Não há nada mais desolador para um Estado que se diz "de direito" do que o desprestígio das ordens judiciais, máxime quando o descumprimento advém de célula da administração do próprio Estado.
A requisição de pequeno valor apresenta-se como sistemática engendrada pelo constituinte em ordem a permitir a pronta solução de valores de menor expressão econômica, independentemente da sistemática comum – e sempre problemática – do precatório judicial. Tudo então se resolveria fácil e rapidamente: independentemente de maiores formalidades, o juiz da execução requisitaria o pagamento diretamente à Fazenda Pública, que verteria o pagamento de imediato, sem mais.
Ocorre que não raramente o poder público simplesmente desconsidera tais requisições. Quando não o faz frontalmente, tangencia o descumprimento por invocação de matérias já preclusas, para além do bordo das imprecisões materiais.
Nada obstante, ressuma óbvio não ser lícito a Fazenda Pública pretender transformar essas requisições judiciais de pequeno valor em simples lembretes, convites ou exortações ao pagamento. Requisição é requisição: cabe simplesmente ao poder público cumpri-la, tão somente isso. E se cumprimento não há, o Judiciário haverá de estar municiado de apetrechos jurídicos e fáticos dos quais lançará mão para a garantia do pleno respeito às suas decisões. Do contrário, comprometida estará a tão cara efetividade que se espera de seus pronunciamentos, ferindo de morte o direito fundamental à tutela executiva, corolário do devido processo legal.
E na quadra desses "apetrechos" dos quais o Judiciário poderá lançar mão está, parece claro, a possibilidade de promover o magistrado ao bloqueio dos ativos financeiros da executada inadimplente.
Nem se argumente que, mercê da indisponibilidade e impenhorabilidade dos bens fazendários, não poderia a Fazenda Pública sujeitar-se a tal instrumento de efetivação das ordens judiciais.
Foi em atenção a essa indisponibilidade dos bens fazendários que se engendrou toda a sistemática de pagamento dos débitos judiciais por precatórios (CF, art. 100, par.1º). O regime dos precatórios foi forjado para dupla garantia: para a Administração, para a adequada previsão orçamentária do gasto; mas igualmente para o cidadão, que não verá pagamentos realizados por "afinidade", senão por ordem cronológica.
Ocorre que em relação às execuções contra a Fazenda Pública que a própria unidade da federação tem por de "pequeno valor", a sistemática constitucional é outra: é bastante simples requisição judicial, direta, à entidade devedora, para que a Fazenda, sem mais, providencie o pagamento (CF, art. 100, par. 3º). A diminuta expressão econômica dispensa anterior e específica previsão orçamentária. E não há risco de "preterição" de credores simplesmente pela razão de que não há própria ordem de pagamento: todas as requisições devem ser pagas de imediato.
Porém, se essa requisição é desatendida, não pode o credor simplesmente esperar a boa vontade da Fazenda Pública. Nesse caso, o bloqueio de ativos financeiros será medida legítima à garantia da plena efetividade das ordens judiciais. Do contrário, e o argumento é quase intuitivo, o direito constitucional de acesso ao Judiciário, previsto no art. 5º, inc. XXXV, da CF, e a exigência de efetivação das medidas judiciais em "tempo razoável" (CF, art. 5º, LXXVIII, e art. 5º do Pacto de San Jose da Costa Rica), não possuiriam cogência prática porque desacompanhados do instrumental coercitivo indispensável à sua implementação (nesse sentido, sobre a pertinência de sequestros de verbas públicas para a satisfação de valores vencidos após a decisão judicial que declarou o direito a sua percepção, confira-se precioso estudo de Eduardo Gusmão Alves de Brito Neto, in Execução no processo civil – novidades e tendências, coord. Sérgio Shimura, São Paulo, Método, p. 97).
Sobreleva observar que há bons indícios em ordem a sugerir que semelhante orientação venha a ser abonada pelo Pretório Excelso.
Por primeiro, vale a lembrança ao julgamento da Reclamação nº 2.953-1, do Rio Grande do Norte, e que se ocupava de suposta afronta à decisão da Corte Suprema inibitória de bloqueios financeiros voltados à satisfação de créditos que se inscreviam em precatórios judiciais não honrados oportunamente. A Reclamação foi julgada improcedente por acórdão relatado pelo eminente Ministro Carlos Britto, e assim ementado:
"CONSTITUCIONAL. RECLAMAÇÃO. BLOQUEIO DE VERBAS PÚBLICAS PARA PAGAMENTO DE REQUISIÇÕES DE PEQUENO VALOR. ALEGADA VIOLAÇÃO AO DECIDIDO NAS ADIS 3057-MC E 1662.
Improcedente a alegação de desrespeito à decisão tomada na ADI 3057-MC, uma vez que o ato reclamado foi exarado em data anterior à concessão, com eficácia ex nunc, da medida liminar na mencionada ação direta. Ainda que assim não fosse, as requisições de pequeno valor insertas nos autos dão conta de que, além de apoiar-se no Provimento TRT/CR nº 01/2003, o impugnado bloqueio também se lastreou no art. 87 do ADCT. Logo, mesmo que se pudesse concluir pela ofensa à decisão da ADI 3.957-MC, a ordem de bloqueio permaneceria intacta, já que apoiada em fundamento autônomo.
‘Por outro lado, no julgamento da ADI 1662, o Supremo Tribunal Federal tratou, especificamente, dos precatórios e dos pedidos de sequestros que têm o seu regime jurídico previsto no par. 2º do art. 100 da Constituição Federal E o fato é que esse dispositivo não trata das obrigações definidas em lei como de pequeno valor, porquanto, nesses casos, o pagamento das dívidas do Poder Público é feito à margem do precatório (par. 3º do art. 100 da CF, c/c art. 78 do ADCT). Reclamação improcedente e Agravo Regimental prejudicado".
Outro indicativo em ordem a supor que Supremo Tribunal Federal prestigiará a apreensão de ativos da Fazenda Pública para o pagamento de requisições de obrigação de pequeno valor insatisfeitas infere-se da orientação que se plasmou na interpretação conforme à Constituição que se atribui ao art. 1º-D, da Lei 9.494/97, introduzido pela Medida Provisória nº 2.180-35/01.
Segundo a literalidade do reportado dispositivo, nas execuções contra a Fazenda Pública não seriam devidos honorários advocatícios, salvo se embargadas. Nada obstante, no julgamento do RE 420816, relatado pelo Ministro Sepúlveda Pertence, valendo-se da técnica da interpretação conforme a Constituição, entendeu aplicável a disposição somente às hipóteses em que a Fazenda Pública está submetida a regime de precatório, o que impede o cumprimento espontâneo da prestação devida por força de sentença. Expressamente, excluiu-se do âmbito de incidência da disposição o caso das execuções de pequeno valor de que trata o art. 100, par. 3º, da Constituição, não sujeitas a precatório, em relação às quais a Fazenda Pública fica sujeita a honorários, nos termos do art. 20, par.4º, do CPC.
Disso dimana a franca convicção em ordem a supor que, se as obrigações consideradas de pequeno valor podem e devem ser cumpridas espontaneamente pela Fazenda, independentemente da própria requisição judicial, parece legítimo entender que em relação a esses valores não há aquele matiz de indisponibilidade que impõe a satisfação do crédito por meio exorbitante ao direito comum.
São por esses fundamentos, basicamente, que estou convencido da possibilidade de o magistrado lançar mão da apreensão de ativos financeiros da Fazenda Pública para o pagamento das requisições de obrigação de pequeno valor não solvidas. Poderá fazê-lo, inclusive, pelo manejo do sistema eletrônico de apreensão (BACENJUD).
É o que me parece.