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Cassação de liminar em mandado de segurança em matéria fiscal e o sobreprincípio da segurança jurídica

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01/10/2000 às 00:00

Resumo:


  • As liminares concedidas pelo Poder Judiciário garantem a segurança do ato praticado pelo contribuinte, sendo revogadas ou cassadas posteriormente, os efeitos da liminar cessam, mas o ato praticado sob sua vigência mantém sua legalidade.

  • Durante a vigência da liminar, o recolhimento de contribuições ou imposições tributárias não está sujeito a encargos de mora, multas ou juros, pois não há infração nesse contexto.

  • A revogação ou cassação da liminar não retroage para penalizar o contribuinte que agiu legalmente dentro dos parâmetros da medida judicial, respeitando o princípio da segurança jurídica e as decisões judiciais.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Sumário: 1. Introdução – 2. Estudo de caso: recolhimentos previdenciários em data diversa da prevista em lei, ao amparo de medida liminar - 3. A Segurança Jurídica – sobre princípio no ordenamento jurídico brasileiro - 4. Os efeitos da liminar cassada - aproveitabilidade – 5. Conclusão – 6. Notas - 7. Referências Bibliográficas.


1 - INTRODUÇÃO

Nos embates do cotidiano jurídico, não raras vezes nos deparamos com situações capazes de suscitar inconformismo, especialmente aquelas que envolvem a atividade fiscal mal direcionada.

Destas, as que mais atormentam os profissionais do Direito são as em que a lógica jurídica e o bom senso que lhe é companheiro inseparável, são substituídos por entendimentos distorcidos, por parte dos órgãos fiscalizadores, que longe de dar guarida à lei, acabam por lançar-lhe pesadas máculas, quando culminam por lavrar autos de infração violadores de direitos.

Outras vezes, por puro desconhecimento dos princípios norteadores de nosso ordenamento jurídico, os agentes fiscais, guardiães rigorosos do nefasto apetite tributário dos órgãos arrecadadores do Governo, cegamente atrelados que são a seus normativos infralegais internos, dão aos fatos jurídicos interpretações esdrúxulas, desprovidas de coerência e causam incômodos de toda ordem ao contribuinte.

Por que isso ocorre? Certamente porque a tarefa de interpretar não é tão simples e não comporta a vulgarização que se lhe vem dando.

CARLOS MAXIMILIANO, fundado nos escólios de RUGGIERO, lança apropriada consideração acerca da tarefa de interpretar: "Para ser hermeneuta completo, é mister entesourar ‘profundo conhecimento de todo o organismo do Direito e cognição sólida, não só da história dos institutos, mas também das condições de vida em que as relações jurídicas se formam"(1)

E continua: "Cumpre evitar, não só o demasiado apego à letra dos dispositivos, como também o excesso contrário, o de forçar a exegese e deste modo encaixar na regra escrita, graças à fantasia do hermeneuta, as teses pelas quais este se apaixonou.(2)

Para NORBERTO BOBBIO, "o positivismo jurídico põe um limite intransponível à atividade interpretativa: a interpretação é geralmente textual e, em certas circunstâncias (quando ocorre integrar a lei), pode ser extratextual; mas nunca será antitextual, isto é, nunca se colocará contra a vontade que o legislador expressou na lei.(3)

PIETRO PERLINGIERI completa o ensinamento, quando sintetiza a responsabilidade do intérprete da lei, dizendo: " É verdade que a compreensão de um texto pressupõe (também) um ‘poder puramente técnico’ e ‘os conhecimentos, as capacidades e as habilidades a ele conexos’, isto é, uma ‘relação de experiência’ com as coisas das quais se fala no texto; não é, contudo, suficiente ter uma (mera) ‘opinião’ acerca de uma coisa. É preciso uma ‘específica relação material’ com a coisa, uma qualquer abertura, uma ‘visão da coisa’ que testemunhe a seriedade no esforço de entendê-la e da capacidade de compreendê-la rapidamente."(4)

Como se vê, não basta ao observador ter um contato textual com a lei para saber interpretá-la corretamente. Para poder aventurar-se aos mecanismos da hermenêutica, o intérprete tem que fazê-lo com rigor científico, nos dizeres de MARIA HELENA DINIZ, estabelecendo um entrelaçamento entre as normas, "de tal sorte que haja unidade e coerência lógica do sistema normativo por ele criado epistemologicamente. O sistema apresentará unidade, se as várias normas forem conformes à norma-origem (Constituição); conseqüentemente haverá uma coerência, ante a impossibilidade lógica de existirem preceitos infraconstitucionais antagônicos à Lei Maior."(5)

Por todas essas ilações é de se perguntar se todos os agentes fiscais encontram-se aptos ao mister interpretativo e se possuem competência (no seu sentido jurídico) para tanto. Se a resposta pender para a negativa, a realidade revelará ônus imotivados, que acabam sendo suportados pelo infeliz contribuinte e restam quase sempre irreparados.

Competirá ao contribuinte, despendendo recursos, perdendo a inavaliável tranqüilidade, livrar-se da autuação, não sem antes desembolsar altos valores com depósitos recursais (de difícil recuperação), ou na movimentação da máquina judiciária, afetando seu fluxo de caixa e seu equilíbrio financeiro.

Nesse meio tempo, esse contribuinte terá obstadas muitas operações, saindo da sua situação de normalidade, por ser considerado inadimplente e devedor do Fisco. Os que necessitam de certidões negativas para o desempenho de suas atividades, entendem muito bem esse quadro desesperador.

Enquanto nossa legislação não dá uma proteção mais efetiva ao contribuinte, nem o resguarda da irresponsabilidade e inaptidão técnica dos agentes estatais, que sob a ótica da lei estão cumprindo seu dever fiscalizador, sofrem os cidadãos e as empresas em função dessa realidade crônica, que faz com que todos sejam considerados culpados até que, a duras penas, provem o contrário.

Uma dessas circunstâncias, com que nos deparamos no labor advocatício, motivou-nos a redigir estas páginas, que convidam o leitor a rápida reflexão acerca do problema e, na análise de caso concreto, permite-nos estudar importantes postulados do Direito, amiúde desconsiderados.


2 - ESTUDO DE CASO: RECOLHIMENTOS PREVIDENCIÁRIOS EM DATA DIVERSA DA PREVISTA EM LEI, AO AMPARO DE MEDIDA LIMINAR

Tomemos um caso comum, que se repete nos mais variados rincões do país e vem causando incontáveis transtornos empresariais até hoje: Uma empresa X, que atue na área Y, opta por questionar as mudanças das regras impostas pelo Governo Federal, pertinentes ao recolhimento de contribuições previdenciárias.

Trata-se da alteração, pela Lei nº 9.063/95 e PT/MPAS nº 1.435/94, que mudaram as regras dos recolhimentos previdenciários, em prejuízo aos contribuintes, que passaram a enfrentar sérias dificuldades para adaptação do fechamento de suas folhas de pagamento e cálculo das contribuições.

Pelas mudanças na legislação, a Contribuição Previdenciária devida pelas empresas, inclusive a descontada de seus empregados e a incidente sobre a comercialização da produção rural, que era recolhida até o 8º (oitavo) dia, passou a ser exigida até o 2o (segundo) dia do mês subseqüente ao da competência.

Sentindo-se lesada em seu direito de proceder ao recolhimento até o 8º dia do mês subseqüente, a empresa X, assim como várias outras em todo o país, impetrou Mandado de Segurança, obtendo liminar, que autorizou-a continuar recolhendo suas contribuições na mesma data em que o fazia até então.

Analisemos a situação instalada, a partir de então: a medida liminar concedida assegurou à empresa a prerrogativa de, sob o amparo do Poder Judiciário e sem que tal ato se constituísse em infração às normas do INSS, continuar a efetuar os recolhimentos até o 8o dia do mês subseqüente ao da competência, até que a sentença de mérito decidisse pela legalidade ou não da alteração imposta por lei. A Contribuição, é de se ressaltar, continuou a ser paga normalmente, porém, em data diversa da determinada na nova legislação.

Tomemos, novamente como exemplo, uma situação fático-jurídica que igualmente se repetiu na maioria dos casos postos a julgamento: o mandado de segurança foi apreciado em seu mérito e a segurança concedida apenas parcialmente, em razão do princípio nonagesimal que restou inobservado pelo INSS, ao tempo em que o Judiciário entendeu aplicável a novel legislação, tornando sem efeito a liminar concedida e determinando que a empresa Impetrante passasse a recolher em conformidade com a lei nova, ou seja, até o segundo dia do mês superveniente ao mês de competência.

Neste ponto começaram os absurdos interpretativos a que fizemos referência. Em um caso que acompanhamos, tendo o julgamento seguido os moldes acima descritos, o INSS entendeu que no período em que se recolheu até o oitavo dia, com suporte na liminar, passou a existir mora retroativa, desde a cassação da liminar e autuou a empresa, lançando-lhe correção monetária, juros de mora e multa pelo atraso no recolhimento.(6)

Tomamos o caso como paradigma, pois é de conhecimento haver inúmeros outros que guardam-lhe semelhança. Pretendemos, com o presente estudo, lançar luzes que auxiliem os contribuintes na defesa de um direito líquido e certo, flagrantemente violado

Se ao tempo da liminar concedida o recolhimento efetuou-se até o dia 8 do mês subseqüente ao de competência, não há como falar-se em mora ou atraso e muito menos em infração legal passível de multa e em hipótese alguma se pode conceber que qualquer penalidade possa ser imposta por essa alteração na data de pagamento, uma vez que respaldada pelo Poder Judiciário.


3 – A SEGURANÇA JURÍDICA – SOBREPRINCÍPIO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

Nosso ordenamento jurídico repousa assentado sobre estruturas basilares que ditam-lhe as linhas gerais de entendimento e aplicação dos dispositivos normativos que o compreendem. São os princípios jurídicos.

Para CARRAZA, "Etimologicamente, o termo ‘princípio’ (do latim principium, principii) encerra a idéia de começo, origem, base. (...) Por igual, em qualquer ciência, princípio é começo, alicerce, ponto de partida. Pressupõe, sempre, a figura de um patamar privilegiado, que torna mais fácil a compreensão ou a demonstração de algo. Nesta medida é, ainda, a pedra angular de qualquer sistema."(7)

E complementa, ao tratar dos princípios no âmbito da ciência jurídica: "Segundo nos parece, princípio jurídico é um enunciado lógico, implícito ou explícito, que, por sua grande generalidade, ocupa posição de preeminência nos vastos quadrantes do Direito e, por isso mesmo, vincula, de modo inexorável, o entendimento e a aplicação das normas jurídicas que com ele se conectam".(8)

Citando BANDEIRA DE MELLO, o ilustre constitucionalista JOSÉ AFONSO DA SILVA assinala ser o princípio, ou "mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência".(9)

PAULO NADER, comentando a função integrativa dos princípios jurídicos assinala: "Os princípios são necessários à elaboração dos sistemas e atuam ainda como elementos de integração do Direito. Nesta segunda função eles preenchem lacunas da lei, oportunidade em que o aplicador do Direito deverá identificá-los com os princípios de Direito Natural ou com os do ordenamento jurídico, segundo sua concepção, salvo quando houver orientação específica do sistema."(10)

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Ainda sobre a necessidade de adequação ao sistema, com esteio nos princípios a ele inerentes, PIETRO PERLINGIERI leciona que toda norma deve ser reconduzida aos valores constitucionais, perdendo sentido a preferência ao recurso da "precisa disposição", "devendo-se sempre operar sobre ela um controle de valor por parte do ordenamento (meritevolezza); controle que exige necessariamente a individuação de uma ratio iuris em harmonia e em conformidade com o sistema. Se toda norma exprime sempre um princípio, este deve ser confrontado com os princípios fundamentais. O recurso `ratio iuris, isto é, à sua individuação, é um problema de cotejo do princípio, que a ratio representa, com os outros princípios."(11)

É nesse contexto de estabilidade que surge o postulado da segurança jurídica.

"Seguras están las personas com certeza de que el Derecho es objetivamente uno, y de que tanto el Estado como los ciudadanos lo acatarán"(12)

PAULO DE BARROS CARVALHO, fala da segurança jurídica a constituir um daqueles a que denomina sobreprincípios, ou seja, "conjuntos de princípios que operam para realizar, além dos respectivos conteúdos axiológicos, princípios de maior hierarquia".

E complementa: "Não haverá respeito ao sobreprincípio da segurança jurídica sempre que as diretrizes que o realizem venham a ser concretamente desrespeitadas e tais situações infringentes se perpetuem no tempo, consolidando-se".(13)

Isto porque, segundo bem esclarece o autor, transgredido um princípio ou sobreprincípio, os mecanismos de recomposição previstos pelo sistema, são postos em funcionamento para restabelecer os valores ofendidos.

Sobreprincípio, portanto, sugere uma idéia de valor superior ao próprio princípio.

No mesmo diapasão, SOUTO MAIOR BORGES leciona que "a segurança jurídica pode ser visualizada como um valor transcendente ao ordenamento jurídico, no sentido de que a sua investigação não se confina ao sistema jurídico positivo. Antes, inspira as normas que, no âmbito do Direito Positivo, lhe atribuem efetividade."(14)

Interpretar sem estar atento a essas regras básicas significa macular o consagrado postulado fundamental da segurança jurídica, esteio do ordenamento jurídico, orientador da Carta Constitucional, que dá a cada contribuinte, a cada cidadão, a certeza de que pode confiar no ordenamento jurídico, que pode pleitear junto ao Poder Judiciário, sem ver-se surpreendido com mudanças absurdas na aplicação da lei ou na interpretação que se lhe dá, afastando seu direito ou frustrando a segurança que lhe advém das decisões emanadas desse Poder livre e independente.

Tratando da necessária observância aos princípios jurídicos DÂMARES FERREIRA traz a lume o sempre oportuno ensinamento de CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO, para o qual, "Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade e inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio violado, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais...".(15)

Se a violação da lei perde em gravidade frente à violação de um princípio, o que dizer da conduta que fere frontalmente um desses elementos axiológicos transcendentes a que se convencionou chamar sobreprincípio? Com certeza, estar-se-á diante da mais severa violação do sistema normativo de um país.

Assim, sempre que se obtiver do Poder Judiciário uma autorização dizendo " – faça, pois vislumbro a existência de um direito seu e confiro legalidade a seu ato", não poderá, por pressuposto lógico, ocorrer um momento posterior em que esse Poder entregue o cidadão à própria sorte dizendo: " – agora entendo não haver aquele direito: sofra as conseqüências de ter agido sob minha autorização, pois ela agora não tem mais validade!". Isso seria negar validade aos princípios da efetividade das decisões judiciais, da legalidade, do livre acesso à jurisdição e da ampla defesa, bem como ao sobreprincípio maior, da segurança jurídica.

Fácil observar que, se a empresa está devidamente autorizada por ato judicial a efetuar o recolhimento das contribuições no prazo assinalado pela legislação anterior, no instante em que assim procedeu, não praticou qualquer ilícito administrativo.

Aliás, é absurdo afirmar que ao ser cassada a liminar, torna-se ILEGAL o que antes era plenamente LEGAL, sob seu amparo. É óbvio que a retroação da cassação da liminar não se reveste desse condão, de retirar a proteção legal antes conferida para a prática de um determinado ato, autorizado pelo Judiciário.

No momento em que se deram os atos jurídicos (recolher as contribuições até o oitavo dia), havia a chancela judicial protetora que tornava lícita a não observância das normas supra mencionadas (mera questão de data e não do recolhimento em si mesmo considerado). E essa licitude não pode ser preterida posteriormente, de forma retroativa, pois o ato jurídico era perfeito e acabado sob a égide da tutela jurisdicional e retratava, naquele momento, um direito individual adquirido e exercitado provisoriamente sob o manto da proteção do Estado.

A cassação da liminar restabelece o status quo ante, ou seja, obriga o contribuinte a adequar-se aos imperativos da nova lei, dizendo-os legítimos. Mas todos os atos jurídicos praticados na vigência da liminar são válidos. Não se faz presente, na hipótese, qualquer infração, ensejadora de ilícito tributário passível de apenamento e não se pode conceber que os atos praticados no passado possam deixar de ser lícitos no futuro para tornarem-se ilegítimos e ser apenados.

Princípios constitucionais protegem o contribuinte neste caso e não o deixam ao desamparo da segurança jurídica.

Dizer, de forma pura e simplista, que a liminar cassada ou revogada perde seus efeitos retroativamente, o que estaria asseverado por Súmula (STF-405), sem levar-se em conta os princípios do Direito e sem avaliar o ordenamento jurídico em sua conjuntura integral, é por demais perigoso e pode constituir sofisma jurídico.

Daí porque a advertência de ALFREDO AUGUSTO BECKER, quando diz que "Certas teorias mostram-se facilmente inteligíveis e simples precisamente porque são edificadas sobre apenas um fragmento das bases integrais; e, quando destruídas pela análise, resta sempre um truncamento de coluna indestrutível (aquele fragmento) a lançar entre as ruínas a sua sombra enigmática de meia verdade".(16)

Ocorre que a pretensão fiscal do Estado fica suspensa durante a vigência da liminar concedida em mandado de segurança, conforme nos aponta PAULO DE BARROS CARVALHO: "Concedida a liminar, em processo de mandado de segurança impetrado contra ato jurídico administrativo de lançamento tributário, a exigibilidade do ato fica suspensa, de sorte que a Fazenda passa a aguardar a sentença denegatória, ou, então, que a medida venha a ser sustada."(17)

Se a liminar autorizar o contribuinte a proceder ao recolhimento tributário em data diferenciada da determinada por nova legislação (no exemplo em tela, até o dia 8 do mês subseqüente, quando a nova lei diminui o prazo para o dia 2), não é de se exigir, durante a vigência da liminar, que aquele proceda de forma diversa. Logo, seus atos são lícitos.

Autuar o contribuinte por atraso no recolhimento (que não ocorreu), na vigência da ordem judicial, é negar efeito ao comando judiciário, válido e eficaz, enquanto perdurou a tramitação processual.

E nem se queira afirmar que a cassação da liminar opera efeitos retroativos neste caso, pois não há como retroagir no ponto em que autorizou a mudança (na verdade, manutenção) da data de recolhimento, já que é absolutamente impossível ao contribuinte voltar no tempo para proceder de acordo com a sentença de mérito e recolher no dia 02 o que foi recolhido no dia 08. Poderá apenas adequar-se para os recolhimentos futuros.

Neste caso, os efeitos da cassação operam-se "ex nunc" e não "ex tunc".

Pode-se até conceber que tal retroação ocorreria, caso a liminar houvesse sido deferida para que não se efetuasse o recolhimento do tributo.

Então, cassada a liminar, aquele recolhimento não efetuado voltaria a ser devido. A diferença dos dois casos é claríssima. No segundo, é possível efetuar o recolhimento que não ocorreu. No primeiro, é impossível efetuar o recolhimento havido em data diferenciada daquela em que o mesmo ocorreu!

Muito menos se poderá dizer que o contribuinte correu o risco e deve arcar com as conseqüências do não acolhimento de sua tese. Pensar assim seria agredir aos preceitos basilares do ordenamento jurídico. Seria afrontar o sobreprincípio da segurança jurídica, negar validade às decisões judiciais e criar obstáculo inconstitucional ao direito de petição e ao acesso à jurisdição.

Realmente, por força de preceito constitucional, a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito (art. 5o, inc. XXXV). A preservação da harmonia do sistema jurídico exige que se entenda aquela tese jurídica de forma a que não se anule essa garantia constitucional. Assim, se a atividade da Administração Tributária é especificamente identificada, e há evidência de que, nessa modalidade específica, configura lesão, ou ameaça a direito do contribuinte, evidentemente pode ser vedada por provimento judicial. Não teria sentido algum a garantia de apreciação judicial, se o Judiciário não pudesse garantir o direito contra a lesão, ou a ameaça de lesão.(18)

Vale dizer que, na vigência de providência judicial autorizadora da prática de um ato, este ato é respaldado pelo direito e assim se perpetua. Se alterado o tratamento posteriormente, cessam os efeitos da liminar, mas não desaparece a licitude do ato praticado na sua vigência, pois é da essência da providência judicial conferir legalidade aos atos praticados sob sua égide.

E como se trata de lançamento tributário(19), relativo a consectários legais, vez que a multa, os juros de mora e a correção monetária são acessórios em relação à contribuição, que é principal, há que observar-se a lição de ROQUE ANTONIO CARRAZA, quando, ao analisar a segurança jurídica em matéria constitucional-tributária, condiciona a hipótese de incidência à descrição minudente e exaustiva do tipo tributário, sem o que não há tributo e não pode o mesmo ser exigido:

"A hipótese de incidência tributária – sempre veiculada por meio de lei – deve conter uma exaustiva descrição dos pressupostos tributários, apta a permitir que todos eles sejam perfeitamente reconhecidos, quando ocorrerem, no mundo fenomênico. Esta idéia vem acentuada por Sacha Calmon Navarro Coelho, para quem o fato gerador in abstracto (hipótese de incidência) deve ‘(...) ser minuciosamente descrito (princípio da especificação) para evitar ao intérprete ou ao aplicador da lei entendimentos dilargados ou contraditórios a seu respeito, gerando insegurança e incerteza para o contribuinte’. Quando a hipótese de incidência é incompleta, ou seja, não descreve, de modo exaustivo, o "tipo tributário", a exação não poderá ser exigida".(20)

Ora, pode até a legislação previdenciária prever a incidência de multa, juros de mora e correção monetária para o recolhimento a destempo das contribuições. Mas não faz qualquer referência – portanto, não descreve minudentemente a hipótese de incidência – quando se trata de recolhimento amparado em liminar, caso a mesma venha a ser supervenientemente revogada.

A despeito de toda a temática desenvolvida acerca da segurança jurídica afeta às decisões judiciais, o próprio exercício de tributar também encontra-se vinculado a esse arcabouço principiológico. Foi por tal razão que o legislador constituinte estabeleceu um desenho completo e rígido do poder de tributar. Tudo o que fugir desse delineamento esbarra na própria Constituição. Daí o exigir-se, em matéria tributária, um certo apego ao positivismo, aliado ao rigor científico interpretativo, calcado em princípios e elementos conceituais.

Nesse enfoque, LUIS ROBERTO BARROSO assinala que "o resgate da imperatividade do Texto Constitucional e sua interpretação à luz de boa dogmática jurídica, por óbvio que possa parecer, é uma instigante novidade neste país acostumado a maltratar suas instituições."(21)

Não se pode confundir, portanto, "atos não praticados" com "atos praticados na vigência da liminar". É óbvio que, se a liminar operou efeitos para desonerar o contribuinte momentaneamente do recolhimento de um tributo, ao ser cassada ou revogada, deixa de produzir efeitos e opera retroativamente. Isso nem poderia ser diferente.

Mas, no momento em que o tributo é recolhido, mas por força da liminar isso ocorre em um prazo diferenciado (questão de poucos dias, como no caso), faz-se equivocado pensar que sua cassação opere retroativamente para tornar o contribuinte um infrator por não ter recolhido o tributo na data especificada e torná-lo passível de responder por multas e juros de mora. Aqui repousa a grande diferença.

Situação idêntica a esta se verifica quando o contribuinte recebe do Judiciário autorização para efetuar o depósito integral da exação indevidamente exigida. Vencido o contribuinte na ação, o Fisco levanta no presente os valores depositados no passado, mas não pode impor penalidades pelo atraso no pagamento, que só agora torna-se efetivo.

Isto porque, ao recolher tributos em conformidade com ordem judicial liminarmente concedida, não comete o contribuinte qualquer infração. Por isso não pode ser autuado, posto que não se encontra em débito, nem em atraso. Os efeitos da liminar não podem retroagir para invalidar a ação positiva do contribuinte (de recolher a exação) e penalizá-lo por não tê-lo feito no prazo diferente daquele que a liminar concedeu-lhe.

Se o Judiciário aceitasse essa situação, estaria decretando a invalidade e insegurança jurídica de suas próprias decisões. Estaria confirmando um proceder ilegal do agente público, que se aproxima da vindita contra o contribuinte que "ousa" questionar o Governo e suas determinações.

É impensável que o Poder Judiciário acate tão acintoso desrespeito, levado a efeito pelo INSS contra suas decisões. É insustentável a idéia de que a Previdência possa dar prosseguimento a essas cobranças, invalidando, na via administrativa, a proteção jurídica que foi dada pelo juízo competente, na via judicial.

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Sobre o autor
Helder Martinez Dal Col

Advogado e Professor no Paraná, Especialista em Direito Civil e Processual Civil pela Fundação Getúlio Vargas (FGV/RJ), Mestre em Direito Civil pela Universidade Estadual de Maringá (UEM/PR)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COL, Helder Martinez Dal. Cassação de liminar em mandado de segurança em matéria fiscal e o sobreprincípio da segurança jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 46, 1 out. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1292. Acesso em: 22 dez. 2024.

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