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Direito autoral.

Cultura, tecnologia e sociedade

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22/06/2009 às 00:00
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4. Licenças Públicas

As licenças públicas representam um importante passo para o equilíbrio que foi tratado ao final da parte 2 deste trabalho. Não resolvem os problemas relacionados aos dispositivos da LDA analisados anteriormente, mas apresentam uma forma de contornar algumas limitações impostas por aquela norma jurídica. Ademais, o modelo de licenças públicas, como veremos, representa uma forma de tratamento dos direitos autorais convergente com o cenário do mundo digital interligado.

Podemos entender as licenças públicas como contratos atípicos [03], previstos nos termos do artigo 425 [04] do Código Civil, ou seja, contratos cuja forma não está determinada na lei. Cabe destacar que as licenças públicas, ainda que não tenha a forma definida pelo ordenamento jurídico, observa estritamente os preceitos legais. Desta forma, um autor, ao permitir previamente que as pessoas copiem e redistribuam uma determinada obra, desde que atendam a determinadas condições, o faz na exata medida permitida pela lei de direitos autorais, concedendo prévia e expressamente a autorização de que trata o artigo 29 daquela lei.

Um dos mais importantes exemplos de licença pública são as licenças Creative Commons [05]. Estas surgiram de um projeto do professor de direito da Universidade de Stanford, Lawrence Lessig, tendo por base a GNU-GPL, licença livre criada para programa de computadores. Funciona nos moldes do conceito de licença pública apresentado anteriormente: são elaboradas e tornadas disponíveis licenças jurídicas nas quais o autor – ou o detentor dos direitos patrimoniais – concede previamente ao público alguns usos sobre obra protegida, sob determinadas condições. As licenças são configuráveis, de forma a apresentar as intenções do autor, tanto quanto ao tipo de uso que pode ser feito, quanto às condições que devem ser observadas por quem utilizará a obra. A licença é o instrumento utilizado para atender, no caso brasileiro, o disposto no artigo 29 da nossa lei de direitos autorais: o autor concede a autorização – prévia e expressa – para determinados usos da obra. Acrescenta, entretanto, deveres acessórios ao licenciado [06].

Deste modo, e apenas exemplificando algumas possibilidades destes tipos de licenças, poderia o autor de uma música informar que ela pode ser livremente executada, reproduzida e distribuída, desde que tais usos não tenham finalidade comercial, que o crédito ao autor seja sempre dado (na verdade, como vimos, esta cláusula seria obrigatória, pois se trata de direito moral e, portanto, irrenunciável), e que veda a criação de obras derivadas.

Qualquer uso, portanto, que implicasse em finalidade comercial (como colocar a música a venda em um site), ou a criação de uma obra derivada da original (uma versão mixada da música, por exemplo), dependeria, como prevê o artigo 29 da LDA, de autorização prévia e expressa, pois não mais encontram guarida na licença Creative Commons sob a qual a obra foi originalmente distribuída.

Outros tipos de licenças Creative Commons permitem, por exemplo, que o autor conceda o direito de utilização comercial da obra, ou ainda, que ele permita a criação de obras derivadas, desde que estas sejam distribuídas utilizando a mesma licença que concedeu tal direito.

Outro exemplo de licença pública pode ser encontrado no site Creative Archives [07], da BBC (British Broadcasting Corporation). Naquele repositório a empresa coloca a disposição do público diversos conteúdos por meio de uma licença pública, cujas condições não permitem uso comercial, mas permitem a criação de obras derivadas, desde que estas, se publicadas, o sejam pela mesma licença.

Acerca do modelo de licenças públicas cabe esclarecer que não resolvem a questão da restritividade da nossa lei, haja vista que elas não se aplicam a todas as obras, mas somente àquelas cujos autores ou detentores de direitos patrimoniais tenham o interesse em colocar seus trabalhos à disposição do público por meio de uma destas licenças. Assim, o uso de obras que não estejam nessa condição continua dependendo de autorização prévia e expressa do autor ou detentor dos direito autorais, ainda que, por diversas razões, tal exigência inviabilize utilização justas, como nos exemplos apresentados na parte 3 deste trabalho.

Por outro lado, as licenças públicas representam um passo importante no sentido de ajustar (e repensar) os direitos autorais no contexto atual da tecnologia e da sociedade, apontando – e demonstrando com casos reais, como veremos adiante – que existem formas mais atuais de exploração econômica de obras intelectuais, consentâneas com a evolução tecnológica e com o direito social de acesso à cultura e ao conhecimento.


5. Modelos de Negócio

Como já tratado neste trabalho, os direitos autorais, no caso brasileiro, podem ser divididos em dois: os direitos morais (aqueles que ligam o autor à obra) e os direitos patrimoniais (exploração econômica dos usos da obra). Neste ponto trataremos destes últimos. Os modos de exploração econômica de uma obra estão diretamente relacionados ao estado da técnica de determinados mercados. Deste modo, muitas vezes as mudanças que ocorrem nos modelos de negócio que exploram obras protegidas pelo direito autoral são decorrentes do surgimento de novas possibilidades, até então impraticáveis por razões técnicas ou mercadológicas.

Claro que estas mudanças geram resistências. Aqueles que exploram uma obra sob determinadas condições muitas vezes enxergam na mudança não oportunidades, mas sim ameaças ao cenário para o qual se preparou. A resistência é legítima, haja vista que uma empresa pode levar bastante tempo até que esteja em condições de obter retorno pelo capital e esforço expendido. Mas também é legítimo o movimento para que novos modelos se estabeleçam, aproveitando o desenvolvimento tecnológico e o contexto social, de modo que a obra possa ser mais bem usufruída, como, por exemplo, tendo condições de atingir um público maior.

Como exemplo pode ser citado o caso do videocassete: a Sony lançou a primeira versão comercialmente viável do equipamento, em meados da década de 70, e os estúdios de cinema a processaram, alegando que a empresa estava colocando à disposição do público uma "máquina de infringir direitos autorais". Porém, a Suprema Corte norte-americana decidiu que a tecnologia não deveria ser culpada, pois o videocassete podia ter também usos legítimos, razão pela qual a empresa não poderia ser condenada pelos usos escusos que outros viessem a fazer do equipamento. Como é do conhecimento geral, o videocassete não acabou com o mercado de filmes, nem com o cinema, mas sim criou um novo nicho que passou a ser explorado inclusive – e especialmente – pelas empresas que inicialmente queriam a condenação da tecnologia.

De forma semelhante, podemos entender que as licenças públicas associadas ao momento tecnológico que vivemos criam um cenário favorável ao desenvolvimento de novos modelos de negócios. Um músico, por exemplo, ainda não renomado, pode colocar suas músicas disponíveis a todos em um site na Internet, permitindo o livre uso de suas obras, desde que não tenha finalidade comercial. Abre-se a possibilidade para uma ampla divulgação dos seus trabalhos que, caso sejam do agrado do público, servirão para lhe trazer o prestígio necessário para, por exemplo, receber o convite para realizar shows, encontrando aí uma forma de ser remunerado pelo seu trabalho. Além disso, após já ter alcançado um público maior, uma produtora pode entrar em contato com o músico e apresentar o projeto de criação de um DVD, utilizando estúdios de alta qualidade, e esta seria uma nova forma de o autor ser remunerado pelo seu trabalho, pois o DVD com fins comerciais dependeria de autorização do autor. São inúmeros os casos de músicos e grupos musicais que têm sido contratados por gravadoras após o reconhecimento do público por meio da Internet.

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O mesmo pode ser dito com relação aos livros: um autor de uma obra pode produzi-la eletronicamente, a um baixo custo, e colocá-la a disposição de todos na Internet, por meio de uma licença pública. Se a obra encontrar um público interessado, o autor obterá reconhecimento e oportunidades de auferir ganhos decorrentes da produção intelectual, por exemplo, sendo chamado para participar de encontros literários, pelos quais poderá receber. O escritor poderá ainda colocar a venda a obra em formato tradicional. Neste caso, os leitores interessados na obra têm algumas possibilidades: acessar o livro digital e lê-lo no computador; imprimir o arquivo digital (gastará com papel e tinta, e com a encadernação, se quiser melhorar as condições de preservação do material); ou então poderá comprar a obra em uma livraria – digital ou física – a um custo em geral mais baixo do que se imprimisse em casa, e com uma qualidade superior de impressão e encadernação.

Estes exemplos mostram que estamos em um contexto propício a grandes mudanças nas formas de manifestação dos direitos patrimoniais do autor, cujos alicerces foram elaborados observando a realidade do século passado, não levando em conta que o acesso facilitado às obras pode ser a melhor forma de explorá-las economicamente. É importante destacar, novamente, que os direitos autorais patrimoniais são fundamentais para o estímulo da produção cultural e científica; apenas entendemos que a exploração econômica da obra deve aproveitar condições favoráveis para que os benefícios sejam os mais amplos possíveis para os que tomam parte nessa relação, seja criando, distribuindo ou utilizando.


6. Conclusão

Os direitos autorais são fundamentais para a construção da cultura e do conhecimento. É de grande importância a existência de mecanismos que protejam os trabalhos intelectuais, tanto no que se relaciona com os aspectos morais (como no respeito atemporal ao vínculo do autor à obra), quanto no que tange aos aspectos patrimoniais, protegendo a adequada exploração econômica da obra. Da mesma forma, os intermediários que adquirem direitos de exploração de usos de obras exercem papel relevante tanto para o estímulo da criação quanto na distribuição dos materiais criados.

O que se deve ter em mente é a importância de que haja equilíbrio entre a exploração das obras protegidas pelos direitos autorais e o acesso ao conhecimento e à cultura. Ressalte-se a importância da legislação que trata do tema, que deve colaborar para a obtenção do equilíbrio citado. Nossa atual lei de direitos autorais carece de mudanças que retirem a insegurança e a incerteza em situações que determinados usos justificados das obras protegidas não ferem interesses do autor e são relevantes para a disseminação do conhecimento e para o acesso à cultura.

No contexto atual, de um mundo digital interligado, onde o acesso à informação é facilitado pela tecnologia, os direitos autorais não devem permanecer arraigados a modelos que não aproveitam na plenitude os benefícios oferecidos pela tecnologia. É preciso que as formas de exploração de obras sejam repensadas, tendo em vista o desenvolvimento tecnológico e os interesses dos criadores, dos investidores e da sociedade.


Notas

  1. Expressão utilizada por Thomas Friedman no livro "O Mundo é Plano"
  2. Art. 46. Não constitui ofensa aos direitos autorais: I - a reprodução: a) na imprensa diária ou periódica, de notícia ou de artigo informativo, publicado em diários ou periódicos, com a menção do nome do autor, se assinados, e da publicação de onde foram transcritos; b) em diários ou periódicos, de discursos pronunciados em reuniões públicas de qualquer natureza; c) de retratos, ou de outra forma de representação da imagem, feitos sob encomenda, quando realizada pelo proprietário do objeto encomendado, não havendo a oposição da pessoa neles representada ou de seus herdeiros; d) de obras literárias, artísticas ou científicas, para uso exclusivo de deficientes visuais, sempre que a reprodução, sem fins comerciais, seja feita mediante o sistema Braille ou outro procedimento em qualquer suporte para esses destinatários; II - a reprodução, em um só exemplar de pequenos trechos, para uso privado do copista, desde que feita por este, sem intuito de lucro; III - a citação em livros, jornais, revistas ou qualquer outro meio de comunicação, de passagens de qualquer obra, para fins de estudo, crítica ou polêmica, na medida justificada para o fim a atingir, indicando-se o nome do autor e a origem da obra; IV - o apanhado de lições em estabelecimentos de ensino por aqueles a quem elas se dirigem, vedada sua publicação, integral ou parcial, sem autorização prévia e expressa de quem as ministrou; V - a utilização de obras literárias, artísticas ou científicas, fonogramas e transmissão de rádio e televisão em estabelecimentos comerciais, exclusivamente para demonstração à clientela, desde que esses estabelecimentos comercializem os suportes ou equipamentos que permitam a sua utilização; VI - a representação teatral e a execução musical, quando realizadas no recesso familiar ou, para fins exclusivamente didáticos, nos estabelecimentos de ensino, não havendo em qualquer caso intuito de lucro; VII - a utilização de obras literárias, artísticas ou científicas para produzir prova judiciária ou administrativa; VIII - a reprodução, em quaisquer obras, de pequenos trechos de obras preexistentes, de qualquer natureza, ou de obra integral, quando de artes plásticas, sempre que a reprodução em si não seja o objetivo principal da obra nova e que não prejudique a exploração normal da obra reproduzida nem cause um prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores. Art. 47. São livres as paráfrases e paródias que não forem verdadeiras reproduções da obra originária nem lhe implicarem descrédito. Art. 48. As obras situadas permanentemente em logradouros públicos podem ser representadas livremente, por meio de pinturas, desenhos, fotografias e procedimentos audiovisuais.
  3. Branco Jr, Sérgio Vieira. Em Direitos Autorais na Internet e o Uso de Obras Alheias. Rio de Janeiro. 2006.
  4. "Art. 425 É lícito Às partes estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais fixadas neste Código."
  5. http://www.creativecommons.org
  6. Branco Jr, Sérgio Vieira. Obra citada.
  7. http://www.bbc.co.uk/creativearchive/
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Sobre o autor
Christiano Lacorte

Advogado e analista de informática. Analista legislativo no Centro de Documentação e Informação da Câmara dos Deputados. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Bacharel em Ciências Jurídicas pelo Instituto de Educação Superior de Brasília e bacharel em Ciências da Computação pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp). Especialista em Tecnologias da Informação pela Uneb/ITEI. Cursos de extensão em Direito da Tecnologia da Informação (FGV) e Direitos Autorais (FGV). Autor de artigos sobre Direito da Informática, Direito Administrativo e Direitos Autorais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LACORTE, Christiano. Direito autoral.: Cultura, tecnologia e sociedade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2182, 22 jun. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12997. Acesso em: 25 abr. 2024.

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