I – CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
Durante muito tempo, os eventos bélicos têm representado um grande fator de mudanças no cenário jurídico internacional. O próprio Direito Internacional, primordialmente, tratava basicamente dessa questão, visto que as primeiras relações entre Estados no plano internacional tinham um cunho eminentemente militar. Apenas com o passar do tempo foi que o Direito Internacional passou a abarcar importantes preceitos humanitários.
Para alguns, a questão da intervenção de um país sobre outro, sob o ponto de vista jurídico, teria meramente um aspecto histórico nos dias atuais, já que esse modo de ingerência foi utilizado notadamente durante o século XIX.
Não obstante, na presente comunicação, traz-se novamente à tona essa discussão, pela visível atualidade do tema, já que a soberania estatal e o direito de autodeterminação dos povos se encontram ameaçados, tendo em vista a ingerência de potências mundiais sobre outros países, como é o caso do Iraque, cujo território foi invadido por tropas americanas em 2003.
A intervenção promovida pelos Estados Unidos no território iraquiano teve como principal razão alegada a busca de armas de destruição em massa que o governo iraquiano supostamente matinha em seus arsenais. É oportuno perguntar: pode-se inferir que a garantia da segurança mundial seria de fato a única motivação do governo norte-americano para a promoção da invasão? E, diante do atual quadro normativo internacional, poderia a guerra contra o Iraque ser considerada legal?
A discussão do tema é de fundamental importância, por tratar-se de um assunto de âmbito internacional que, em princípio, diz respeito a todos os indivíduos. Até mesmo porque a todos os cidadãos do mundo interessa o direito à paz, e a todos os Estados do globo importa a preservação de sua soberania, direitos esses que passam a ser ameaçados, atualmente, em virtude de políticas intervencionistas adotadas por determinadas potências do globo.
II - INTERVENÇÃO NO IRAQUE EM 2003
Apesar de toda a oposição pública e institucional, a Guerra no Iraque começou no dia 20 de março de 2003, através da intervenção militar americana intitulada "Operação Liberdade Iraquiana".
O Reino Unido, a Austrália e a Polônia proveram suporte militar à intervenção. O conflito entre os Estados durou só algumas semanas. O exército iraquiano mostrou-se extremamente despreparado. Grande parte da Força Aérea iraquiana, por exemplo, tinha aeronaves inadequadas. Em vista disso, a Guarda Republicana do Iraque praticamente desapareceu, estimando-se que o número de mortos tenha chegado a dez mil.
O controle de tomada da cidade natal de Saddam Hussein, Tikrit, no dia 14 de abril de 2003, marcou efetivamente o término do conflito militar principal. O Presidente Bush anunciou o fim das "principais operações militares" no dia 01 de maio de 2003. Todavia, desde essa data, houve ataques regulares contra as forças de ocupação.
Os conflitos na região do Iraque, portanto, não haviam cessado por inteiro. Passaram a ocorrer novas formas de ataque, como: sabotagem em oleodutos, em redes elétricas e no suprimento de água e outros produtos. Além disso, houve os principais ataques suicidas em Bagdá na sede da ONU, na Embaixada jordaniana e na sede da Cruz Vermelha Internacional (ICRC). Nos primeiros onze dias de fevereiro de 2004, foram mortas mais de 200 pessoas em três bombardeios suicidas. (McGOLDRICK, 2004, p. 17).
II.1 - Motivos Alegados pelas Forças de Ocupação para Intervir
Norte-americanos e britânicos invadiram o Iraque alegando que o país detinha armas de destruição massiva, que representavam uma ameaça à segurança internacional. Outra justificativa para a intervenção seria o fato de que o presidente do país, Saddam Hussein, teria ligações com grupos terroristas. Sabe-se, todavia, que as supostas armas de destruição em massa jamais foram encontradas pelas forças de ocupação. As também alegadas ligações de Saddam Hussein com grupos terroristas islamitas nunca foram comprovadas.
Observe-se que, mesmo não tendo sido reconhecido abertamente pelas forças de ocupação, deve-se considerar a questão energética como um dos fatores que levaram à intervenção. O fato de o Oriente Médio deter a maior parte das reservas mundiais conhecidas de petróleo torna a região um local bastante cobiçado pelas potências capitalistas, principalmente em face de uma iminente crise energética. Os EUA notadamente têm interesse na região por serem atualmente os maiores consumidores de petróleo do mundo, ao lado da China.
O professor Michael Klare, da Amhrest University, nos Estados Unidos, em seu livro "Fonte de Guerra: O Panorama do Conflito Global", assegura que as guerras no Oriente Médio tiveram como pano de fundo a disputa pelo controle do petróleo, citando como exemplo as do Yom Kippur (1973), Irã-Iraque (1980-1988) e Golfo (1991). (SCIARRETTA, 2003).
Logo, havia um forte apoio da parte neoconservadora do pensamento político norte-americano para a ação militar ser levada contra o Iraque. Entre as motivações alegadas pela administração Bush para a intervenção estava o controle de recursos petrolíferos, que eram essenciais para que o petróleo nacional fosse barato e acessível. Além disso, o controle norte-americano no Iraque debilita o poder dos países produtores de petróleo (OPEP) e reduz qualquer necessidade de dependência do petróleo russo.
Entre os motivos para a guerra no Iraque, outros autores alegaram que os EUA teriam ambições hegemônicas no Oriente Médio, a fim de garantir a sua "dominação mundial unilateral através da supremacia militar absoluta" (RAMSBOTHAM, 2003).
Observadas as principais motivações que levaram à intervenção no Iraque, vale analisar adiante quais foram os aspectos que se apresentaram recorrentes para a verificação da legalidade da guerra (a questão da intervenção humanitária, da legítima defesa e das resoluções do Conselho de Segurança).
III - ARGUMENTOS A FAVOR DA LEGALIDADE DA GUERRA DO IRAQUE
Nenhuma lei, em qualquer sistema legal, é aplicada em abstrato. Existe sempre um contexto dependente. Logo, a avaliação de uma possível base legal para ações militares não é fácil, pois os Estados freqüentemente tendem a expressar sua visão política do caso, e não estritamente legal.
Com relação à Guerra do Iraque, em 2003, os EUA, de modo freqüente, apresentam uma variedade de possíveis justificativas legais para a invasão, e deixaram que elas fossem consideradas de forma singular ou combinadas. Geralmente, isso diminui o sentido do tratamento legal em favor de meras considerações de poder e interesse.
Observem-se, pois, a seguir, os argumentos legais utilizados em defesa da guerra no território iraquiano.
III.1 Legalidade da Guerra Baseada na Intervenção Humanitária
O governo de Saddam Hussein no Iraque demonstrou, por diversas vezes, ser tirânico e totalitário. Durante décadas, observou-se o constante desrespeito aos direitos humanos de minorias no país.
De qualquer modo, vale deixar claro que o debate legal sobre a intervenção no Iraque, pelo menos a princípio, não foi conduzido pelos Estados com base na doutrina da intervenção humanitária. Para os EUA, a mudança de regime que seria necessária no Iraque era vista apenas como um objetivo de guerra, e não como a sua principal justificativa.
Todavia, é interessante notar que, a partir do momento em que não foram encontradas armas de destruição em massa no Iraque, a questão da intervenção humanitária passou a ser levantada pelo governo americano, através dos discursos de George W. Bush.
A mudança do antigo regime imposto por Saddam Hussein, para um regime democrático seria uma forma de se legitimar a intervenção no território iraquiano. Ou seja, "retirando Saddam Hussein do poder e depois construindo um sistema político estável e garantindo crescimento econômico, os americanos estariam legitimando a invasão com efeitos retroativos" (RÉGIS, 2006, p. 52).
Durante o balanço sobre a invasão do Iraque, que, em 19 de março de 2009, completou seis anos, Bush afirmou que derrubar o regime de Saddam Hussein foi uma decisão correta, e que valeu a pena apesar do alto custo econômico e de vidas. Em discurso proferido no Pentágono, declarou o presidente norte-americano: "Ninguém pode discutir que esta guerra teve um alto custo em vidas e em dinheiro, mas estes custos eram necessários quando consideramos o custo que teria a vitória de nossos inimigos no Iraque." (O ESTADO DE S. PAULO, 2008).
O jornalista britânico Michael Portillo (2003) chegou a afirmar que os EUA constantemente promovem intervenções em países como a Albânia, Macedônia, Kosovo, Serra Leoa, Afeganistão e, agora, o Iraque. E, de modo crescente, os objetivos para a ingerência incluíram a mudança de regime na região, que, segundo Portillo, sempre teve o apoio da comunidade internacional. No caso específico do Iraque, não houve unanimidade dos Estados em apoio à decisão de alteração do regime.
Logo, verifica-se a fragilidade em se defender a guerra no Iraque com base no argumento da intervenção humanitária. Observe-se então a próxima argumentação utilizada pelo governo americano, que tomou por base a noção de legítima defesa.
III.2 - Legalidade da Guerra Baseada na Legítima Defesa
O argumento de legítima defesa foi estabelecido como premissa no documento Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos da América, divulgado em 20 de setembro de 2002. Com base nesse preceito, o Presidente George Bush, em 2002, chegou a falar em "legítima defesa preventiva", expressão essa que parecia ir além de quaisquer entendimentos de Direito Internacional tidos na época.
O Conselheiro Legal do Departamento de Estado dos EUA chegou a se referir à guerra como sendo "um exemplo de uso preventivo da força, que poderia ser considerado como uma extensão do direito de legítima defesa" (McGOLDRICK, 2004, p. 53).
Essa idéia difundida pelos EUA estendia a noção de legítima defesa prevista no artigo 51 da Carta das Nações Unidas:
Nada na presente Carta prejudicará o direito inerente de legítima defesa individual ou coletiva no caso de ocorrer um ataque armado contra um Membro das Nações Unidas, até que o Conselho de Segurança tenha tomado as medidas necessárias para a manutenção da paz e da segurança internacionais. [...] (CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS, 1945, grifo nosso).
Verifica-se, pois, que a Carta prevê a necessidade da ocorrência de um "ataque armado" contra um membro da ONU, para que seja justificado o uso da legítima defesa.
Não obstante, os EUA defenderam a idéia de não ser necessário a existência de um ataque armado para que se justifique a legítima defesa. Esta, segundo o governo americano, pode ser aplicada também nos casos em que algum país adote políticas armamentistas que possam colocar em risco a paz e a segurança internacional.
John Yoo, professor norte-americano de Direito e conselheiro do Departamento de Justiça dos EUA no período 2001-2003, chegou a afirmar que "o direito de legítima defesa reconhecido no artigo 51 da Carta das Nações Unidas autorizava o uso da força no Iraque", pois "os requisitos tradicionais da legítima defesa deveriam ser reinterpretados no contexto moderno das armas de destruição em massa e do terrorismo internacional." (YOO apud McGOLDRICK, 2004, p. 70).
Logo, o fato de o Iraque financiar, direta ou indiretamente, o terrorismo e de produzir armas de destruição maciça já seria motivo suficientemente "iminente" para justificar o uso da força. Seguindo essa linha de raciocínio, John Yoo conclui que o uso da força promovido no Iraque teria sido proporcional à ameaça que esse país representava, já que as ações militares americanas estariam limitadas apenas à eliminação das armas de destruição em massa e para a destituição daquele que seria a fonte das ações hostis do governo iraquiano: Saddam Hussein.
William Taft IV e Todd Buchwald argumentaram que:
No fim, cada uso de força precisa encontrar legitimidade nos fatos e circunstâncias que o Estado acredita serem necessários. Cada caso não deveria ser julgado com base em conceitos abstratos, mas sim, com base nos eventos particulares que lhe deram causa. Embora as nações não devam usar a defesa preventiva como pretexto para agressão, ser a favor ou contra a defesa preventiva, em termos abstratos, é um erro. O uso da força preventivamente é, algumas vezes, legítimo, e outras, não.
A operação Liberdade Iraquiana foi criticada como ilegal, por ser preventiva. Essa crítica é infundada. A Operação Liberdade Iraquiana foi e é legítima. (TAFT IV; BUCHWALD, 2003, p. 557, tradução nossa). [1]
Apesar de a questão da legítima defesa ter sido utilizada como argumento por diversos analistas e pela própria Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos da América, o jurista Sean Murphy (2003, p. 419), em seu artigo intitulado Use of Military Force to Disarm Iraq (Uso de Força Militar para Desarmar o Iraque), publicado na American Journal of International Law (Revista Americana de Direito Internacional), chegou a observar que a teoria legal articulada por Austrália, Espanha, Reino Unido e pelos próprios Estados Unidos não teria sido baseada primordialmente na noção de "legítima defesa", mas sim nas resoluções do Conselho de Segurança, como se verá adiante.
III.3 Legalidade da Guerra Baseada nas Resoluções do Conselho de Segurança
-Resoluções 660, 678 e 687
A Resolução 660, adotada em 02 de agosto de 1990 pelo Conselho de Segurança, demandava que o Iraque retirasse suas tropas de ocupação no Kuwait.
A Resolução 678, 29 de novembro de 1990, autorizou a todos os Estados- membros cooperarem com o governo do Kuwait, utilizando de "todos os meios necessários" para implementar a Resolução 660 e as resoluções subseqüentes, a fim de restaurar a paz e a segurança na região.
Já a Resolução 687, de 03 de abril de 1991, decidiu que o Iraque deveria destruir suas armas nucleares, químicas e biológicas, devendo ainda limitar em 150 km o alcance de seus mísseis balísticos. Para verificar o cumprimento desse programa de desarmamento, foi instalado um regime de inspeção, através da denominada Comissão Especial das Nações Unidas, a UNSCOM (que em 1999 foi substituída por uma nova comissão, denominada Comissão de Controle, Verificação e Inspeção das Nações Unidas - UNMOVIC)
-Resolução 1441
Pode-se dizer que esta foi a principal Resolução elaborada pelo Conselho de Segurança da ONU em 2002, sobre a qual se gerou a discussão acerca da legalidade ou não da intervenção no território iraquiano, em 2003.
Entre outros pontos, a Resolução 1441 determinou que o Iraque "continua incorrendo em violações materiais de suas obrigações segundo o disposto em resoluções relevantes, incluindo a resolução 687 (1991), especialmente ao não cooperar com os inspetores das Nações Unidas e da IAEA, e não realizar as ações exigidas e dispostas nos parágrafos 8 a 13 da Resolução 687 (1991)". Foi então oferecido ao Iraque "uma última oportunidade de cumprir com suas obrigações de desarmamento segundo as resoluções relevantes do Conselho", sendo decidido "instaurar um regime reforçado de inspeção, com o objetivo de realizar total e comprovadamente o processo de desarmamento previsto pela resolução 687 (1991) e resoluções subseqüentes do Conselho". (RESOLUÇÃO 1441, 2002).
Logo, o governo iraquiano deveria permitir que os inspetores da UNMOVIC e da IAEA pudessem desenvolver seus trabalhos de inspeção de armas no país, com o direito de destruir, inutilizar e reter quaisquer armamentos que fossem encontrados e quaisquer instalações e programas que fizessem parte desse processo. Para tanto, a Resolução ainda frisou que o Iraque não deveria "realizar nem ameaçar realizar atos hostis contra qualquer representante ou funcionário das Nações Unidas ou da IAEA ou de qualquer Estado-Membro que adote medidas para cumprir qualquer resolução do Conselho".
Por último, vale destacar a determinação final presente na Resolução 1441, que gerou muita controvérsia: "Recorda, neste contexto, que o Conselho alertou repetidamente o Iraque que, caso continue infringindo suas obrigações, enfrentará conseqüências graves." (RESOLUÇÃO 1441, 2002, grifo nosso).
-A combinação das resoluções do Conselho de Segurança
O principal argumento em prol da legalidade da Guerra do Iraque foi o de que a combinação das resoluções do Conselho de Segurança, relacionadas ao Iraque, teriam conferido uma autorização legal para o uso da força.
Alguns comentaristas acreditam que a Resolução 1441 permitiu o uso da força a partir do momento em que reafirmou a Resolução 678, a qual havia autorizado os Estados-Membros a usarem todos os meios necessários para forçar a retirada das tropas iraquianas do Kuwait.
É nesse ponto em particular que os EUA e a Inglaterra se basearam para justificar suas ações, já que a Resolução 678 ainda estaria vigente e o Iraque até então não teria cumprido com suas determinações.
Ademais, a Resolução 1441 recorda o descumprimento por parte do Iraque à Resolução 687 (1991), "especialmente ao não cooperar com os inspetores das Nações Unidas e a IAEA e não realizar as ações exigidas e dispostas nos parágrafos 8 a 13 da resolução".
Nesse sentido, um memorando elaborado pelo Foreign and Commonwealth Office (FCO) – ministério do Reino Unido responsável pela promoção dos interesses do país no Exterior – chegou a afirmar que a Resolução 687:
Não rescindiu a autorização do uso da força previsto na Resolução 678. Ao contrário, foi confirmado que a resolução 678 continuava em vigor. A autorização foi suspensa enquanto o Iraque cumpria com as condições do cessar-fogo. Mas a autorização poderia ser restabelecida caso o Conselho determinasse que o Iraque continuava agindo em violação material dos requisitos da Resolução 678. (FOREIGN, 2003, tradução e grifo nossos).[2]
Ainda no memorando citado, afirma-se que o Iraque continuava em "violação material" das obrigações estabelecidas nas resoluções da ONU. Tal afirmativa servirá como fundamento-chave dos defensores da legalidade da guerra.
Durante as discussões no Conselho de Segurança sobre a situação do Iraque, em março de 2003, os Estados membros participantes não discordaram sobre o fato de o Iraque ainda não ter cumprido com as suas obrigações de desarmamento. Em face disso, pôde-se concluir que o país continuava em "violação material" das suas obrigações.
John D. Negroponte, embaixador norte-americano na Organização das Nações Unidas, em carta datada de 20 mar. 2003 encaminhada ao Embaixador da Guiné, Mamady Traore, então Presidente do Conselho de Segurança da ONU, assim colocou a posição dos Estados Unidos:
As forças de coalizão começaram as operações militares no Iraque. [...]
As ações que estão sendo tomadas são autorizadas nos termos das existentes resoluções do Conselho, incluindo a Resolução 678 (1990) e a Resolução 687 (1991). A Resolução 687 impôs uma série de obrigações ao Iraque, incluindo, principalmente, as obrigações de desarmamento extensivo, que foram as condições do cessar-fogo estabelecidas por ela. Há muito se tem reconhecido e entendido que uma violação material dessas obrigações remove a base do cessar-fogo e restabelece a autoridade para usar a força nos termos da Resolução 678. Essa tem sido a base para o uso da força de coalizão no passado, e tem sido aceita pelo Conselho, como evidenciado, por exemplo, pelo pronunciamento público do Secretário-Geral em janeiro de 1993; depois da violação material da Resolução 687 pelo Iraque, as forças de coalizão receberam um mandato do Conselho para usar a força em acordo com a Resolução 678. (NEGROPONTE, 2003, tradução nossa).[3]
O Procurador-Geral do Reino Unido, Lord Goldsmith, chegou a afirmar que realmente existiu uma autorização legal, com base nas resoluções do Conselho de Segurança, para se utilizar da força na invasão ao território iraquiano, em 2003:
Autoridade para o uso da força contra o Iraque existe a partir do efeito combinado das Resoluções 678, 687 e 1441. Todas essas resoluções foram adotadas com base no Capítulo VII da Carta das Nações Unidas, o qual permite o uso da força para o expresso propósito de restaurar a paz e a segurança internacionais. (GOLDSMITH, 2003, tradução nossa). [4]
Conforme essa linha de raciocínio, a Resolução 1441 (ao se referir à Resolução 678 em seu preâmbulo) teria colocado em evidência que a autorização ao uso da força ainda existe.
Ainda nesse sentido, pode-se citar a opinião de Greg Hunt, membro do Centre for Comparative Constitutional Law, da Universidade de Melbourne, Austrália, e professor de Direito Internacional na Universidade de Yale, Estados Unidos:
O conflito militar no Iraque terá total legitimidade do Direito Internacional. Faço essa afirmação como alguém que é multilateralista por natureza. [...] Há três requisitos para que os EUA, o Reino Unido e a Espanha liderem uma coalizão internacional para impor as resoluções do Conselho [de Segurança] ao Iraque. Primeiro, deve existir um claro e inequívoco dever do Iraque em cumprir com as resoluções do Conselho. Segundo, deve haver uma ruptura clara e inequívoca desse dever. Terceiro, deve haver uma autoridade legítima e permanente para impor essas ações. Todos [os requisitos] estão presentes. (HUNT, 2003, tradução e interpolações nossas).[5]
Observa-se, em suma, que a principal linha de raciocínio seguida pelos defensores da legalidade da Guerra do Iraque se concentra basicamente em afirmar que a Resolução 1441 permitiu o uso da força, a partir do momento em que teria reavivado as antigas resoluções da ONU, que tratavam da Guerra do Golfo, iniciada em 1990.
IV - ARGUMENTOS CONTRA A LEGALIDADE DA GUERRA DO IRAQUE
A par dos defensores da legalidade da intervenção, sem dúvidas o número de opositores à guerra é bem maior. Não apenas sob o ponto de vista moral, mas também sob a ótica jurídica, em diversos países foi defendido que a ingerência promovida no Iraque não teria sido legítima.
Os argumentos legais contra a ingerência no Iraque se voltam basicamente em contraditar os argumentos a favor da guerra.
IV.1 Impossibilidade de Legalizar a Guerra com Base na Intervenção Humanitária
Conforme visto anteriormente, a justificativa da guerra no Iraque não foi conduzida primordialmente com base na intervenção humanitária.
Segundo o anglo-australiano Geoffrey Robertson, existem algumas pré-condições para que uma intervenção humanitária, mesmo sem autorização do Conselho de Segurança da ONU, seja viável, quais sejam (ROBERTSON apud RÉGIS, 2006, p. 49-50):
1.Deve existir um Estado cujo governo (ou, na falta de um, grupos armados como milícias ou grupos terroristas organizados) esteja praticando crimes contra a humanidade.
2.O Conselho de Segurança, após identificar o problema e considerá-lo grave ameaça à paz mundial, deve aprovar resolução condenando as ações criminosas, convocando ao mesmo tempo a Comunidade Internacional para resolver a situação. […]
3.Deve ser observado que, não obstante as sanções, as tentativas de resolução pacífica tenham falhado.
4.A intervenção deve objetivar fundamentalmente prevenir ou parar o cometimento de crimes contra a humanidade e/ou punir seus perpetradores.
5.Se as vítimas forem um grupo étnico majoritário em seu próprio território, um dos objetivos será o de assisti-lo no seu direito de autodeterminação […].
6.A intervenção humanitária armada em defesa dos direitos humanos deve ser executada, se possível, com autorização do Conselho de Segurança, ou, na sua falta, com a concordância da maioria de seus membros, ou por alguma organização regional, por exemplo, a OTAN. […]
7.Os interventores não devem obter qualquer lucro como, por exemplo, a aquisição de territórios ou recursos, em decorrência da intervenção.
8.Os métodos e táticas de guerra empregados durante a intervenção devem respeitar rigorosamente o Direito Internacional, especialmente as Convenções de Genebra de 1949, além de respeitar o princípio da proporcionalidade da resposta; finalmente, não deverão afastar-se dos objetivos humanitários que objetivaram a intervenção.
9.A intervenção deve ser viável, ou seja, a intervenção somente deve ser feita quando suas chances de sucesso forem grandes e quando as perspectivas da intervenção indicarem que os seus benefícios superarão, significativamente, os seus custos.
10. Os interventores devem estar preparados para reconstruir o Estado invadido. […]
11.Os interventores devem aceitar a possibilidade de serem julgados perante cortes internacionais pelos excessos porventura cometidos durante as operações.
12.Os líderes do regime responsável pelas violações dos direitos humanos devem ser levados a julgamento […].
Diante dessa série de pré-requisitos apontada por Geoffrey Robertson, será que a invasão no Iraque, em 2003, pode ser considerada uma intervenção humanitária? Analisar-se-ão, a seguir, se as principais pré-condições elencadas foram observadas no caso da guerra promovida no território iraquiano.
Conforme assinalado inicialmente por Robertson, faz-se necessária a existência da prática de crimes contra a humanidade para que se possa verificar a existência de uma intervenção humanitária. Porém, vale dizer que, na época da invasão ao território iraquiano, em 2003, não se verificavam quaisquer atos do governo que indicassem a promoção de atrocidades contra minorias da região.
Observe-se ainda que, antes de os EUA promoverem a intervenção no Iraque, em 2003, em nenhum momento o Conselho de Segurança das Nações Unidas tinha aprovado uma resolução condenando o governo iraquiano pelo cometimento de ações criminosas contra minorias.
Ademais, segundo Robertson, a intervenção humanitária não pode visar à obtenção de lucro. Não obstante, conforme já explicitado, os EUA possuem interesses econômicos sobre a região do Iraque, em virtude dos recursos petrolíferos.
Como observado, outro requisito para a configuração de uma intervenção humanitária, está no respeito às regras de Direito Internacional, em especial às Convenções de Genebra de 1949. Contudo, no caso da invasão do Iraque, foi possível verificar a violação a diversos dispositivos das Convenções, principalmente no que concerne ao tratamento dos prisioneiros de guerra.
Com base nessas considerações, percebe-se que há dificuldade em configurar a guerra no Iraque como uma intervenção humanitária, já que diversos dos pré-requisitos não são encontrados no conflito iraquiano.
IV.2 Impossibilidade de Legalizar a Guerra com Base na Legítima Defesa
Conforme analisado alhures, o argumento de legítima defesa foi usado pela Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos da América como justificativa para a invasão do Iraque. Todavia, os críticos da Guerra do Iraque argumentaram que as ações dos EUA não poderiam ser justificadas com base na noção de legítima defesa contida no artigo 51 da Carta das Nações Unidas.
Nesse sentido, Richard Falk, Professor Emérito de Direito Internacional e Prática na Universidade de Princeton (EUA), assinala:
Os fatos não deram suporte ao caso de preempção, pois não existiu nem iminência nem necessidade. Como resultado, a Guerra no Iraque pareceu, no máximo, qualificar-se como um exemplo de guerra preventiva, mas existem fortes razões legais, morais e políticas para negar tanto a legalidade quanto a legitimidade de tal uso da força. Não é aceitável exceção ao sistema da Carta, e nenhum esforço foi feito pelo governo dos EUA para reivindicar o direito de guerra preventiva, embora o fraseado altamente abstrato e vago da doutrina de ação preemptiva [de antecipação] na Estratégia de Segurança Nacional dos EUA fosse mais precisamente formulada como "uma doutrina de guerra preventiva". (FALK, 2003, grifo do autor, interpolação e tradução nossas).[6]
Miriam Sapiro (2003, p.600) chama a atenção para o fato de que a adoção de uma doutrina de guerra preventiva geraria grandes riscos à comunidade internacional. Isso porque faria com que aumentasse significativamente o número de conflitos entre Estados. Ironicamente, até o próprio Iraque poderia ter invocado a idéia de legítima defesa preventiva para justificar um ataque contra os Estados Unidos.
Richard Gardner, Professor de Direito e Organização Internacional na Universidade de Columbia (EUA), chegou a afirmar que "a Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos da América vai muito longe e não representa boa lei nem boa política", e que os Estados Unidos "podem proteger-se nesta nova era de terrorismo suicida e de proliferação nuclear sem recorrer à Doutrina Bush." (GARDNER, 2003 apud McGOLDRICK, 2004, p. 71, tradução nossa).[7]
Observa-se, pois, que a idéia de legítima defesa preventiva seria inconsistente diante da ordem internacional pós-1945 (com a adoção da Carta das Nações Unidas):
O que essa doutrina faz é destruir o objetivo de um mundo no qual os Estados se consideram sujeitos à lei, particularmente na questão de padrões para o uso de violência. Esse conceito seria substituído pela noção de que não há nenhuma lei senão a discrição do Presidente dos Estados Unidos. (AL GORE apud CERF; SIFRY, 2003, p. 325, tradução nossa). [8]
Ao se constatar verdadeiramente a existência de novas ameaças à paz e à segurança internacionais, o que se deve fazer, com base na Carta das Nações Unidas, é recorrer à apreciação do Conselho de Segurança, em vez de dar azo a ações unilaterais de uso da força por parte dos Estados.
Com base nessas considerações, a doutrina da "legítima defesa preventiva", alegada pelos EUA para invadir o Iraque, não teria respaldo legal internacional.
IV.3 Impossibilidade de Legalizar a Guerra com Base nas Resoluções do Conselho de Segurança
Os Estados Unidos procuraram insistentemente legitimar sua guerra através de uma Resolução que fosse aprovada pelo Conselho de Segurança da ONU.
Após um longo debate, e sob a forte influência da opinião pública internacional, além da ameaça de veto por parte da França e da Rússia, acabou não se autorizando o uso da força, de forma imediata:
Evitou-se, de um lado, a autorização para um ataque imediato, mediante a exigência de dois tempos, o primeiro para as inspeções, o segundo para as eventuais sanções. Por outro lado, definiu-se um regime rigoroso de verificação, que prevê "conseqüências sérias" em decorrência de uma eventual má-fé na implementação. Assim, os Estados Unidos não obtiveram uma solução autorizando o uso automático da força militar na hipótese do Iraque não cooperar com os inspetores de armas da ONU. (RAMINA, 2003).
A intenção da criação da Resolução 1441, de 2002, não foi, portanto, a de autorizar o uso da força contra o Iraque, mas sim, a de conceder uma última oportunidade para que esse país respeitasse o disposto nas antigas resoluções do Conselho de Segurança. Somente se o governo iraquiano continuasse não cooperando com a ONU é que o Conselho, sozinho, iria determinar a imposição de "sérias conseqüências", que, em último caso, poderiam incluir o recurso à força.
A necessidade de uma nova resolução que autorizasse expressamente o uso da força era tão clara que os próprios países a favor da guerra (notadamente, os Estados Unidos, o Reino Unido e a Espanha) apresentaram, em 24 de fevereiro de 2003, um esboço de uma resolução que afirmava que o Iraque teria falhado em cumprir com a sua "oportunidade final" concedida pelo Conselho de Segurança, por meio da Resolução 1441.
Cumpre lembrar, no entanto, que os Estados-Membros do Conselho de Segurança se demonstraram, na época, contra a adoção de qualquer nova resolução, já que esta poderia ser erroneamente interpretada como tendo autorizado o uso da força contra o Iraque. Nesse sentido, a França deixou claro que não permitiria a adoção de qualquer resolução que autorizasse o automático uso da força.
Segundo Vaughan Lowe, a falta de apoio a uma nova resolução foi um fato legalmente significativo, visto que "o Reino Unido estava completamente certo em fazer pressão por uma segunda resolução do Conselho de Segurança que, de forma explícita, autorizasse o uso da força contra o Iraque; e ao falhar em consegui-la, a invasão deixou de ter justificativa legal [...]". (LOWE, 2003, p. 865).
O professor Colin Warbrick, da Universidade de Durham, expressa a mesma opinião traçada por Vaughan Lowe, ao afirmar que, "sem a aprovação de uma segunda resolução, seria ilegal por parte da Grã-Bretanha o uso de força contra o Iraque" (WARBRICK apud BBC BRASIL, 2003). Por conseguinte, a ingerência armada no território iraquiano, sem a aprovação de uma nova resolução que desse amparo legal à intervenção, acabaria gerando um sério precedente para a derrubada de outros regimes que vierem a ser considerados indesejáveis.
Salienta ainda o Professor Warbrick:
A autorização para uso de força a ser dada pelo Conselho de Segurança tem que ser explícita. A proposta da nova resolução não explicita uma autorização para ação militar, da mesma forma que não existe autorização explícita na Resolução 1441. (WARBRICK apud BBC BRASIL, 2003).
O próprio Secretário-Geral das Nações Unidas na época, o ganês Kofi Annan, em conferência realizada em 10 de março de 2003, chegou a afirmar que, "se os EUA e outros pretendem agir fora do Conselho e adotar uma ação militar, isso não estaria em conformidade com a Carta das Nações Unidas."[9] (ANNAN, 2003, tradução nossa).
Ao observar que uma nova resolução, autorizando expressamente o uso da força, não atrairia o apoio da maioria dos membros do Conselho de Segurança, os Estado Unidos, em 20 de março de 2003, decidem invadir o Iraque, mesmo sem o respaldo do Conselho.
Diante da ausência de uma autorização expressa para a intervenção, alguns estudiosos, conforme verificado alhures, defenderam a legalidade da guerra com base na afirmativa de que a Resolução 1441, de 2002, teria reavivado todo o conteúdo disposto nas antigas resoluções da ONU que dispunham sobre o caso da invasão do Iraque no território do Kuwait, em 1990.
Todavia, durante os debates no Conselho de Segurança, ficou claro entre os seus membros que não existia "automaticidade" na Resolução 1441. Sendo assim, a referência à Resolução 678, contida no preâmbulo da Resolução 1441, não restabelecia a autorização dos Estados-Membros para o uso da força contra o território iraquiano. "Foi apenas uma advertência ao Iraque de que a decisão sobre o restabelecimento de tal autorização poderia ser tomada pelo Conselho de Segurança." (McGOLDRICK, 2004, p. 80, tradução nossa).[10]
Nesse sentido, Vaughan Lowe aduz que:
É simplesmente inaceitável que uma etapa tão séria e importante como um maciço ataque militar contra um Estado devesse ser lançado na base de um argumento legal dependente de dúbias inferências retiradas dos silêncios da Resolução 1441 e dos abafados ecos de resoluções anteriores, não apoiadas por nenhuma autorização contemporânea de uso da força. Nenhuma corte doméstica nos Estados Unidos ou no Reino Unido toleraria uma ação governamental baseada em tais frágeis argumentos. (LOWE, 2003, p. 866, tradução nossa).[11]
Logo, em conformidade com tais assertivas, a autorização prevista na Resolução 678 para o "uso da força" voltar-se-ia única e exclusivamente para resolver os conflitos da Primeira Guerra do Golfo. A Resolução 1441, de 2002, não tinha o escopo de restabelecer essa autorização, tendo em vista que as motivações para intervenção no Iraque, em 2003, eram totalmente novas.
Em reportagem produzida pela BBC Brasil, publicada em 17 de março de 2003, afirmou-se que um grupo, formado por 16 acadêmicos estudiosos da legislação internacional, analisou a validade de um ataque ao Iraque, baseado na Resolução 1441 da ONU, e concluiu que o uso de força só seria justificável para se defender de um possível ataque armado ou pela aprovação de uma nova resolução que autorizasse a ação. Contudo, sabe-se que, em momento algum, existiu um ataque armado do Iraque contra os EUA, e uma nova resolução autorizando expressamente o uso da força jamais foi aprovada.
De modo semelhante, em uma carta para o jornal The Australian, 44 advogados internacionais declararam que a guerra no Iraque é ilegal (ALBRECHTSEN, 2003).
Dominic McGoldrick, Professor de Direito Público Internacional na Liverpool Law School (Inglaterra), chega à mesma conclusão:
A menos que tenhamos um sistema legal internacional em que todos os Estados finalmente, e não apenas inicialmente, exerçam um direito de auto-interpretação, então somos forçados a concluir que a melhor visão do Direito Internacional em 2003 é que os EUA e o Reino Unido agiram ilegalmente. (McGOLDRICK, 2004, p. 85, tradução nossa).[12]
Cumpre lembrar que o próprio Conselho de Segurança da ONU é o responsável pela interpretação de suas resoluções. Portanto, os Estados Unidos e o Reino Unido não podem persuadir outros Estados a interpretarem as resoluções do Conselho de Segurança do seu ponto de vista. Na verdade, a maior parte dos membros do Conselho rejeitou a interpretação de tais países.
Feitas essas considerações, percebe-se que a decisão adotada pelos EUA e pelo Reino Unido para empreender uma ação militar no Iraque, sem autorização do próprio Conselho de Segurança, contribui seriamente para a ruína de importantes regras de Direito Internacional.