Artigo Destaque dos editores

Direito e relações de gênero patriarcais.

Uma análise complexa e necessária

Exibindo página 2 de 2
22/06/2009 às 00:00
Leia nesta página:

3 CONSTATAÇÃO DA PROBLEMÁTICA HODIERNA

Muitas vezes os estudos voltados para a situação da mulher hodiernamente são tachados de inúteis ou de desatualizados. Infelizmente, fenômenos típicos das sociedades atuais como a alienação e a apatia levam o senso comum a acreditar que as relações de gênero já se dão de forma igualitária ou, ao menos, satisfatória. Erroneamente, as pessoas dessas sociedades comparam as suas realidades com outras anteriores ou com sociedades que compartilham de culturas diversas: felicitam-se por não viveram mais na Atenas clássica ou em algum país do Oriente Médio.

Apesar das diferenças inerentes às sociedades distantes no tempo, na localização geográfica e, principalmente, nas elaborações culturais, todas elas possuem traços comuns em relação à dominação-exploração das mulheres, a saber, compartilham da mesma natureza do fenômeno, já que em todas elas o patriarcado apresenta a legitimidade que lhe atribui sua naturalização, bem como do domínio exercido pelos homens sobre as mulheres, apesar de este se dar em diferentes graus.

Outro problema que finda por levar a crenças infundadas na igualdade de gênero é a consideração do empoderamento individual de algumas mulheres como exemplo de mudança social. É preciso perceber que esse empoderamento não é feito em categoria social, pois as mulheres que conseguem se sobressair em uma sociedade hostil ao gênero feminino acabam servindo de álibi para um sistema de discriminação.

A histórica luta em prol de conquistas femininas redundou na elaboração hodierna de normas e políticas públicas ou privadas que não possuem um caráter ostensivamente discriminatório. Infelizmente, muitas vezes essa repulsa a manifestações preconceituosas é hipócrita, recaindo-se nas já citadas formas institucionalizadas e sutis de se afrontar os direitos femininos fazendo com que seja necessário atentar para as medidas que, apesar de serem aparentemente neutras, acabam produzindo impactos nefastos. Na seara jurídica, os autores elaboraram duas teorias que buscam evidenciar as possibilidades de violação ao princípio da igualdade (consagrado internacional e nacionalmente), a saber, a da discriminação de fato e da discriminação indireta.

Essa primeira forma de discriminação consiste na ofensa ao princípio da igualdade perante a lei: a aplicação concreta de uma norma jurídica válida e neutra se dá de forma sistematicamente anti-isonômica, prejudicando um grupo determinado. Já a segunda forma de discriminação, estudada pela teoria do impacto desproporcional, acontece quando uma norma, em sua aplicação concreta, resulta em prejuízo para determinada parcela da população, mesmo que não haja a intenção objetiva do agente que a operacionaliza; dessa forma, a aplicação dessa medida fatalmente irá ofender o princípio da igualdade, pois não há possibilidade de aplicá-la conforme esse princípio constitucional. Teóricas americanas criaram a metodologia chamada de "woman’s question" para identificar quando uma norma jurídica padece de discriminação indireta que prejudica o gênero feminino.

De forma que estudos perpassados pela perspectiva de gênero são atuais na proporção em que ainda há muito para ser feito até que as sociedades hodiernas alcancem relações de gênero igualitárias. Enquanto a cada quinze segundos uma mulher for espancada no Brasil devido à violência de gênero (o que significa quatro mulheres por minuto, 243 por hora, 5.800 por dia, 175 mil por mês e 2,1 milhões por ano – índices que, como nota Maria Amélia de Almeida Teles, são suficientes para declarar estado de guerra [09]); enquanto elas continuarem a ganhar salários menores para desempenhar as mesmas funções que os homens [10]; enquanto 1.500 mulheres continuarem a morrer diariamente por causas relacionadas à gravidez, ao parto e ao puerpério [11]; enquanto persistirem tantas outras formas de violência e discriminação contra o gênero feminino, verdadeiras afrontas aos Direitos Humanos, ainda haverá razões para militar em favor dos direitos das mulheres.

Ainda é preciso apontar a correlação entre a igualdade de gênero e o bem-estar das crianças: quando as mulheres possuem meios para viver de maneira plena e produtiva, as crianças prosperam. A experiência do UNICEF [12] mostra também que quando a mulher é privada de oportunidades igualitárias na sociedade, as crianças sofrem. Assim, os direitos das mulheres e os das crianças se reforçam mutuamente, de forma que lutar pela causa dos direitos das mulheres rende dois dividendos, a saber, a igualdade de gênero e a melhora na condição de vida das crianças.

Por fim, os acontecimentos históricos e sociológicos discutidos nos tópicos anteriores devem colaborar para a compreensão hodierna do Direito, fenômeno jurídico que emana das sociedades e que pode ser utilizado tanto como arma de dominação ideológica para manutenção do status quo quanto para fortalecer a democracia hodierna, na qual o direito de cada indivíduo é encarado não apenas como alteridade, mas como parte de uma universalidade plural. Onde o direito de cada um encontra espaço para existir positivamente e se coadunar com um direito de todos. Ao longo da história da humanidade, o Direito veio sendo utilizado para legitimar uma prática consoante às ideologias dominantes, dentre elas a do patriarcado. Inventou-se a necessidade de normas jurídicas transmutadas exclusivamente em leis homogeneizantes, pretensamente neutras, universalizadoras, abstratas e masculinas. Hoje, devemos questionar os limites da verdade assim construída e lutar contra essas leis que reduzem as mulheres, metade da humanidade, a uma exceção da regra geral que seria o homem.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

REFERÊNCIAS

ALTAVILA, Jayme de. A origem dos direitos dos povos.

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 2004.

CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e Argumentação. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

MORRISON, Wayne. Filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

PIOVESAN, Flavia. Temas de Direitos Humanos. São Paulo: Max Limonad, 1993.

Relatório Anual sobre a situação Mundial da Infância de 2007. Disponívem em: http://www.unicef.org Acesso em 05 de fevereiro de 2009. Acesso em 05 de fevereiro de 2009.

Relatório Anual sobre a situação Mundial da Infância de 2009. Disponível em: http://www.unicef.org Acesso em 20 de Abril de 2009.

SAFFIOTI, Heleiethe. Gênero, patriarcado e violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004.

TELES, Maria Amélia de Almeida. O que são Direitos Humanos das mulheres. São Paulo: Brasiliense, 2007.

TOSCANO, Moema e GOLDENBERG, Miriam. A revolução das mulheres. Rio de Janeiro: Revan, 1992.


Notas

  1. CAMARGO, 2003, p. 250. e MORRISON, 2006, p. 10.
  2. Norberto Bobbio (2004, p. 78) descreve o processo de especificação de direitos como a passagem gradual, que cada vez mais se acentua, para uma ulterior determinação dos sujeitos titulares de direitos e o relaciona à questão feminina ao perceber que foram sendo cada vez mais reconhecidas as diferenças específicas entre a mulher e o homem. É de importância ressaltar que essa passagem do sujeito de direito entendido como ser humano genérico para o ser humano compreendido na sua especificidade e concreticidade está associada aos direitos sociais, à proporção em que os direitos civis, chamados de direitos da primeira geração, valem para um ente abstrato.
  3. Cartilha "O que é gênero" produzida pela ONG SOS Corpo
  4. MORRISON, 2006, p. 573.
  5. PIOVESAN, 1993, p. 225.
  6. SAFFIOTI, 2004, p. 119
  7. É essencial entender o conceito de cultura (e, consequentemente, o de sociedade humana) a partir da complexidade e da plasticidade do aparato biológico dos seres humanos, que possibilita o ajuste de seu comportamento sem passar necessariamente por modificações biológicas em seu organismo, conferindo uma capacidade impressionante de diversificação cultural. Assim, apesar da estrutura fisiológica da espécie humana se diferenciar sexualmente pelo dimorfismo, as diferenças de comportamento existentes entre as pessoas de sexos distintos não podem ser creditadas ao determinismo biológico, mas somente à cultura.
  8. SAFFIOTI, 2004, p. 107
  9. TELES, 2007, p. 64.
  10. Idem.
  11. Disponível em: http://www.unicef.org/sowc09/index.php.
  12. Relatório Anual sobre a situação Mundial da Infância de 2007, formulado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF).
Assuntos relacionados
Sobre a autora
Fabrízia Pessoa Serafim

Bacharelanda do curso de Direito na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Pesquisadora do Programa Lições de Cidadania e integrante do projeto Cine Legis. Monitora da disciplina Filosofia do Direito.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SERAFIM, Fabrízia Pessoa. Direito e relações de gênero patriarcais.: Uma análise complexa e necessária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2182, 22 jun. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13000. Acesso em: 29 mar. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos