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O Código de Trânsito Brasileiro à luz dos princípios do direito sancionador

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15/06/2009 às 00:00
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7. Princípio da igualdade

Como já se disse, "o CTB colocou num mesmo patamar infratores perigosos e infratores sem nenhuma periculosidade. Isso foi feito pelo equivocado sistema de pontuação, que pretende punir o infrator que atinge uma escala de números (mais de 20 pontos), independentemente da qualidade das infrações. E esse aspecto viola claramente o princípio constitucional da igualdade." [95]

Igualar situações tão díspares, como impor a mesma pena a quem estacionou em local proibido e aquele que praticou a "roleta russa" agride a igualdade, pois deve haver um mínimo de lógica nos discrímens consagrados pela lei. Nesse ponto é firme a lição de Cármen Lúcia Antunes Rocha, verbis: "O Estado não pode criar legalidades discriminatórias e desigualatórias, nem pode deixar de criar situações de igualação para depurar as desigualdades que se estabeleceram na realidade social em detrimento das condições iguais de dignidade humana." [96]

E o Estado deixou de considerar as desigualdades entre as ações dos motoristas infratores, jogando todos na mesma vala comum, aplicando-lhes a mesma penalidade, independente da gravidade de seus atos. Proibir o acesso ao trânsito e ao direito de dirigir a que cometeu mera infração administrativa é negar ao cidadão acesso a um bem material necessário ao seu pleno desenvolvimento. [97] Na maioria das vezes, não existe correlação lógica entre os pontos e as infrações cometidas, afronta clara ao princípio isonômico. [98]

Mas, pior que isso tudo, é o fato abominável que permite aqueles dotados de mais recursos obter condições de evitar quaisquer desses aborrecimentos, o que se traduz na mais vil das desigualdades que podem ocorrer no seio de um Estado cujo objetivo é erradicar a pobreza e reduzir a desigualdade (CF, art. 3º).

Aquele que colocar o veículo em nome de pessoa jurídica, ou colocá-lo em nome de pessoa que não possua habilitação, está livre para cometer quantas infrações quiser, somente pagando pelas penalidades pecuniárias. É a consagração do odioso "infrinjo, mas pago" – afronta acintosa ao Estado Democrático, mas vigente em nossa lei de trânsito.

Às pessoas jurídicas que não informam o condutor responsável pela infração de trânsito, é emitida apenas mais uma penalidade pecuniária (art. 257, § 8º). Às pessoas que não possuem habilitação, não há previsão de nenhum tipo de penalidade, sanção ou restrição, sendo então possível a ilação de que, colocado o veículo em nome de alguém não habilitado, o motorista obtém um salvo conduto que o permite cometer quantas infrações quiser, sem se preocupar com eventuais penalidades de suspensão direta do direito de dirigir, ou preocupar-se em atingir vinte pontos.

Isto porque a maiorias das infrações hoje em dia são lançadas por equipamentos eletrônicos, que se guiam pela placa do veículo. Com essas multas, no tocante à suspensão do direito de dirigir, aquele que colocar o veículo em nome de pessoa inabilitada não precisa se preocupar, bem como aquele cujo veículo está em nome de pessoa jurídica. Este indivíduo deve preocupar-se apenas com as multas emitidas por agente de trânsito, que lhe colha a assinatura no momento da aplicação da infração.


8. Infração de trânsito e processo administrativo

Cometida uma infração de trânsito, o agente público (ou o radar) lançará auto de infração (art. 280). [99] Hoje em dia, a maioria das infrações são lançadas por radares, lombadas eletrônicas, sendo impossível a colheita da assinatura do condutor. A multa será remetida à autoridade de trânsito que, então, notificará o autuado, aguardando sua manifestação "preliminar" ou a indicação do verdadeiro infrator. Justificando-se preliminarmente, silente o autuado, ou indicado o verdadeiro infrator, a autoridade "julgará" a consistência do auto de infração e, se for o caso, arquivará o auto ou aplicará a penalidade cabível (art. 281), notificando novamente o infrator (dupla notificação – Súmula 312 do STJ).

No momento da "segunda notificação", caso tenha julgado procedente o auto, lavrará a penalidade, expedindo, em trinta dias, a notificação da imposição da sanção administrativa de trânsito. E é neste momento que a maioria das ilegalidades formais aparecem. Tanto é assim que o STJ editou Súmula de n. 127, que reza: "É ilegal condicionar a renovação da licença de veículo ao pagamento de multa, da qual o infrator não foi notificado." Isso é mostra eloqüente que o devido processo legal, na cobrança das multas de trânsito, não tem sido muito respeitado.

O prazo para o envio da notificação de imposição de penalidade é de trinta dias (dies a quo = dia do fato), sob pena de decair [100] a administração do direito de apenar o infrator acusado (art. 281, inc. II). Frisamos que o prazo decadencial se refere ao envio, e não ao recebimento da notificação pelo infrator.

Recebendo a notificação, o infrator deverá ter garantido pelo menos trinta dias para apresentar sua defesa (art. 282 § 4º), antes da data final de vencimento, sob pena de cerceamento de defesa, e nulidade do ato administrativo que visa impor a penalidade. Devemos frisar que o acusado deve dispor de trinta dias, no mínimo, para manejar o recurso cabível. Obviamente, a autoridade de trânsito, se provocada em processo administrativo ou judicial, deverá comprovar a notificação do motorista infrator, [101] dentro dos prazos estabelecidos em lei, certificando-se de enviar a notificação de maneira a obter recibo. Isto porque o administrado não pode provar que não recebeu a notificação (uma vez que a prova negativa é considerada verdadeira "prova diabólica" repelida pelo bom senso e pelo Direito).

Acontece que as autoridades de trânsito querendo aumentar ainda mais sua arrecadação, tentam economizar neste momento, enviado as notificações por meio simples correspondência, sem nenhum tipo de recibo (aviso de recebimento). Nos processos onde o administrado alega não ter sido notificado, a Administração apresenta relatório de envio de correspondência. Mas tal relatório é prova tão somente do simples envio da notificação, [102] capaz de elidir apenas a questão da caducidade do direito de apenar. Não comprovado documentalmente que o infrator recebeu a notificação trinta dias antes do vencimento da multa, a cobrança é nula, o auto de infração deve ser arquivado por caducidade e é vedada a anotação de pontos na CNH do motorista, por ofensa ao devido processo e a ampla defesa (STJ, Súmula 127).

Correspondência que imputa fatos com tão graves implicações deve ser remetida com todo o cuidado. [103] Segundo o art. 314 do CTB as portarias e resoluções anteriores ao Código foram recepcionadas, até a edição de novas, que as substituam. Logo, as notificações devem respeitar a Resolução 829/97, que prevê que o ato punitivo deve ser levado ao conhecimento do apenado por notificação pessoal, carta registrada, Telex ou Fax, ou por edital. Todas estas formas possuem meios de comprovar o efetivo recebimento. Carta simples não deve ser tolerada.

Esta Resolução está em sintonia com a Lei 9.784/99, que regula o processo administrativo no âmbito da administração pública federal. Esta lei, em seu art. 26, § 3º, reza que intimações ao administrado serão feitas por ciência no processo, por via postal com aviso de recebimento, por telegrama ou outro meio que assegure a certeza da ciência do interessado.

O recurso administrativo, se não julgado em trinta dias, receberá, automaticamente, efeito suspensivo. Apesar do § 3º do art. 285 dizer poderá ser concedido o efeito suspensivo, na realidade, deve-se ler tal dispositivo como deverá ser concedido. E assim tem entendido a jurisprudência. [104] A razão deste nosso posicionamento tem bases nas conseqüências que a não concessão do efeito suspensivo pode acarretar. O julgamento administrativo da infração pode (ou não) manter a sanção. E se não a mantiver, cancelada e arquivada será a penalidade, e os pontos que ela origina.

Logo, existe uma relação de prejudicialidade entre o processo administrativo de imposição de multa de trânsito e o de imposição da sanção de suspensão do direito de dirigir (tanto a originada pelos vinte pontos, quanto a originada pela penalidade que prevê a "suspensão direta" do direito de dirigir).

Como já dissemos, os motoristas infratores, pela nova lei de trânsito, estão sujeitos, além da sanção pecuniária, a anotação de pontos em seu prontuário. A cada vinte pontos, num período inferior a um ano, suspenso estará, depois de um procedimento administrativo em que se lhe assegure a defesa e contraditório, o direito de dirigir.

Além dos pontos, o código ainda elenca, em algumas das infrações, a penalidade de "suspensa direta" do direito de dirigir, ou seja, infrações que cometidas uma só vez, já prescrevem como conseqüência a suspensão do direito de dirigir, independente do número de pontos que possua o motorista infrator. Frisamos que esta última penalidade só é aplicável, garantido ao infrator, através do contraditório e do devido processo legal, o amplo direito de defesa.

Insistiremos neste particular. Cometida a infração será instaurado um processo administrativo (seguindo o roteiro acima exposto) que julgará a validade da multa aplicada. Somente após a decisão (definitiva) neste processo, com as devidas garantias, é que será instaurado outro processo, este sim, visando aplicar a penalidade de suspensão do direito de dirigir, assim que atingidos os vinte pontos ou cometida infração que preveja a penalidade de suspensão direta.. Igualmente, neste processo, serão garantidos ao cidadão a ampla defesa, com os meios e recursos a ele inerentes.

Daí dizermos que há uma relação prejudicial entre um e outro processo. Contudo, isso não quer dizer que, se o motorista infrator não se defender no primeiro processo administrativo (o de imposição da multa de trânsito), não possa, agora, fazê-lo no processo administrativo de suspensão do direito de dirigir, inclusive argüindo nulidades que seriam alegáveis naquele primeiro processo. O pagamento da sanção pecuniária, ou a revelia no primeiro processo de imposição da multa, não importa em confissão de culpa.

Outra questão tormentosa é a da aplicação do princípio da proporcionalidade pelos tribunais administrativos ou autoridades de trânsito. Entendemos que tal princípio não encontra óbice para sua utilização na vias administrativas, inclusive porque é recepcionado pela lei de trânsito.

O CTB, em seu art. 256 prevê uma escala de sanções (incisos I ao VII), que são crescentemente gravosas, demonstrando que existe um critério de proporção subjacente às penalidades de trânsito. Neste sentido também o art. 160, § 2º, que prevê que o condutor condenado por crime de trânsito, em caso de acidente grave, poderá ou não ter sua CNH apreendida, por decisão da autoridade de trânsito. Ora, por que não estender este benefício previsto para os crimes de trânsito, para o julgamento das infrações administrativas de trânsito, uma vez que um e outro não diferem, ontologicamente. De outras banda, a norma do art. 160 prestigia a proporcionalidade, uma vez que a autoridade de trânsito, ao permitir que o motorista continue trafegando, deverá sopesar a restrição em face das circunstâncias do fato.

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Dentro do Estado Democrático de Direito todos devem respeito à lei (mormente os servidores públicos), e isso é sempre levantado como óbice ao reconhecimento de inconstitucionalidade por órgãos administrativos. Mas, se todos devem obediência à lei, devem, em grau muito mais elevado, obediência aos princípios norteadores da Carta Magna, de modo que os tribunais administrativos têm dever de julgar conforme a constituição, a lei e o Direito, como positivado no art. 20 da Lei Fundamental de Bonn.

Argumento contra atitude é o de que, ao julgarem a inconstitucionalidade de lei, os tribunais administrativos estariam usurpando a competência do STF. Discordamos, porque, como bem comprovou Peter Häberle, [105] o Estado democrático é também uma "sociedade aberta dos intérpretes da constituição."

E, como disse Ritinha Georgakilas "muito importante é o papel que desempenham os agentes do Poder estatal, em funções Executiva, Legislativa e Judiciária, através das respectivas competências normativas, para dar cumprimento à Constituição, e, mesmo, definir a fisionomia da Carta Magna." [106] Ao contrário, não se justificaria a manutenção destes tribunais, já que lhes subtraindo a possibilidade de conhecimento de algumas matérias, de nenhuma serventia seriam, pois seria sempre necessário recorrer-se dos tribunais judiciais. Se não estão habilitados a julgar em conformidade com o ordenamento jurídico (constituição, lei e Direito), não deveriam existir. [107]

Apesar de dar a "última palavra" sobre questão constitucional, e ter esta "última palavra" eficácia constitucionalmente garantida, os membros do STF não são os únicos ungidos com o "direito" de interpretar e aplicar a constituição. Em que pese a opinião do eminente Min. Moreira Alves [108] – contrária a aqui exposta – devemos considerar que nosso ordenamento jurídico possui dois modos diretos de controle de constitucionalidade. Assim, se as autoridades de trânsito julgarem sistematicamente a inconstitucionalidade de algum dispositivo, os legitimados que entenderem ser a norma constitucional poderão propor a ação declaratória de constitucionalidade, não havendo, portanto, em que se falar em subtração ou usurpação da nobre função desempenhada pelo STF.

Outra questão é a do licenciamento. Não poderá o motorista ser coagido a pagar multas sobre as quais ainda pende recurso administrativo. [109] Conclusão disso tudo é que, se ainda não há decisão definitiva sobre determinada multa de trânsito, outras implicações desta multa não podem surtir efeito. E, por isso, o recurso deve sempre receber efeito suspensivo, se ultrapassados os trinta dias para o julgamento.

E isto decorre de uma coisa. As sanções de trânsito não possuem a auto-executoriedade. [110] Para Régis de Oliveira, "nem todos os atos punitivos são dotados da força da executoriedade ... não há possibilidade de o Poder Público executar seus atos quando assim está previsto pela legislação, isto é, quando a viabilização do comando administrativo exige intervenção judicial ou quando a lei prevê recurso com efeito suspensivo." [111]

Última questão a ser levantada é a exigência do pagamento da multa para o recurso administrativo de segunda instância. Apesar da posição do STF, que não há garantia de duplo grau jurisdição em processo administrativo, temos para nós que tal posição merece ser revista em face da assinatura, pelo Estado Brasileiro, do Pacto de San José da Costa Rica, que elege, entre alguns dos direitos, o de defesa, e o de recurso à autoridade superior. [112]

Além disso, há afronta ao princípio da igualdade, uma vez que a barreira para a segunda instância é econômica. Existe opinião no sentido de que tal exigência é valida por se tratar de ônus processual. [113] Mas, data venia, discordamos. Ônus processuais existem e fazem parte do devido processo legal, como custas, necessidade de advogado (nos processos judiciais), respeito a prazos e formalidades. Mas, estamos diante do pagamento integral do direito discutido. Isso não pode ser encarado como ônus, e sim como execução adiantada, auto-executoriedade que o ato punitivo não tem.

O Presidente da Republica, ao assinar a MP 75/02, que extinguia a exigência de pagamento para o recurso em segunda instância, reconheceu a incongruência desta exigência. E é digna de repulsa a atitude do Congresso Nacional em repelir as modificações propostas pela citada medida provisória.

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Sobre o autor
Márcio Manoel Maidame

Advogado. Mestre pela FADISP. Especialista pela PUC/SP. Professor e Coordenador do Curso de Direito da Faculdades Atibaia (FAAT).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAIDAME, Márcio Manoel. O Código de Trânsito Brasileiro à luz dos princípios do direito sancionador. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2175, 15 jun. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12974. Acesso em: 15 nov. 2024.

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