anos ou mais para, ao final do prazo de amortização, findar este mutuário por perder o bem que tencionava adquirir, porque o saldo devedor foi reajustado por índice diverso, tornando a dívida incompossível de ser paga pelos recursos auferidos de seu labor".

Pronunciando-se enfaticamente acerca da nulidade da cláusula em epígrafe, a Des. Federal convocada Joana Carolina Lins Pereira assentou que "além da necessidade de exclusão da ‘série em gradiente’, também é de se incluir a cláusula de resíduo do contrato de mútuo. Tal mecanismo desvirtua não só a finalidade social do SFH, como inviabiliza a resolução do contrato, pela impossível solvabilidade que se instala com o resíduo devedor" (TRF – 5ª R, Pleno EIAC 180578-SE, DJ 30/05/06).

De igual modo entendo configurado o receio de dano irreparável, pois as cobranças unilaterais promovidas pela CEF passam inteiramente ao largo dos rendimentos atuais dos contratantes, desconsiderando-os totalmente, a ponto de as novas prestações assumirem valores altíssimos, comprometendo e até superando os rendimentos do

adquirente. Tal postura, além de ilegal, implica profundo desassossego e desorganização da economia doméstica de milhares de famílias, expondo-as inclusive aos danos de uma execução extrajudicial e a inclusão em cadastros de inadimplentes.

Entendo, em suma, que o pleito liminar procede parcialmente, haja vista que as providências de declaração de quitação e liberação de hipoteca, por seus efeitos exaurientes, descabem neste juízo perfunctório.

Por todo o exposto, defiro parcialmente o pleito liminar, determinando que a Caixa Econômica Federal em Alagoas se abstenha de proceder a cobrança de "saldo residual" dos mutuários na situação em epígrafe, residentes e domiciliados em Alagoas, que tenham adimplido todas as prestações de seus respectivos contratos, no período normal de amortização. Determino, ainda, que a CEF se abstenha de proceder à execução extrajudicial, bem como inscrever os mutuários em cadastros de inadimplentes, até ulterior deliberação.

Cite-se a CEF para o imediato cumprimento desta decisão e

para apresentar contestação, no prazo legal.

Maceió, 07 de abril de 2009.

Sérgio José Wanderley de Mendonça

Juiz Federal Titular da 2ª Vara"

É interessante a transcrição dos excertos da decisão judicial de Alagoas, porque parece que o legislador, antevendo a possibilidade de firmar-se posição jurisprudencial desfavorável aos interesses dos agentes financeiros operadores do SFH, buscou oferecer, maliciosamente, um acordo aos devedores que preencherem as condições do novo diploma legal, apresentando-lhes uma chance de liquidação da obrigação contratual pendente, praticamente produzindo uma cortina de fumaça para desviar a atenção do cidadão da via judicial, plenamente viável para livrá-lo da injusta situação gerada pela imprevidência do poder público, que eternizou o saldo devedor em alguns contratos habitacionais.

Não se está aqui a estimular a judicialização das controvérsias relativas aos contratos habitacionais, por espírito emulativo, obviamente.

O que se pretende esclarecer é que, em vez de aderir a outro plano de pagamento de obrigação que já deveria estar extinta, considerando-se a contratação inicial, pode o mutuário, seja individualmente, seja através das ações coletivas autorizadas pelo sistema processual integrado do Código de Defesa do Consumidor e da Lei 7.347/85, buscar a declaração judicial da extinção de sua obrigação original, sem necessitar submeter-se ainda outra vez ao arbítrio dos gestores do SFH, que transferem para a parte contratual mais fraca, hipossuficiente por excelência, todos os ônus e riscos da operação negocial realizada inicialmente.

Não se está aqui a discutir os motivos que conduziram ao desequilíbrio contratual observado em determinadas avenças realizadas no âmbito do SFH: inflação descontrolada, imprevidência do poder público relativamente à execução contratual sabidamente de longo prazo, distúrbios da macroeconomia mundial, dentre outros.

O que se questiona é que problemas ocorreram e os contratos não foram executados e as obrigações extintas a contento, através da liquidação do saldo devedor e, ao longo de décadas, senão toda a responsabilidade, mas a maior parte dela, vem sendo carreada aos mutuários, que são, como acima afirmado, a parte contratual hipossuficiente, vinculada a contratos de adesão, tendo confiado na política governamental de na área habitacional.

Os mutuários aderiram aos contratos tipo, padronizados, apresentados pelos operadores do SFH, crendo que ao final da execução contratual suas obrigações estariam extintas e se viram, depois de anos pagando as prestações avençadas, presos a saldos devedores que superavam em muito o valor de mercado dos imóveis financiados.

De pretensos proprietários da tão sonhada casa própria, passaram a eternos inquilinos do SFH.

Sem dúvida, estender ainda mais obrigações que já se arrastam por décadas, após o integral pagamento de todas as parcelas contratadas, viola tanto o princípio da função social do contrato, quanto o da boa-fé objetiva, inscritos expressamente no código civil, nos artigos 421 e 422.


8) ART. 5º DA LICC E O DIREITO SOCIAL DE MORADIA

O artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, exige que o juiz, no ato de julgar, atente para os fins sociais a que o direito visa atingir, evitando que o ato jurisdicional não se torne vazio de valor, mero ato mecânico de aplicação da lei.

O direito social de moradia encontra-se inscrito no art. 6º da Constituição da República, devendo servir como vetor inarredável para a correta interpretação das normas que estruturam o SFH e da novel legislação de que ora se trata.

Como acima afirmado, a Lei 11.922/09, no sentir do autor, foi cunhada com o objetivo de dar solução aos contratos habitacionais com desequilíbrio contratual, mas também sem perder de vista a tendência jurisprudencial de considerar quitado o saldo devedor de determinados contratos inadimplidos pelos mutuários.

Assim, há de se impor vertente hermenêutica que não inviabilize o manejo de ações judiciais individuais, ou coletivas, como a ação civil pública proposta pela Defensoria Pública da União do estado de Alagoas, acima referida, tendo como premissa a excessiva onerosidade e a transferência integral do risco contratual para o mutuário que é consumidor e, ipso facto, parte hipossuficiente na relação contratual.

O fato de existir lei possibilitando a renegociação por parte dos mutuários inadimplentes não significa que estes sejam obrigados a aderir aos ditames da lei e de sua regulamentação, que caberá ao Conselho Monetário Nacional, como acima narrado.

A renegociação é facultativa e não pode ter o condão prejudicar o conhecimento de ações judiciais que discutam a liceidade da manutenção de saldo devedor em contratos no âmbito do SFH, sem a cobertura do FCVS, bem como os contratos de financiamento que originariamente contavam com esta cobertura, mas que a tenham perdido ou vierem a perdê-la, desde que apresentem desequilíbrio financeiro, definido este pela própria lei, em seu art. 4º.

Poderia algum magistrado entender que a existência da lei 11.922/09, por si só, seria óbice ao ajuizamento de ação judicial visando a declaração da extinção da obrigação do mutuário que pagou todas as parcelas contratadas, por exemplo, por falta de interesse processual, já que o legislador ofereceu a renegociação como forma de solver o impasse contratual representado pelo saldo devedor em aberto.

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Não nos parece a solução mais aconselhada, visto que a lei não é imperativa, porquanto não impõe, apenas faculta, a adesão do mutuário inadimplente ao procedimento de renegociação da dívida exposto no artigo 5º, seus incisos e parágrafos, da lei 11.922/09.

Tanto é assim, que o art. 3º da lei afirma que os contratos com desequilíbrio financeiro "poderão ser renegociados, de comum acordo entre as partes contratantes" nas condições da Lei, estas previstas no art. 5º do mesmo diploma legal.

Trata-se, a nosso ver, de mera faculdade legal posta à disposição do mutuário inadimplente naqueles contratos obviados pela lei.


CONCLUSÃO

Do que acima se aduziu, é possível a extração de algumas conclusões importantes abaixo transcritas, ressalvadas outras que o autor destas linhas não vislumbrou:

a)A renegociação idealizada na Lei 11.922/09 não é obrigatória, mas facultativa aos titulares dos contratos de financiamento habitacional formalizados até 5 de setembro de 2001, no âmbito do SFH, sem a cobertura do FCVS bem como os contratos de financiamento que originariamente contavam com esta cobertura mas que a tenham perdido ou vierem a perdê-la, que apresentem o desequilíbrio financeiro;

b)Eventuais ações judiciais já propostas pelos mutuários para discutir o saldo devedor subsistente nos contratos referidos na alínea anterior, bem como aquelas que venham a ser propostas após a vigência da lei e de sua regulamentação pelo Conselho Monetário Nacional, não podem ser prejudicadas, sob alegação de falta de interesse processual, vez que a adesão à renegociação estabelecida pela Lei 11.922/09 é mera faculdade do mutuário, podendo o mesmo optar por discutir judicialmente a legitimidade da cobrança de saldo devedor, após o adimplemento de todas as parcelas ajustadas no contrato original;

c)Aqueles mutuários que decidirem aderir à renegociação prevista na Lei 11.922/09 terão a seu favor todos os princípios e normas previstas no Código de Defesa do Consumidor e no Código Civil de 2002, ainda que os contratos originalmente tenham sido entabulados antes da vigência daqueles diplomas legais, pois a renegociação é negócio jurídico novo, viabilizado sob a vestimenta de aditivo contratual (art. 5º da lei), que se aperfeiçoará sob a vigência do ordenamento jurídico atualmente em vigor, não servindo a cautela legal representada pelos incisos II, III, IV, V, VI do art. 5º da lei e seus parágrafos 1º e 2º, ao remeter a renegociação a parâmetros adotados no contrato original, para afastar a incidência da principiologia contratual prevista no código civil de 2002 e no código consumerista;

d)Os mutuários que não aderirem à renegociação prevista na Lei 11.922/09 também estão amparados pelos princípios e pelas normas civis atuais que regem os contratos bem como pelo Código de Defesa do Consumidor, ainda que tenham contratado originalmente em período anterior à vigência dos códigos do consumidor e civil de 2002, não podendo mais prevalecer no atual ordenamento jurídico, inspirado pelos princípios da boa-fé objetiva, da função social dos contratos e da proteção do hipossuficiente, a cruel e míope parêmia pacta sunt servanda, vigente no ambiente jurídico pré Constituição Federal de 1988 e até o início da década de 90, que justificava a manutenção do saldo devedor do contrato habitacional, mesmo após o pagamento de todas as parcelas ajustadas, em franca desvantagem, unilateralmente imposta ao mutuário pelos agentes financeiros operadores do SFH, verdadeira apoteose do individualismo contratual do século XIX;

e)Trata-se de mais uma oportunidade para que a figura do juiz se afirme como agente político, exigindo a observância dos princípios constitucionais e a concretização dos direitos individuais e sociais garantidos pela Constituição quando o Administrador Público ou agentes delegados do poder público, ou ainda particulares com alto potencial de organização, como as grandes empresas, os frustre, ou seja, deve-se distribuir efetivamente Justiça, o que muito bem representa o brocardo latino suum cuique tribuere ou, na linguagem tupiniquim, "dar a cada um o que é seu".


Bibliografia

BRASIL. Presidência da República, legislação. Disponível em: < http://www.presidencia.gov.br/legislacao >. Acesso em: 27 de abril de 2009.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal, MS 27148 MC / DF. Disponível em: < http://www.stf.jus.br//arquivo/informativo/documento/informativo414.htm>. Acesso em: 27 de abril de 2009.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, RESP 489701/SP. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/ita.asp?registro=200201597565&dt_publicacao=16/04/2007>. Acesso em 27 de abril de 2009.

BRASIL. Justiça Federal de Alagoas . Disponível em: <http://200.172.126.3/intranet/noticias/arquivos/69.pdf>. Acesso em 27.04.09

BRASIL. Tesouro Nacional. Disponível em:<http://www.tesouro.fazenda.gov.br/divida_publica/downloads/FCVS_historico.pdf>. Acesso em 27.04.09

Venosa, Silvio de Salvo. Direito Civil:Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. 5. ed. São Paulo: Atlas.2005

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Sobre o autor
João Roberto de Toledo

Defensor Público Federal lotado em Juiz de Fora-MG. Pós-graduado em Direito Público

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TOLEDO, João Roberto. Os contratos do SFH anteriores ao CDC sem cobertura pelo FCVS.: Saldo residual e a Lei nº 11.922/09. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2148, 19 mai. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12889. Acesso em: 26 abr. 2024.

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