4 Requisitos para a configuração da Responsabilidade Civil do Estado
É de clareza solar o fato de que a responsabilidade civil do Estado é objetiva, já há um entendimento quase unânime a respeito disso. No entanto, não se pode admitir que a responsabilidade civil do Poder Público ocorra por qualquer fato ou ato, comissivo ou omissivo no qual esteja envolvido, direta ou indiretamente, afinal de contas, a teoria objetiva adotada pelo nosso ordenamento é a do risco administrativo e não a do risco integral. Deve-se verificar a presença ou não dos requisitos para a configuração dessa responsabilidade civil em cada caso concreto.
Para a caracterização do direito à indenização, segundo a doutrina da responsabilidade civil objetiva do Estado, devem concorrer as seguintes condições:
a) A efetividade do dano: a vítima deve ter sofrido, concretamente, um prejuízo de natureza material ou moral.
b) O nexo causal: deve haver um nexo de causalidade, isto é, uma relação de causa e efeito entre a conduta do agente e o dano que se pretende reparar. Não havendo o nexo causal, ainda que haja prejuízo sofrido pelo credor não cabe cogitação de indenização.
c) Oficialidade da atividade causal e lesiva imputável ao agente do Poder Público: A responsabilidade civil objetiva do Estado, que é distinta da responsabilidade legal ou contratual, decorre da conduta comissiva ou omissiva de seu agente no desempenho de suas atribuições ou a pretexto de exercê-las. Desse modo, é indispensável que o agente pratique o ato no exercício da função pública ou a pretexto de exercê-la, sendo juridicamente irrelevante se o ato é praticado em caráter individual. É imprescindível que o agente esteja no desempenho de seu cargo, emprego ou função pública na entidade a que está vinculado. Sendo assim, o Estado não responde por dano causado por alguém que não é seu agente ou que, embora o seja, não esteja, por ocasião do dano, no desempenho das atribuições do cargo, função ou emprego público [19].
Outrossim, já decidiu o Colendo Supremo Tribunal Federal (STF) que é irrelevante a questão da licitude ou não do comportamento funcional do agente que tenha incorrido em conduta omissiva ou comissiva, causadora do dano. Também, não tem, atualmente, menor relevância jurídica a distinção outrora feita entre atos de gestão e atos de império para excluir a responsabilidade do Estado em se tratando desses últimos. Essa divisão não se justifica, porque uno é o Estado, descabendo a idéia de duas pessoas distintas: uma civil e outra política. Aliás, quer o ato comissivo ou omissivo provenha do jus imperiiou do jus gestionis sempre será uma forma de atuação do Estado. Daí a irrelevância proclamada pela jurisprudência quanto a essa singular distinção doutrinária, que não se coaduna com o direito positivo. [20]
d) Ausência de causas excludentes: A doutrina da responsabilidade objetiva adotada pela Constituição da República está fundada na teoria do risco administrativo e não na teoria do risco integral. Por isso a responsabilidade do Estado não é absoluta. Ela não se caracteriza nas hipóteses de força maior ou de caso fortuito. Da mesma forma, não haverá responsabilidade do Estado nos casos em que se configure a culpa exclusiva da vítima. No caso de culpa parcial da vítima impõe-se a redução da indenização devida pelo Estado.
Como já afirmado, nosso sistema jurídico adota a teoria da responsabilidade objetiva do Estado, assim sendo, este somente não será responsabilizado, total ou parcialmente, se for rompido o nexo de causalidade.
Pode-se romper o nexo de causalidade por meio da aferição de culpa exclusiva da vítima, quando o mesmo indivíduo que sofreu o dano oriundo da ação ou omissão de um agente da Administração Pública tiver dado ensejo ao resultado danoso, ou seja, quando a própria vítima, por ação ou omissão, contribui para que assuma tal condição. Nessas situações, em princípio, temos o rompimento do nexo causal com o ato do agente estatal, não existindo direito ao ressarcimento. Com efeito, é indispensável se verificar o fenômeno das concausas. Isso significa que precisamos examinar se a culpa constitui a causa fundamental e exclusiva do dano ou se, por algum modo, ainda subsiste o nexo causal com a ação do agente estatal. Dessa maneira, sempre que o dano não for resultado somente da culpa da vítima, mas também da ação do agente estatal, não temos a exclusão completa do dever de ressarcir, mas sim, uma redução do valor a ser pago como indenização, de modo proporcional à responsabilidade de cada um dos envolvidos.
Segundo Clóvis Beviláqua, força maior pode ser definida como o fato de terceiro, que criou, para a execução da obrigação, um obstáculo, que a boa vontade do devedor não pode vencer. Assim, a força maior é uma causa conhecida de um evento certo, mas que pelas suas características é irresistível; embora todos saibam que um determinado fato possa ocorrer, não se é capaz de evitá-lo.
Já o caso fortuito é definido como um acontecimento também incontrolável, mas desconhecido na sua origem, ou seja, enquanto a força maior é um fato externo, o caso fortuito está inserido no ato do agente estatal, razão pela qual o nexo causal não é rompido e persiste a responsabilidade. Devendo-se, também, observar a questão das concausas.
O rompimento do nexo de causalidade não está simplesmente na mera força maior, mas sim, na presença de seus dois requisitos, quais sejam, necessidade e inevitabilidade. Segundo a necessidade, o dano deve ser produto direto e exclusivo da força maior. Já a inevitabilidade relaciona-se à impossibilidade de serem afastados os efeitos danosos. [21]
Pode-se afirmar, resumidamente, que o Estado sempre responderá objetivamente pelos danos causados aos administrados, por ação ou omissão de seus agentes, desde que tenham sido injustamente causados.
O Estado, depois de ressarcida a vítima, promove a ação regressiva contra o agente causador direto do dano, se houver culpa ou dolo deste. A expressão utilizada pelo artigo 37 da Constituição Federal – "nos casos de dolo ou culpa" – para legitimar a ação repressiva do Estado não deve ser entendida como afastamento da teoria da responsabilidade objetiva como, equivocadamente, sustentavam alguns doutrinadores. A existência do dolo ou da culpa é matéria que não diz respeito ao terceiro prejudicado pela atuação da pessoa jurídica de direito público ou de direito privado prestadora de serviços públicos. É assunto que diz respeito exclusivamente ao relacionamento funcional do agente com a entidade pública ou privada a que se acha vinculado. Verificado o dolo ou a culpa, cabe à fazenda pública promover a ação de regresso para recuperar de seu agente causador do dano tudo aquilo que despendeu com a indenização da vítima.
Alguns de nossos juristas e magistrados têm se servido de um conceito amplíssimo de responsabilidade objetiva, levando às raias do esoterismo a exegese para a definição do nexo causal, um dos elementos de presença indispensável para a implementação da responsabilização civil do Estado. [22] Torna-se necessário, então, delimitar o âmbito de abrangência do conceito dessa responsabilidade objetiva e a definição do seu nexo de causalidade para, desse modo, evitar interpretações e aplicações errôneas do instituto da responsabilidade civil do Estado.
Quanto às interpretações jurisprudenciais acerca da responsabilidade civil do Estado, pode-se observar que no Brasil já se condenou o Estado, entendida essa expressão em sentido amplo, por dano decorrente de: apropriação indébita praticada por serventuário de cartório; despesa realizada para obtenção de fiança bancária a fim de pagar multa indevida; queda de árvore sobre automóvel estacionado em via pública; elevação do nível da rua; queda de veículo em valeta aberta em via pública sinalizada precariamente; acidente de trânsito em razão da má conservação da pista; acidente em ponte em precárias condições de uso; má conservação de córrego; inundação; semáforo defeituoso; depredação praticada por multidão; invasão de piquete grevista; assassinato de menor recolhido a abrigo de menores; prisão ilegal e tortura; ferimento causado a alunos em estabelecimento de ensino; entre outros. [23]
5 Decisões jurisprudenciais no sentido de excluir a responsabilidade civil do Estado
Conforme analisado, percebemos que o princípio da responsabilidade objetiva não se reveste de caráter absoluto, eis que admite o abrandamento e, até mesmo, a exclusão da própria responsabilidade civil do Estado, nas hipóteses excepcionais configuradoras de situações liberatórias – como o caso fortuito e a força maior – ou evidenciadoras de ocorrência de culpa atribuível à própria vítima (RDA 137/233 – RTJ 55/50). [24]
Analisaremos a seguir algumas decisões jurisprudenciais em que acertadamente excluiu-se a responsabilidade civil do ente de direito público, seja pela quebra do nexo de causalidade, seja pela existência de uma excludente de responsabilidade civil:
Quebra do nexo causal:
"Responsabilidade civil. Município. Queda de árvore. Vendaval. Força maior. Exclusão de nexo de causalidade. A Constituição Federal, em seu art. 37, parágrafo 6º prevê apenas a responsabilidade objetiva do Estado pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, não o responsabilizando, no entanto, por fatos provocados por condutas de terceiros ou decorrentes de fenômenos da natureza. A responsabilidade, neste caso, somente ocorreria quando provado que, por omissão ou falha de serviço, tenha concorrido para o evento, o que incorreu na espécie que se aponta. Sentença confirmada." (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul; Ap. Cível, n. 70000352617, Quinta Câmara Cível, Rel. Dês. Clarindo Favaretto, julgado em 01/06/2000).
Presença de excludentes da responsabilidade civil:
"Acidente de trânsito. Colisão de carro com animal na pista de rolamento. Morte da vítima. Responsabilidade civil de concessionária de serviço público. Indenização. Sumário. Lide com culpa afirmada da ré. Legitimidade passiva evidenciada, transferindo ao mérito a apreciação dos temas em lide. Atropelamento de animal em estrada, com conseqüente morte de passageiro do veículo. Inexistindo a expressa obrigação da concessionária, quanto a elidir presença de animais na estrada, não pode ser ela responsável. Obrigação que se transfere ao dono do animal. Culpa in custodiendo. Exegese do art. 588, § 3º, do CC, que é "numerus clausus". Não há como se aplicar o parágrafo 5º do citado artigo se não assumiu a concessionária a expressa responsabilidade pela verificação de animais na estrada e se há normas jurídicas que assim o estabelecem como obrigação da Polícia Rodoviária Federal. Local do acidente que é uma reta, com valão para evitar passagem de animais, cercas e sinalização obrigando a velocidade máxima em 60 (sessenta) quilômetros. Medidas de razoável prudência, que elidem a responsabilidade da Concessionária. O fato de existir no local acessos abertos a outras vias, proporcionando a também passagem de animais, não pode, por si só, caracterizar a culpa da Concessionária. Aplicáveis "in hypothesis" a Lei Estadual 2.234/94, o Decreto 1.655/95, a Lei 9.503/97, o Regimento Interno da Polícia Rodoviária Federal aprovado pela Portaria 308/99 e o Convênio n. PG 032/96-00 firmado entre o Departamento de Polícia Federal e o DNER. Inaplicabilidade da teoria do risco integral. Provimento." (TJDF, Ap. Cível 2000.001.16903, data de registro: 05/03/2001, Quarta Câmara Cível, Dês. Reinaldo P. Alberto Filho, julgado em 12/12/2000).
Presença de excludentes da responsabilidade civil:
"Responsabilidade Civil do Estado. Invasão de área cedida por este em parceria agrícola. Responsabilidade objetiva. Força maior. A invasão de área dada pelo Estado em parceria agrícola, por terceiros, caracteriza a força maior excludente da responsabilidade do ente público, que, no caso, atuou como se particular fosse, não se lhe podendo exigir, por outro lado, que seja responsável genericamente pelo cumprimento das leis, necessária a caracterização, ao menos, do nexo causal entre a ação de seu agente e os danos suportados por determinada pessoa, física ou jurídica. Quando o Estado-juiz que manteve provisoriamente os invasores na posse do imóvel, agiu o magistrado prolator da decisão no fiel exercício de sua jurisdição, não tendo sido atribuído ao mesmo, na inicial, dolo ou culpa grave, circunstâncias que poderiam conferir ao apelante o dever de indenizar. Apelo provido." (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Ap. Cível n. 70000454199, Décima Câmara Cível, Rel. Des. Luiz Ary Vessini de Lima, julgado em 11/05/2000).
Presença de excludentes da responsabilidade civil:
"Civil. Responsabilidade civil. Elementos da responsabilidade não demonstrados. Configuração de excludente de responsabilidade. Força maior. Inundação de residência depois de obras na via pública. Decorrência, no entanto, de intensas chuvas, acima do nível normal, que inundaram diversas regiões do estado. A prova robusta do agir culposo da municipalidade não ficou demonstrada, sendo apenas caracterizado o dano, o qual não é suficiente para ensejar o dever de indenizar da administração pública. Ausência do nexo de causalidade. Apelo provido." (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Apelação e Reexame Necessário nº 70000560250, Quinta Câmara Cível, Rel. Des. Carlos Alberto Bencke, julgado em 05/10/2000).
Aplicações adequadas da responsabilização civil do Estado e sua evolução:
"Morte por afogamento, em razão de enchente em via pública provocada por inundação das galerias de águas pluviais – Responsabilidade do município pelo mau funcionamento do serviço de limpeza das galerias. Comprovado o mau funcionamento do sistema de escoamento das águas e não demonstrada a ocorrência de culpa da vítima, impõe-se a condenação do município na composição dos prejuízos." (TJRJ, 5ª C. Civil, rel. Des. Narciso Pinto, m. v., Em. 07, DJE 26 de março de 1987)
"Pedido de indenização ao município, decorrente de deslizamento de um bloco de pedra da encosta de um morro, derrubando barraco e causando a morte de um seu ocupante – Inocorrência de alegada força maior, em face da existência de acidentes anteriores, da mesma natureza, dos quais resultou decreto de interdição da área, sem as necessárias providências de execução – Procedência parcial do pedido, omissa a Administração, por vários anos, na feitura de obras de contenção, por ela reconhecidas como necessárias, e por não providenciar o afastamento dos moradores do local, onde estavam expostos a perigo." (TJRJ, 2ª C. Civil, rel. Des. Thiago Ribas Filho, m. v., Em. 14, DJE 21 de maio de 1987)
"Acidente com veículo em virtude de queda de árvore na via pública. Responde a prefeitura por lesões causadas nos passageiros e danos no veículo. Comprovado que a árvore encontrava-se em estado precário, atacada por cupins, responde a municipalidade por tal fato, sobretudo na falta de comprovação de caso fortuito ou força maior." (TJRJ, 2ª C. Civil, rel. Des. Penalva Santos, v. u., Em. 26, DJE 27 de julho de 1989)
"RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO - OBJETIVA - HOMICÍDIO PRATICADO NAS DEPENDÊNCIAS DE ESTABELECIMENTO PRISIONAL - CULPA IN VIGILANDO - DANO MORAL - FIXAÇÃO. Demonstrado que o homicídio foi praticado pelo próprio companheiro de cela, revela-se omisso o Estado em relação ao dever de zelar pela integridade física dos que se encontram sob sua tutela, restando caracterizada a culpa in vigilando, a acarretar a sua responsabilidade civil que, in casu, se afigura objetiva. Na fixação do valor da reparação por dano moral, deve o juiz levar em consideração as contingências factuais da lide, sendo inexistente regra objetiva, não podendo o quantum indenizatório constituir lucro fácil para o lesado, nem seja ínfimo ou irrisório. Sentença mantida em reexame necessário, dando-se parcial provimento ao recurso adesivo, prejudicado o apelo principal. V.V." (TJMG, Processo n° 1.0313.06.188938-9/001(1), rel. Albergaria Costa, DJE 06 de março de 2008).
"Responsabilidade civil do Estado – Chacina de Vigário Geral – Ataque covarde de policiais civis e militares a indefesos cidadãos – Relação entre a atividade policial e a operação facínora – Incidência do art. 37, parágrafo 6º, da Constituição Federal. O essencial para a determinação da responsabilidade do Estado é que a condição de agente da Administração tenha sido a oportunidade para a prática do ato ilícito, que haja relação entre a função pública exercida pelo agente e o fato gerador do dano, não se fazendo mister que o exercício da função constitua a causa eficiente do evento danoso. Basta que ela ministre a ocasião para praticar-se o ato. Destarte, sendo público e notório que a chacina de Vigário Geral foi perpetrada por policiais civis e militares que, embora fora do exercício de suas atribuições, valeram-se de viaturas e armas oficiais, há que se reconhecer a responsabilidade objetiva do Estado, conforme prevista no art. 37, parágrafo 6º, da Constituição." (TJRJ, Ap. Cível 1954/2002, 2ª C., rel. Des. Sérgio Cavalieri Filho)
"AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. PRISÃO EM FLAGRANTE. DECRETAÇÃO. DENÚNCIA NÃO OFERECIDA. ERRO JUDICIÁRIO. INOCORRÊNCIA. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. INEXISTÊNCIA. APELO NÃO PROVIDO.- Tendo sido regular a prisão em flagrante do apelante, vez que praticado o ato dentro das formalidades legais, sem abuso ou excesso de poder, o só fato de a denúncia não ter sido oferecida e o relaxamento ter sido feito em prazo razoável, não configura o erro judiciário, como previsto no art. 5º, inciso LXXV, da CR/88, para caracterizar a responsabilidade civil do Estado." (TJMG, processo n° 1.0134.05.055728-6/001(1), rel. Nepomuceno Silva, DJE 14 de fevereiro de 2008).
Podemos perceber por meio da análise dos inúmeros julgados citados que, desde o início de sua aplicação, a responsabilidade civil do Estado vem ganhando em extensão. Vem se utilizando de uma interpretação extensiva, a qual, para alguns doutrinadores, nada tem de estranha. Isso porque, segundo esses autores, a atuação da Administração Pública adquire uma crescente prepotência e os indivíduos ficam a sua mercê em uma quantidade cada vez maior de situações. Decorrente deste fato é a necessidade também cada vez maior de proteção jurídica para os indivíduos, como conseqüência necessária de uma situação de fato que se produz todos os dias em nossa sociedade.