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O futuro da natureza do Estado Democrático de Direito.

Uma reconstrução paradigmática a partir dos modelos de Estado Constitucional

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3. Paradigma do Estado Social

Segundo Cattoni de Oliveira, a sociedade de massa conflituosa, dividida em vários grupos, classes e facções em disputa, cada qual buscando seus interesses, impôs ao Estado a proposição de um novo paradigma, diferente do Estado Liberal, neutro, distante dos conflitos sociais, mas um Estado que se assume como agente conformador da realidade social e que busca, inclusive, estabelecer formas de vida concretas, impondo pautas públicas de vida boa [55]. O Estado Social, que surge após a Primeira Guerra Mundial e se afirma após a Segunda Guerra Mundial, intervém na economia através de ações diretas e indiretas, visando a garantir o capitalismo através de uma proposta de bem-estar que implica em uma manutenção artificial da livre concorrência e da livre iniciativa, assim como a compensação das desigualdades sociais através da prestação estatal de serviços e da concessão de direitos sociais.

Houve uma ampliação e uma redefinição dos chamados direitos de primeira geração – vida, liberdade, propriedade, segurança e igualdade – fenômeno que se denominou de materialização dos direitos.

Bernardo A. Fernandes assim exemplifica:

A igualdade, por exemplo, assume uma conceituação material, não bastando que estivesse garantido apenas no sentido da igualdade de todos perante a lei (não importando quão desiguais fossem os sujeitos de direitos), mas se asseverando a antiga noção de que se devem tratar desigualmente os desiguais, na medida em que estes se desigualam. Temos, também, nesse momento, o surgimento dos chamados Direitos de Segunda Geração, (os Direitos Sociais). [56]

Dessa concepção política de Estado Social decorre a relativização da dicotomia do Direito; a divisão público-privado passa a ter cunho meramente didático: todo direito é público, oriundo de um Estado superior, conforme sustenta Hans Kelsen. Este Estado confunde-se com o público, e a ele cabe prover todas as necessidades.

Ressalte-se que, nessa concepção, não ocorre a superação do jusnaturalismo, mas uma "estilização" [57] da idéia de sistema jusnaturalista no direito, que em nada difere da idéia jusnaturalista de outrora. O que ocorre na verdade é que há uma nova dualidade entre uma concepção orgânica (baseada nos institutos) e mecânica (numa volta ao método lógico), que termina por funcionar como a única forma de se interpretar as construções do direito positivo. Neste sentido, é sutil, mas eficaz, a observação que faz Larenz acerca da sistemática da jurisprudência dos conceitos, derivada da obra de Savigny, identificando um elemento jusnaturalista na concepção do fundamento do sistema de institutos, que se basearia numa idéia de sujeito de direito delimitada pela idéia de liberdade positiva de Kant [58].

Puchta, discípulo de Savigny, realizou, como leciona Larenz, a fundação da legitimidade da dogmática, transformando o conceito de povo, com toda sua significação sócio-histórica, em um simples pressuposto epistemológico, como convicção de legitimidade, sendo legitimação e eficácia dadas pela crença na validade [59]. Desta forma a História destruiu a história, pois foi através das especulações deste historicismo [60] que se percebeu que a própria evolução histórica do direito se fundou numa ciência dogmática. Em resumo, aquilo que a razão representava para os jusnaturalistas, na história passou a ser, para a dogmática, seu fundamento [61].

Maria Helena Diniz entende como:

Nexo, uma reunião de coisas ou conjuntos de elementos, e método, um instrumento de análise. É o aparelho teórico mediante o qual se pode estudar a realidade. É, por outras palavras, o modo de ver de ordenar, logicamente, a realidade, que, por seus atributos (que constituem seu repertório), relacionados entre si, conforme certas regras (estrutura do sistema), que variam de concepção a concepção. [62]

Nesse panorama, a estrutura da Constituição passa então a ser essencialmente positiva, prescrevendo programas políticos, definindo procedimentos e estruturando competências que antes não eram de sua alçada:

Assim, todo o direito público, imposição de um Estado colocado acima de uma sociedade, de uma massa amorfa, carente de acesso à saúde ou à educação, massa pronta a ser moldada pelo Leviatã onisciente sobre o qual recai essa imensa tarefa. O Estado subsume toda dimensão do público e tem que prover os serviços inerentes aos direitos de Segunda Geração à sociedade, como saúde, educação, previdência, mediante aos quais alicia clientela. [63]

O Estado social, no plano do direito, é todo aquele que inclui na Constituição a regulação da ordem econômica e social. Além da limitação ao poder político, limita-se o poder econômico e se projeta para além dos indivíduos a tutela dos direitos, incluindo o direito ao trabalho, à educação, à cultura, à saúde, à seguridade social, ao meio ambiente, todos com inegáveis reflexos nas dimensões materiais do direito civil.

A ideologia do social, traduzida em valores de justiça social ou distributiva, passou a dominar o cenário constitucional do século XX. A sociedade exige o acesso aos bens e serviços produzidos pela economia. Firmou-se a communis opinio de que a solidez do poder residiria, substancialmente, no econômico e, relativamente, no político. Daí a inafastável atuação do Estado, para fazer prevalecer o interesse coletivo, evitar os abusos e garantir o espaço público de afirmação da dignidade humana. Nem mesmo o fenômeno do neoliberalismo e globalização, que agitou o último quarto do século, abalou os alicerces do Estado social, permanecendo cada vez mais forte a necessidade da ordem econômica e social, inclusive com o advento de direitos tutelares de novas dimensões da cidadania, a exemplo da legislação de proteção do consumidor.

O Direito passa a ser interpretado como sistema de regras e princípios otimizáveis, consubstanciadores de valores fundamentais, bem como de programas realizáveis no limite do possível [64].

Enquanto o Estado e a Sociedade mudaram, alterando substancialmente a Constituição, os códigos civis continuaram ideologicamente ancorados no Estado liberal, persistindo na hegemonia ultrapassada dos valores patrimoniais e do individualismo jurídico.

A estrutura codificada do ordenamento jurídico, que vê a ordem jurídica como completa, não contraditória, sem lacunas ou antinomias, impõe ao juiz uma rígida submissão ao exercício jurisdicional que subsume o fato à norma. E, por conta disso, o Judiciário acaba se transformando no único órgão estatal constrangido a decidir [65].

Por uma lado, o sistema jurídico constrange o juiz a decidir, com base em seu fechamento operacional, reforçando a imagem do Judiciário como bouche de la loi; de outro lado, há uma evidente maximização do dogma da completude do ordenamento, garantindo, assim, a abertura do sistema juridico a uma infindável série de demandas do ambiente, outorgando, então, ao judiciário a tarefa de ser intérprete, criador e construtor do Direito [66].

Conforme ensina Menelick de Carvalho Netto [67], o juiz, neste modelo constitucional, não pode ter a sua atividade reduzida a uma mera tarefa mecânica de aplicação da lei. A hermenêutica jurídica exige métodos mais sofisticados, capazes de desvincular o sentido da lei da vontade subjetiva do legislador. O trabalho do juiz já tem que ser visto como algo mais complexo a garantir as dinâmicas e amplas finalidades sociais que recaem sobre os ombros do Estado.

Coaduna com tal entendimento Rosemiro Pereira Leal, ao afirmar:

ao Estado Social de direito (Welfare State) interessam as lacunas da lei para o juiz livremente decidir habilidosamente em parâmetros de conveniência (Common Law) os conflitos que possam colocar em desequilíbrio o sistema social a ser mantido em suas bases de tradição e autoridade. [68]

Luhmann descreve, então, o papel assumido na atividade Jurisdicional, pelos Tribunais, como paradoxal, pois transforma a proibição da denegação de justiça em formulação de um direito, ou seja, coação em liberdade, apresentando o sistema como autopoiétio, fechado em sua completude operacional e aberto a responder a todas as demandas [69].

No início da década de setenta, a crise do paradigma do Estado social começa a se manifestar com grande intensidade. Aquele que deveria ser o cidadão se tornou cliente do Estado. "A grande promessa era, sem dúvida, reduzir as desigualdades, gerando cidadania. A verdade é que este modelo gerou tudo, menos cidadania". [70]

Não fosse isso, as grandes crises econômicas colocaram em xeque a racionalidade objetivista dos tecnocratas, bem como a oposição antitética entre a política e a técnica, sendo que o Estado interventor de bem-estar se transformou em empresa acima das outras empresas. Com o advento das sociedades hiper-complexas e com a extrema fluidez das relações voltou-se a discutir a relação público/privado.

... A relação entre o público e o privado é novamente colocada em xeque. Associações da sociedade civil passam a representar o interesse público contra o Estado privatizado ou omisso. Os direitos de 1ª. Geração e 2ª. Geração ganham novo significado. Os da primeira são retomados como direitos (agora revestidos de uma conotação sobretudo processual) de participação no debate público que informa e conforma a soberania democrática de um novo paradigma, o paradigma constitucional do Estado Democrático de Direito e seu Direito participativo, pluralista e aberto. [71]

É por essas, dentre outras razões, que se desenvolveu um novo conceito que tenta conjugar o ideal democrático ao Estado de Direito, no qual estão presentes as conquistas democráticas, as garantias jurídico-legais e a preocupação social. Esta é a terceira fase do Estado moderno.


4. Paradigma do Estado Processual (Democrático de Direito).

Há que se deter na formulação do paradigma suposto e positivado pela Constituição de 1988, com vistas à determinação de seu verdadeiro sentido, o que só pode ser apreendido a partir da análise do elemento peculiar que dá origem à sua conformação, qual seja, a democracia. Contudo, a tematização do conceito oferece aos estudiosos muitas dificuldades, conforme revela Menelick de Carvalho Netto:

Democracia é uma dessas palavras que em nosso cotidiano consideramos óbvias e, exatamente porque óbvia, terminamos por não problematizá-la, supondo que todos atribuímos naturalmente a esse vacábulo o mesmo conteúdo semântico. Quando tematizada, no entanto, como ocorre com todos os termos pragmaticamente considerados óbvios sem que reflitamos sobre eles, ela se revela um imenso problema, uma vez que, no nível discursivo da linguagem, não há qualquer acordo acerca de sua significação, de seu conteúdo de sentido [72].

O problema fundamental da democracia, com a formação do Estado Moderno, sempre foi um assunto discutido pelos mais nomeados pensadores; contudo, no último quartel do século XX, passou a ser discutida em termos de operacionalidade. Sobre essa matéria, Carvalho Netto registra:

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Carl Schmitt dizia que, na verdade, se nos voltarmos para a história, poderemos ver claramente que a democracia é um regime político e um idéia de origem grega e que, na essência, configura-se precisamente como o regime que vivencia ou a idéia que afirma a identidade entre governante e governado, aquilo que hoje denominamos democracia direta. O governo representativo, ao contrário, é uma invenção burguesa bem mais recente, que encontra suas origens nas assembléias medievais das castas, os chamados Estados Gerais. Na própria Revolução Francesa, se prestarmos atenção na luta entre os jacobinos e girondinos, veremos que, no terreno da organização política, a distância entre as duas facções podia ser medida, sobre tudo, de um lado, pela defesa intransigente da democracia por parte dos jacobinos que condenavam veementemente o governo representativo (Rousseau afirmara que, ao contrário do que acreditavam os ingleses, no dia em que um povo se dá representantes ele não é mais um povo livre) e, de outro, pela defesa inexpugnável do governo representativo por parte da gironda, a acreditar absolutamente inviável em nossa sociedade a democracia por razões estruturais [73].

Tem-se arraigada a idéia de que a democracia se relaciona, ou deve relacionar-se, com o vocábulo povo, o que, de resto, se deduz da própria etimologia da palavra e da prática democrática do poder, como bem nota Friedrich Muller:

O termo ‘democracia’ não deriva apenas etimologicamente de ‘povo’. Estados democráticos chamam-se governos ‘do povo’ [‘Volks’herrschaften]; eles se justificam afirmando que em última instância o povo estaria ‘governando’ [‘herrscht’]. Todas as razões da crítica da democracia dependem desse ponto de partida [74]

Nesse ponto, o próprio constitucionalista alemão ressalva o conteúdo do símbolo semântico (palavra) "povo", que é uma palavra manipulável, ou seja, uma palavra gorda, como alhures enunciado.

No Estado Moderno há uma tensão entre o fato de o Direito ser imposto de cima para baixo, por um aparato estatal, e a exigência de uma legitimidade fundada na autodoação do próprio direito, ou seja, é o requisito de que as pessoas se sintam co-autoras das normas que as regem. Essa tensão inafastável, inerente o Direito moderno, exige que mesmo ditaduras empreguem justificações discursivas do tipo da elaborada por Carl Schmitt. Por isso mesmo, o povo como legitimação, esse povo compacto, esse povo em bloco, pode prestar-se a usos retóricos bastante perigosos. No entanto, toda essa discussão levou mesmo, como disse Friedrich Muller, à clara noção de que povo é o resultado de todo um processo de institucionalização [75]

Povo, na teoria política e constitucional, não é um conceito descritivo, mas claramente operacional. Por isto mesmo, é notável a variedade de noções desenvolvidas ao longo da história para apropriação do objeto, o que torna mais complexa a tarefa de assentamento de um conceito adequado.

... o povo não é apenas – de forma mediata – a fonte ativa da instituição de normas por meio de eleições bem como – de forma imediata – por meio de referendos legislativos; ele é de qualquer modo o destinatário das prescrições, em conexão com deveres, direitos e funções de proteção. E ele justifica esse ordenamento democrático à medida que o aceita globalmente, não se revoltando contra o mesmo [76].

Diante disso, Muller se propõe a estudar o conceito de povo sob diversos pontos de vista, em perspectiva de complementariedade de sentidos, para visualização da idéia contemporânea de democracia; assim, analisa a expressão segundo quatro vetores de pesquisa diferentes, que se relacionam, em último grau, com o problema da legitimidade.

Müller descreve as seguintes categorias: o povo ativo, aquele entendido como certo número de eleitores que, em determinados períodos, são chamados a "escolher" seus representantes, participando dessa classificação somente aqueles que gozam do atributo da nacionalidade; aquele que se apresenta como instância global de atribuições de legitimidade, que permite ao sistema jurídico-político produzir normas de observância obrigatória; o que se apresenta como ícone, figuração que favorece a exaltação das qualidades do povo mediante processo demagógico, que reduz os argumentos verossímeis a mera retórica justificadora dos objetivos estatais e que, por isto mesmo, representa obscurecimento do problema da legitimidade; e aquele destinatário de prestações civilizatórias do Estado, expressão que designa todos aqueles que, localizados em determinado território, devem ter assegurados seus direitos fundamentais e humanos, independentemente de cidadania ativa ou qualquer outro requisito formal [77].

Deve-se ressaltar que cada um desses grupos corresponde a determinada parcela da população estatal, conforme conclui:

O povo icônico refere-se a ninguém no âmbito do discurso de legitimação. [...] O povo como instância de atribuição está restrito aos titulares de nacionalidade, de forma mais ou menos clara nos textos constitucionais; o povo ativo está definido ainda mais estreitamente pelo direito positivo (textos de normas sobre o direito a eleições e votações, inclusive a possibilidade de ser eleito para diversos cargos públicos). Por fim, ninguém está legitimamente excluído do povo-destinatário; também não v.g. os menores, os doentes mentais ou as paessoas que perdem – temporariamente – os direitos civis [78]

O conceito de povo, portanto, é algo artificial, complexo, encontrável apenas pela via do empirismo e que, às vezes, chega a ser termo prescritivo, o que não significa, na sua visão, que não deva ser levado a sério. Ao contrário:

O discurso de legitimação de uma democracia não só obriga a mesma a ser democrática no seu conteúdo – abstraindo do fato de que o significado desse adjetivo ‘democrático’ pode ser matéria de grandes controvérsias. Ele deveria sobretudo realizar também no seu próprio procedimento o que designa, deveria, portanto, ser correlativamente estruturado, i.e: não formular afirmações em bloco, que se imunizam contra a discussão, não apresentar-se qual dedução cogente, não falar por intermédio de resultados antecipados. Muito pelo contrário, a legitimidade – como também a normatividade jurídica – é um processo e não uma substância, uma essência ou mesmo uma qualidade de textos [79]

Como conseqüência disso, verifica-se que o problema da democracia deve ser repensado a partir da noção de povo, e não apenas em termos de técnica de representação e legislação. O conceito de povo não pode ser compreendido como abstração útil, mas sim como figuração e fator determinante da realidade, processualmente elaborada [80].

Confortante é a lição de Pereira Leal ao afirmar que:

Ao povo, num Estado democrático de direito, não cabe mobilizar-se para conferir maiores poderes ao Judiciário com vistas a realizar justiça, porque a democracia não se apóia na taumaturgia do reforço ao idealismo mítico, mas no induvidoso asseguramento, numa proposição consitucional explícita, do devido processo como forma isonômica de inserção imperativa do julgador como um dos elementos figurativos procedimentais, em conjunto com as partes, na rede discursiva da normatividade procedimental, a fim de se buscar uma decisão preparada pelo pelo compartilhamento estrutural de todos os figurantes do processo, segundo o modelo do due process of law que é o intrumento de legitimidade (relativização argumentativa) dos conteúdos da decidibilidade no direito democrático. [81]

Assim, Müller prepara o campo para poder afirmar de forma categórica que: "Democracia significa direito positivo – o direito de cada pessoa" e a razão disso está em que ela pressupõe, além da base normativa, nexo legitimador entre a organização da liberdade e a da igualdade de cada indivíduo, de modo a garantir-lhe tratamento de membro do povo, tendo este como instância de legitimação, a justificar a concepção daquela, para além da estrutura normativa textual, como nível de exigências positivas.

A democracia moderna avançada não é simplesmente um determinado dispositivo de técnica jurídica sobre como colocar em vigor textos de normas; não é, portanto, apenas uma estrutura (legislatória) de textos, o que vale essencialmente também para o Estado de Direito. [...] A democracia avançada é assim- e nesse sentido ela vai também um bom pedaço além da estrutura de meros textos – um nível de exigências, aquém do qual não se pode ficar – e isso tendo em consideração a maneira pela qual as pessoas devem ser genericamente tratadas nesse sistema de poder-violência [Gewalt] organizado (denominado ‘Estado’): não como subpessoas [Unter-Menschen], não como súditos [Untertanen], também não no caso de grupos isolados de pessoas, mas como membros do Soberano, do ‘povo’ que legitime no sentido mais profundo a totalidade desse Estado [82]

O Direito positivado visa a assegurar aos destinatários a segurança jurídica pela previsibilidade das normas a serem aplicadas no caso concreto. Neste contexto, bem observa André Cordeiro Leal:

A legitimação, como adiante se verá, não mais passa somente pela observância formal dos procedimentos legislativos ou pela competência dos órgãos criadores dos textos legais, mas da efetiva participação democrática na elaboração desses textos e na prolatação das decisões aplicadoras dessas normas aos casos concretos. [83]

Nessa fase, o público não pode ser reduzido ao estatal e o privado como o reino do egoísmo [84]. O espaço público deve complementar o privado e vice-versa.

Segundo Lênio Streck:

... diferente dos paradigmas anteriores, o Estado Democrático de Direito carrega em si um caráter transgressor que implica agregar o feitio incerto da Democracia de Direito, impondo um caráter reestruturador à sociedade e, revelando uma contradição fundamental com a juridicidade liberal a partir da reconstrução de seus primados básicos de certeza e segurança jurídicas, para adaptá-los a uma ordenação jurídica para a garantia/implementação do futuro, e não para a conservação do passado. Nesse sentido, pode-se dizer que, no Estado Democrático de Direito, há um sensível deslocamento da esfera de tensão do Poder Executivo e do Poder Legislativo para o Poder Judiciário. [85]

Habermas conceitua o Estado Constitucional como "uma ordem política livremente estabelecida pela vontade do povo de modo que os destinatários das normas legais podem, ao mesmo tempo, se reconhecer como os autores da lei". [86]

O juiz, ao aplicar a jurisdicionalidade, está confirmando a existência do próprio Estado, porque:

se o Estado se configura como instituição, o poder de mando em dado território não prescinde do Direito para fazer com que os demais elementos que compõem a ossatura do Estado sejam implementados. Estado e Direito, pois, passam a ser complementares e interdendenpentes. [87]

Vê-se então que a existência do próprio Estado Democrático de Direito está ligada diretamente à integridade do Direito [88], que resulta de uma interpretação, não sistemática ou teleológica, mas sistêmica, ou seja, do sistema jurídico-legal como um todo.

Habermas adverte que:

Se sob condições de um mais ou menos estabilizado compromisso relativo ao Estado de Bem-estar Social, quer-se sustentar não somente um Estado de Direito mas também um Estado Democrático de Direito, e, assim, a idéia de auto-organização da comunidade jurídica, então não se pode manter a visão liberal de constituição como uma ordem-quadro que regule essencialmente a relação entre administração e cidadãos. O poder econômico e a pressão social necessitam ser conformados pelos meios do Estado de Direito não menos que o poder administrativo. Por outro lado, sob as condições de pluralismo societário e cultural, a constituição deve também não ser concebida como uma ordem jurídica concreta que imponha aprioristicamente uma forma de vida total à sociedade. Ao contrário, a Constituição estabelece procedimentos políticos de acordo com os quais os cidadãos possam, no exercício de seu direito de autodeterminação, com sucesso, buscar realizar o projeto cooperativo de estabelecer justas (i. e. relativamente mais justas) condições de vida. Somente as condições procedimentais da gênese democrática das leis asseguram a legitimidade do Direito promulgado. [89]

Esse posicionamento de Habermas já sofre algumas críticas na própria Alemanha, por Apel [90], e, no Brasil, por Pereira Leal, pois:

Percebe-se que a fundamentação ética (histórica) ou a fundamentação dita racional (moral-principiológica), em HABERMAS, está a exigir suporte jurídico-normativo porque o agir só se legitimaria pela universalização do modelo legal de produção constitucional plebiscitária e da aplicação do direito e não pela visão pessoal das individualidades sobre um direito teorizado que suscitasse confirmação ou correção pela sensibilidade ou adequabilidade judicante adjacente aos conteúdos da lei. No direito democrático os princípios concorrentes de atuação do agir são conjecturáveis a partir da lei e não apesar da lei, daí a regência do due process no eixo construtivo da constituição formal de direitos fundamentais. Nenhum sistema jurídico, ao contrário do que imaginam DWORKIN, RAWLS E GÜNTHER, adquire integridade, equidade ou adequabilidade pelos conceitos de justiça, igualdade e imparcialidade advindos do julgador, de vez que, no Estado de Direito Democrático, é o POVO que faz e garante as suas próprias conquistas conceituais pelo processo constitucional legiferante do que é devido (garantido, assegurado), não o juiz que é funcionário do POVO. O juiz não é construtor do direito, mas concretizador do ato provimental de encerramento decisório do discurso estrutural do procedimento processualizado pelo due process democrático em suas incidências substancial (substantiva) de garantias implantadas constitucionalmente e procedimental (procedural) do modo adequado de aplicação constitucionalmente assegurado. [91]

Essa é a razão da inter-relação entre os ramos do Direito, seja o público interferindo no privado, seja o privado interferindo no público, mas este entendimento é novo para o Direito brasileiro, e só agora começa a ser utilizado no direito civil brasileiro. Nos países europeus, este entendimento é utilizado a mais de cinqüenta anos. [92]

Ao longo de sua história no mundo romano-germânico, o direito infraconstitucional, em especial o Direito civil, sempre foi identificado como o locus normativo privilegiado do indivíduo. Assim sendo, nenhum ramo do direito era mais distante do Direito Constitucional do que ele. Em contraposição à constituição política, era cogitado como constituição do homem comum, máxime após o processo de codificação liberal.

Segundo Lôbo [93], a lenta elaboração das legislações infraconstitucionais, destacando-se a Civil e a Processual, vem perpassando a história do direito romano-germânico há mais de dois mil anos, parecendo infenso às mutações sociais, políticas e econômicas. Parecia que as relações jurídicas interpessoais não seriam afetadas pelas vicissitudes históricas, permanecendo válidos os princípios e regras imemoriais, pouco importando que tipo de constituição política fosse adotado.

Os estudos mais recentes dos civilistas têm demonstrado a falácia dessa visão estática, atemporal e desideologizada do direito civil e processual civil brasileiro. Não se trata, apenas, de estabelecer a necessária interlocução entre os variados saberes jurídicos, com ênfase entre o direito privado e o direito público, concebida como interdisciplinaridade interna. Pretende-se não apenas investigar a inserção do direito processual ou do direito civil na Constituição jurídico-positiva, mas os fundamentos de sua validade jurídica, que dela devem ser extraídos. [94]

Diz o citado autor que, na atualidade, não se cuida de buscar a demarcação dos espaços distintos e até contrapostos. Antes havia a disjunção; hoje, a unidade hermenêutica, tendo a Constituição como ápice conformador da elaboração e aplicação da legislação civil e processual. A mudança de atitude é substancial: deve o jurista interpretar o Código segundo a Constituição e não a Constituição segundo o Código, como ocorria com freqüência (e ainda ocorre).

O Direito Processual sempre serviu, desde seus primórdios, como "instrumento" da atividade Jurisdicional; no mesmo incorria o Direito Civil, que devido à sua gênese romanística, sempre forneceu as categorias, os conceitos e as classificações que serviram para a consolidação dos vários ramos do direito público, inclusive o constitucional. Agora, segue os demais, lado a lado, na mesma sujeição aos enunciados consagrados na Constituição. Daí a necessidade que sentem os civilistas e processualistas do manejo das categorias fundamentais da Constituição. Sem elas, a interpretação dos Códigos e das leis civis e processuais desvia-se de seu correto significado [95].

Resta claro que a questão colocada pela história é uma: como trazer validez à faticidade do "mundo vivido", sem subjugar o imanente pela vontade solipsista dos prolatores dos provimentos estatais.

Pereira Leal, com base em Fazzalari e Baracho, introduz a noção de uma estrutura técnica legal (procedimento), que deve ser subjugada a uma concepção teórica regente Constitucionalizada (Processo). Esta teoria, tratada pelo autor brasileiro, propicia como será demonstrado posteriormente, uma fiscalidade plena dos provimentos, estabilizando (pelo contraditório) e propiciando uma discursividade ampla (ampla defesa) pelos interessados em igualdade de oportunidade e armas (isonomia).

Habermas, por sua vez, se pronuncia a favor de uma estrutura previamente legalizada, irrestritamente pública, na qual os interessados possam participar discursivamente da conformação e produção daquele provimento. Isso leva a concluir, como fez Fazzalari hoje, pronunciando-se por um Paradigma Processual do Estado, paradigma este que tira a validade do ato, de um ato legitimamente eficaz construído de forma precedente, encadeando uma estrutura própria, construída em contraditório, pelas partes legitimadas para ação.

O paradigma que será examinado aqui, é, a meu ver, o que deve ser acolhido. Além da vigência positiva, que nós da área não quereremos certamente negligenciar, isso devido à sua racionalidade interior (critério de preferência, credo, se o irracional for colocado sob controle). Sem negar que a historia caminha, esse modelo admite os valores fundamentais do nosso ordenamento – e, com eles, a todos aqueles que deles dependem: conseqüentemente a todo o ordenamento – de evoluir, sem ser obliterado e modificado; de modificar-se, mantendo seu núcleo incorrupto, isso é ao longo de uma trajetória assinalada por nossa escolha original. Agregarei aqui, que tal paradigma, na medida em que permite aos valores positivos viver e durar, supera, no concreto, a antinomia que se insinua em todos os valores: para os quais eles são, sim, históricos e factuais, mas devem, numa sociedade dada, servir de crítica dos valores, isso é dos critérios duráveis do ordenamento do agir. Mas há uma outra característica que dota este paradigma, e o impõe: e é a processualidade, a realização do trabalho da Corte constitucional mediante processo, isso é, no contraditório dos (uma parte representada dele) interessados e contra-interessados, conseqüentemente coram populo e com sua participação. Ocupei-me demasiadamente, num primeiro momento, em torno da categoria do processo, porque impõe aqui outros discursos. Arriscarei sozinho, mas fora de qualquer esquematização historicista, a tarefa que a historia quer – ou quer também – contínuo contraditório, conseqüentemente processo, para a convalidação dos valores: consistindo como o anteriormente colocado, na continuação da convivência. [96]´

Dessa forma, acatando os ensinamentos destes juristas, verificar-se-á que o paradigma atual, deve pressupor um procedimento que se estrutura pela vontade dos interessados (partes), no qual a discursividade em contraditório propicie esgotamento argumentativo (alcançável pela razão discursiva) que traga validez ao provimento emanado do Estado (Consenso).

Cumpre salientar que esse é o paradigma constitucionalmente adotado pelo Estado democrático brasileiro, e que ele como "processo" constante, impõe e necessita de reflexão e teorização dos atos emanados do Estado sob esta nova perspectiva, propiciando uma resistência à "falseabilidade" [97], que se dá pela verificação da implementação de direitos fundamentais, incluindo nestes, os princípios institutivos do processo [98] no provimento final, seja ele jurisdicional ou não. Esta proposição processualmente adequada de uma revisitação do funcionamento jurisdicional perpassa, como dito alhures, por um resgate da cidadania, por via das garantias constitucionais e processuais [99], que lhe são inerentes.

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Sobre o autor
Carlos Eduardo Araújo de Carvalho

Professor da Faculdade de Direito do Centro Universitário de Sete Lagoas - UNIFEMM; Professor Convidado - Pesquisador da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUCMINAS; Mestre em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; Especialista em Direito Processual Constitucional pelo Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix; Bacharel em Direito pela Faculdade de Ciências Humanas da Universidade FUMEC e membro do escritório Carvalho & Garcia Advocacia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARVALHO, Carlos Eduardo Araújo. O futuro da natureza do Estado Democrático de Direito.: Uma reconstrução paradigmática a partir dos modelos de Estado Constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2146, 17 mai. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12906. Acesso em: 24 nov. 2024.

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