1. Introdução
As relações sociais intensificaram-se sobremaneira no último século, exigindo, por parte do Estado, uma maior intervenção, no sentido de regrar e regulamentar o comportamento humano.
Se, por um lado, a concepção atual é a de que o Direito Penal deve tratar apenas de ilícitos mais graves, ou seja, ser reservado apenas para a repressão de atos efetivamente danosos e/ou praticados por pessoas consideradas perigosas, por outro lado, a percepção de que o direito sem sanção não apresenta eficácia é hoje aceita por todos.
Por isso, um dos ramos do direito teve sua importância elevada a um grau inimaginável: o Direito Administrativo Sancionador, ramo da ciência do direito que cuida das sanções não penais, [01] nas palavras de Eduardo Fortunato Bim. [02]
Contudo, esse ramo do Direito não obteve por parte dos operadores do direito brasileiros a devida atenção. Na doutrina pátria são poucas as obras que se aprofundam sobre o tema. [03] A falta de atenção dos juristas brasileiros a este ramo do direito, em especial no âmbito das sanções de trânsito, tem, como principal efeito, uma legislação recheada de inconstitucionalidades e ilegalidades. [04] Isto porque quase não há discussão e debate jurídico sobre os institutos do Direito Administrativo Sancionador, realidade que esperamos, em breve, seja superada.
Objetivamos com este estudo demonstrar a utilidade do estudo das sanções previstas no Código de Trânsito Brasileiro, em especial, no tocante aos "pontos", e a penalidade de "suspensão direta" do direito de dirigir, à luz dos princípios gerais do direito administrativo sancionador.
2. As sanções do Código de Trânsito Brasileiro
O novo CTN – Lei 9.503/97 – veio atender um reclamo da sociedade brasileira [05]: o endurecimento das sanções previstas para motoristas infratores.
Contudo, as espécies de penalidades previstas no Código de Trânsito são muito semelhantes às previstas na antiga legislação. Encontram-se elencadas no art. 256 do CTB, e são as seguintes: I - advertência por escrito; II – multa (sanção pecuniária); III - suspensão do direito de dirigir; IV - apreensão do veículo; V - cassação da CNH; VI - cassação da Permissão para Dirigir; VII - freqüência obrigatória em curso de reciclagem.
A par da tremenda majoração dos valores das multas pecuniárias, outra inovação foi, sem dúvida, mais impactante. Na tentativa de tornar eficazes as sanções aplicadas e reprimir a reincidência, o novo Código de Trânsito adotou o instituto dos "pontos" (arts. 259 e 261, § 1º). A cada infração cometida são anotados "pontos" ao prontuário da carteira de habilitação do motorista infrator. Atingido o total de vinte pontos, num prazo inferior a doze meses, o infrator esta sujeito à suspensão do direito de dirigir, restrição que pode durar de um mês a dois anos (art. 261 do CTB) [06], além da penalidade pecuniária. E para reaver o direito de dirigir, o motorista suspenso deve obrigatoriamente passar por um "curso de reciclagem" (CTB, art. 261 § 2º).
E, na esteira de sanções mais severas, o Código adotou a penalidade de "suspensão direta", ou seja, elegeu algumas infrações que, cometidas apenas uma vez ensejam a suspensão do direito de dirigir, independentemente do número de pontos que possua o condutor anotado em seu prontuário.
Contudo, como veremos, este mecanismo dos pontos, apesar de louvável, do modo em que está vazado no Código é extremamente injusto e iníquo, colocando em situação igual todos os tipos de infrações de trânsito, apenando motoristas que cometeram atos de diferentes graus de periculosidade da mesma forma, o que repele o bom direito. Nas palavras do Professor e Magistrado Rizzatto Nunes, no que tange à peculiar questão dos pontos, o Código é draconiano. E o Professor tem razão. Vejamos.
3. Ius puniendi e a sanção administrativa
Como já afirmamos, o ius puniendi do Estado é uno. Então, apesar de reconhecermos uma diferença evidente entre sanções penais e administrativas, e suas respectivas autonomias frente à ciência jurídica, resta claro que são desdobramentos de uma única manifestação de poder do Estado, que o capacita a penalizar aqueles que infringem o ordenamento jurídico.
Tanto que ensina Régis de Oliveira: "O conceito de antijuridicidade é comum aos diversos ramos do Direito; pertence à teoria geral do Direito. Por isso não se distinguem os ilícitos civil, criminal e administrativo, em sua essência; ontologicamente são uma e mesma coisa." [07]
Para Juan Zornoza Perez, a razão pela qual existe esta identidade entre delitos e sanções administrativas é uma só: Ambos têm "esa función, de castigar el infractor por la transgresión del ordem jurídico, imponiéndole una pena, esto es, infligiéndole um sacrificio con finalidad corretora, represiva e intimidatoria", sendo as sanções administrativas "auténticas penas o, si se prefiere, tienen idéntica natureleza que las sanciones que corresponden a las infracciones criminalizadas." [08]
Já se disse que a maioria dos conceitos relativos ao direito penal são, na realidade, supraconceitos, que compreendem tanto o delito criminal como o administrativo. [09] E isso se dá por dois motivos. Primeiro, porque o direito penal, anterior à atividade administrativa sancionadora do Estado, já possui um considerável desenvolvimento doutrinário e legal, com seus institutos sedimentados na ciência do Direito. E, porque a aproximação desses institutos "descansa em la consideración inobjetable de que igual el castigo del delito que la sanción por infracciones administrativas son manifestaciones del ‘ius puniendi’ del Estado, sin que se den razones para um tratamiento diferente." [10] Não discrepa deste entendimento a doutrina [11] e a jurisprudência brasileira. [12]
Contudo, estamos com Ángeles de Palma del Teso, quando afirma que o estudo das sanções administrativas não se resolve com a simples utilização dos conhecimentos de direito penal. [13] A solução, como atesta a melhor doutrina, é respeitar as "matizes" [14] deste tipo de atividade sancionador estatal, reconhecendo suas similaridades e incongruências.
Assim, como já se disse neste estudo, os elementos do ilícito administrativo também são os do tipo penal. Além disso, uma enorme gama dos princípios basilares do direito penal tem grande aplicabilidade para o estudo das sanções administrativas, como os da legalidade, tipicidade, non bis in idem, irretroatividade das normas sancionadoras, presunção de inocência, devido processo legal, [15] proporcionalidade, retroatividade de norma favorável, e o princípio in dubio pro reo, [16] sendo empregável ainda, as causas supralegais de exclusão da ilicitude, como a inexigibilidade de conduta diversa, conforme veremos adiante.
3.2 Inexigibilidade de conduta diversa
A violência urbana cresceu dramaticamente nas duas últimas décadas, esse é outro fator que gera desrespeito às leis de trânsito. Temos para nós que as infrações cometidas em circunstâncias onde, para respeitar a lei de trânsito, o condutor pode colocar sua integridade física ou vida em risco, ou dos ocupantes do veículo, não devem ser apenadas, pois inexigível conduta diversa. Apesar de instituto característico do Direito Penal, a inexigibilidade de conduta diversa tem grande utilidade no âmbito das infrações de trânsito, pois, como disse Eduardo Fortunato Bim, "há princípios que, apesar de desenvolvidos e comumentemente aplicados em determinado ramo do Direito, e aqui falamos, principalmente, do Penal, são típicos do Direito Punitivo ..., isso porque eles fazem parte de um direito mais geral, que engloba todos esses ramos quando tratam de matéria punitiva. São os princípios do Direito Sancionador." [17]
O fato proibido (típico), via de regra, consiste no comportamento capaz de se subsumir num tipo previsto na norma de trânsito; isso já é indício de antijuridicidade, que pode ser descaracterizada (afastada) pela ocorrência de alguma causa de justificação – norma permissiva (legal ou supralegal) – que autorize o comportamento do agente, como vaticina Fábio Medina Osório. [18] Frisamos que este ensinamento é feito sobre o pálio das normas do Direito Administrativo Sancionador, sendo, então, útil no que tange às infrações de trânsito, pois estas são estudadas especificamente por este ramo da ciência do direito.
Marco Antonio Hahum, explica que o direito prescreve sanções contra alguns atos, para coibi-los, ou seja, para evitando-os, [19] "proteger valores essenciais da sociedade", [20] como v.g., o trânsito seguro. Contudo não é qualquer ofensa à norma que gera sanção. Entre outras coisas deve-se observar no agente sua atitude interna em relação ao ato praticado.
Continua o Prof. Nahum, explicando que "essa análise individual decorre do princípio da alteridade, [21] que fundamenta o princípio da dirigibilidade normativa (ou capacidade de comportamento conforme a norma, ou, ainda, capacidade de conformação da personalidade às exigências do sistema normativo), que constitui o material dos três elementos que compõem a culpabilidade." [22]
Segundo Damásio, "não pode haver juízo de reprovabilidade quando o sujeito executou o fato em face de circunstâncias de certa anormalidade, e a normalidade não existe no caso de um perigo". [23] Em alguns centros urbanos brasileiros vive-se em constante "anormalidade das circunstâncias", com índices de violência que superam o de áreas em guerra declarada, caracterizando situação perigosa e extremamente anormal. Logo, estamos diante de situação que modifica o comportamento das pessoas, e "exclui a ilicitude da conduta ou a culpabilidade do agente." [24]
Afonso Rodrigues Queiró leciona que o Direito é meio para o Estado atingir seus fins. Este jurista parte de um interessante paradigma – que o Estado é um ente cultural criado visando um fim maior, e formado (institucionalizado) através de um ordenamento jurídico, igualmente fruto de uma criação cultural, que tende ao ético e ao justo, valores eminentemente culturais. [25] Logo, segundo o Prof. Queiró, o intérprete da lei deve "captar o sentido cultural das normas jurídicas." [26]
Mirabete, com base em estudo de Ruy Freitas Camargo, não ignorou que existe algo na lei, cujo fundamento vai além dela, afirmando que causas supralegais de exclusão da ilicitude, mesmo quando não positivadas em norma escrita, existem, e são corolários de um Estado de direito. Assevera, pois, que antes de decidir se o ato é punível, o jurista deve observar se o ato afronta as "normas de cultura", os valores que a regra protege. [27] Da lição de Queiró e Mirabete pode-se concluir que, se um fato típico, mas que, em sua essência, não afronta as normas de cultura (= comportamento socialmente aceito como lícito), não afronta a norma, pois o legislador não tem a capacidade de prever em que condições os atos são praticados, e, assim, positivar todas as excludentes de ilicitude.
E, em feliz conclusão, afirma Marco Antonio Nahum que "as normas de direito penal dirigem-se ao homem normal e não ao herói moral. Não tem sentido censurar o agente que cometeu uma ação em circunstâncias tais que levariam a generalidade das pessoas honestas a cometê-la também." [28]
E, na seara do direito administrativo outra não é a lição de Régis de Oliveira: "Se a infração resulta de causa estranha – p. ex., ação de terceiros ou força da natureza – impossível era-lhe evitar o evento, bem como inadmissível a escolha de outra conduta." [29] Daniel Ferreira defende, sob o pálio do direito administrativo sancionador que "o comportamento que enseja a sanção há de ser, simultaneamente, típico (isto é, deve se amoldar à hipótese objetivamente prescrita), antijurídico (portanto, contrário a determinação legal) e voluntário (deve haver, pelo menos, a voluntariedade da conduta), ou seja deve precisa e voluntariamente contrariar a previsão genérica contida na norma de conduta, sob pena de in concreto não constituir ilícito." [30] Aquele que comete uma infração de trânsito para salvar sua vida não esta voluntariamente contrariando a previsão genérica contida na norma, e sim buscando proteger o maior patrimônio do homem: a vida.
Em suma, há casos onde a falta de segurança impede o Estado de cobrar dos motoristas respeito à lei de trânsito. E, se a administração não dá a população garantias de trânsito seguro, impondo a lei, sem os temperamentos que reserva para si (por exemplo, o não respeito à regra prevista no art. 94 do CTB), afronta a moralidade. E, nada de mais deletério há, do que afronta à moralidade. [31]
3.3 Caracterização da Sanção Administrativa
Uma das peculiares da sanção administrativa é ser diretamente aplicada pela autoridade administrativa competente, sem a necessidade de instauração de processo judicial para averiguar-se o ato dito ilícito. Segundo a doutrina este seria o grande diferencial entre as sanções penais e as administrativas. As primeiras só são cominadas após um processo judicial (e podem ter o caráter de restrição da liberdade pessoal). As segundas são impostas pela autoridade administrativa (ou por autoridades legislativas e judiciárias em função atípica [32]), vedadas as penalidades de detenção e reclusão.
Mas isso não quer dizer que, nas sanções administrativas, não seja possível o exercício do direito de defesa. A defesa é feita em processo administrativo, sendo desnecessária a abertura de um processo judicial. [33] Como já se disse "los administrados no deben recibir peor trato que los delincuentes", [34] sendo certo que, no Brasil (CF/88, art. 5º inc. LV), aos acusados por cometimento de infração de trânsito é garantido "o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes".
3.4 Responsabilidade e Sanção Administrativa de Trânsito
Outro elemento que se faz necessário comentar é a responsabilidade por infração administrativa. No âmbito do direito penal a responsabilidade é pessoal e intransferível (CF/88, art. 5º, inc. XLV). Temos para nós que tal preceito tem vigência no âmbito das sanções administrativas, com alguns temperamentos (matizes).
As sanções punitivas são de exclusiva responsabilidade do condutor, como, aliás, é da própria redação do art. 257 § 3º do CTB: "Ao condutor caberá a responsabilidade pelas infrações decorrentes de atos praticados na direção do veículo." Mas devemos frisar que, no âmbito das sanções administrativas existe a chamada responsabilidade subsidiária, que não se confunde com responsabilidade objetiva. Talvez aqui resida a matiz que as diferencia das penalidades criminais.
Esta responsabilidade subsidiária decorre de fatos como, por exemplo, não se indicar, no prazo legal, o verdadeiro infrator, ou aquela pessoa que estava na condução do veículo no momento da ação tida como antijurídica. Enfim, a transferência da responsabilidade sobre a penalidade é decorrente de uma relação de descumprimento do dever de informar, e não do simples fato de ser proprietário do veículo, ou mesmo, sucedê-lo na propriedade. E obviamente, esta responsabilidade só é transferível se, respeitado o devido processo legal, o proprietário não indicar o verdadeiro infrator. Deficiências na notificação, por exemplo, fazem cair por terra qualquer penalidade de trânsito, como já sumulou – por duas vezes – o STJ. [35]
Neste sentido é totalmente inconstitucional a Resolução do Contran 108/99, que estabelece, "art. 1º - o proprietário do veículo será sempre responsável pelo pagamento da penalidade de multa, independente da infração cometida, até mesmo quando o condutor for indicado como condutor-infrator nos termos da lei, não devendo ser registrado ou licenciado o veículo sem que o seu proprietário efetue o pagamento do débito de multas, excetuando-se as infrações resultantes de excesso de peso."
Não foi à toa que já se escreveu que "el Derecho Administrativo es el campo más fértil de la legislación contingente y ocasional, de las normas parciales y fugazes." [36] O dispositivo é ilegal, [37] por que cria direitos e obrigações não previstos na norma que deveria apenas regulamentar, transbordando da competência que lhe é reservada. O CTB diz claramente que a responsabilidade é pessoal. [38] Além disso, é inconstitucional, pois fere o princípio da pessoalidade da pena (CF/88, art. 5º, inc. XLV), já que as sanções de trânsito objetivam castigar o infrator, e não gerar renda ao Estado. E, como já se disse, todo ato administrativo que se desvia do fim colimado, é ilegal.
Para Eduardo García Enterría, "las autoridades administrativas pueden contar y cuentan, com toda normalidad, com poderes discricionales, pero no para el cumplimiento de cualquier finalidad, sino precisamente de la finalidad considerada por la Ley, y en todo caso de la finalidad pública, de la utilidad o interés general. E as al hilo de esta observación como se monta la técnica de control de la desviación de poder. El acto discricional que se ha desviado de su fin, del fin en vista del cual el Ordinamiento otorgó el poder, ha cegado la fuente de su legitimidad. Incurse és un vicio que, naturalmente, puede ser fiscalizable por los Tribunales." [39]
Jesús González Péres ensina que, usurpada a competência, o ato normativo "no será valido, y podrá hacerse valer la anulabilidad o nulidad de pleno Derecho (...) sobre todo cuando bajo la apariencia de legalidad el vicio en que se incurre es la desviación de poder." [40] Penalidade imposta que não é cobrada do infrator, pelo simples argumento de que o proprietário é responsável pelos ônus que recaiam sobre o bem, tem seu caráter punitivo desfigurado, apresentando-se como mais uma fonte de arrecadação, caracterizando, então, o desvio de finalidade. [41] Como bem disse o Des. Nagib Slaibi Filho as penalidades de trânsito não se travestem em obrigações propter rem, posto que a responsabilidade, neste caso, é personalíssima. [42]
É medida de profilaxia jurídica a imediata retirada do ordenamento jurídico da Resolução do Contran 108/99, ou sua adequação às regras do sistema jurídico vigente. Se o objetivo da legislação de trânsito é a educação (CTB, art. 6º), qual é a eficácia da medida punitiva quando aplicada ao proprietário do veículo, e não ao condutor identificado? Nenhuma!