Artigo Destaque dos editores

A filiação sócio-afetiva como hipótese de inelegibilidade prevista no artigo 14, § 7º, CF/88

Exibindo página 2 de 4
29/06/2009 às 00:00
Leia nesta página:

4. A FILIAÇÃO NO DIREITO CIVIL BRASILEIRO

A concepção do Código Civil de 1916, no que tange à filiação, fundou-se basicamente na idéia de filiação legítima, ilegítima ou adotiva.

Segundo o Código de 1916, os filhos legítimos eram aqueles concebidos na constância do casamento, mesmo que anulado ou nulo, desde que contraído de boa-fé. Havia no entanto situações em que poderia haver a legitimação do filho, equiparando-o aos filhos legítimos.

Quanto aos filhos ilegítimos, eram aqueles que não possuíam os pais unidos através de laços matrimoniais, distinguindo-os dentre os ilegítimos como os naturais e os espúrios.

Os filhos ilegítimos naturais eram aqueles que se descenderam de pais entre os quais não havia nenhum impedimento matrimonial, no momento em que foram concebidos

Já os filhos ilegítimos espúrios seriam oriundos da união de homem e mulher entre os quais havia impedimento matrimonial, sendo assim espúrios, os adulterinos e os incestuosos.

A adoção para o ordenamento jurídico anterior e para o vigente é uma forma artificial de filiação que tem a intenção de igualar a filiação natural, sendo também conhecida como filiação civil, pois o seu resultado não é de uma relação biológica, mas de uma exteriorização de vontade .

No entanto, com o advento da Constituição Federal de 1988 tais terminologias foram abolidas de nosso ordenamento jurídico por força do parágrafo 6º do artigo 227 da Carta Magna, que dispõe:

Art. 227 – [...]

§6º - Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.

Além do mais, o princípio da igualdade, consagrado no art. 5º [07], CF/88, contribui significativamente para que essas classificações quanto à filiação fossem extirpadas do ordenamento jurídico brasileiro.

Dessa forma, em conformidade com a Constituição, o Código Civil de 2002 trouxe importantes inovações relativas à filiação.

Prova maior disto é o artigo 1.596 [08] do Código Civil de 2002, que repete, na íntegra, o disposto no Art. 227, § 6º , da Constituição da República de 1988, que, em preservação da dignidade da pessoa humana, veda as desigualdades entre os filhos.

No magistério de Zeno Veloso [09]:

A Lei Maior não tem preferidos, não elegeu prediletos, não admite distinção em razão de sexo, aboliu por completo a velha ditadura dos varões e acabou, definitivamente, com a disparidade entre os filhos, determinando a absoluta igualdade entre eles, proibindo, inclusive, os designativos que funcionavam como autêntica maldição.

Na lição de Luiz Edson Fachin [10]:

Esse preceito coroou uma longa e árdua evolução da sociedade e do direito, já que, durante muito tempo, filhos havidos fora do casamento não tinham os mesmos direitos dos oriundos de matrimônio civil, sendo excluídos da "cidadania jurídica", em favor de uma falsa harmonia nas relações matrimoniais.

Assim, tornou-se vedada a classificação da filiação, feita no regime anterior, por ser discriminatória, assegurando à todos os filhos, independentemente de sua origem, os mesmos direitos.

Já o artigo 1.597 implementou inovações correlatas aos avanços científicos, visto que acresceu três hipóteses ao rol extraído do artigo 338 do Código anterior. Tais inovações referem-se aos incisos III, IV e V, que tratam dos filhos havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido, os havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga, e os havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que haja prévia autorização do marido.

Outra mudança extremamente relevante foi inserida pelo artigo 1.593, que será discutido a seguir.

4.1. O alcance do artigo 1.593 do Código Civil

Diz o artigo 1.593 do Código Civil que o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consaguinidade ou de outra origem.

A expressão "ou outra origem" caracteriza-se como sendo de conteúdo jurídico indeterminado, oferecendo ao intérprete o desafio de definir seu alcance.

Ao ser acrescido a expressão "ou outra origem" ao termo "adoção" previamente utilizado, pretendeu-se que essa nova redação tivesse uma abrangência maior que a adoção em si, visando alcançar também os filhos da reprodução heteróloga, os filhos de criação, entre outros.

Notório é que a afetividade afirmou-se hoje como o paradigma que orienta todas as questões do Direito de Família.

Nesse sentido, é coerente dizer que a idéia de afetividade deve estar presente na expressão "outra origem" do artigo 1.593 do Código Civil. Cabe ao Magistrado, concretizar essa norma, com fundamento nos princípios constitucionais e nos valores sociais da sociedade.

A doutrina tem contribuído muito bem para a elucidação da mens legis do art. 1.593, no que pertine ao alcance da idéia de  parentesco. 

Paulo Luiz Netto Lôbo [11] entende que "constituem parentescos de ‘outra origem’ os parentescos por afinidade e por adoção".

Para Sílvio Rodrigues [12]:

Pelo artigo 1.593, será natural o parentesco consangüíneo ou de outra origem, assim acrescentado no texto quando da redação final elaborada pela Câmara dos Deputados, para contemplar a situação da inseminação artificial, em que o próprio Código também considera a paternidade presumida, com resultado

Idêntico à filiação consangüínea(art. 1.597).

Em comentários ao referido artigo, em obra coordenada por Heloísa Maria Daltro Leite, depara-se com a conclusão que:

Tem-se, assim, no art. 1.593 do novo Código Civil, elementos para a construção de um conceito jurídico de parentesco em sentido amplo, no qual o consentimento, o afeto e a responsabilidade terão papel relevante, numa perspectiva interdisciplinar. [13]


5. SOCIOAFETIVIDADE

A modificação de paradigmas que originou a Constituição Federal de 1988, bem como dos vários fenômenos apontados pela doutrina que refletem significativamente no Direito de Família, entre eles a publicização do Direito Privado, a constitucionalização do Direito Civil, bem como o fenômeno da repersonalização das relações familiares, permitiram que a afetividade fosse inserida nas discussões doutrinárias acerca da família contemporânea.

Foi justamente esse vínculo emocional que contribuiu para a distinção do que deve ser tutelado pelo direito das obrigações, cujo núcleo é a vontade, daquilo que deve ser tutelado pelo direito de família.

Isso fez com que a socioafetividade tornasse um das principais características da família atual, se apresentando nas relações familiares onde o amor é cultivado cotidianamente. A partir de tal contexto, é que se funda a família atual, permitindo o surgimento do Principio Jurídico da Afetividade, que decorrendo de outros Princípios Constitucionais, como o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, é considerado princípio implícito.

Segundo Paulo Luiz Netto Lobo [14]:

Encontram-se na Constituição Federal brasileira algumas referências, cuja interpretação sistemática conduz ao princípio da afetividade, constitutivo dessa aguda evolução social da família, especialmente:

a) todos os filhos são iguais, independentemente de sua origem (art. 227, § 6º) [15]; b) a adoção, como escolha afetiva, alçou-se integralmente ao plano da igualdade de direitos (art. 227, §§ 5º e 6º) [16];

c) a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, incluindo-se os adotivos, e a união estável têm a mesma dignidade de família constitucionalmente protegida (art. 226, §§ 3º e 4º) [17] [18];

d) o casal é livre para extinguir o casamento ou a união estável, sempre que a afetividade desapareça (art. 226, §§ 3º e 6º).

Devido ao fato da afetividade ser uma construção cultural retirada do mundo fático e, por não apresentar significado certo e determinado, é que o Princípio da Afetividade, como todos os outros princípios, devem ser determinados pelo aplicador do Direito ao caso concreto.


6. FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA

A filiação socioafetiva baseia-se na idéia de qualidade de filho, onde os elementos formadores da relação paterno-filial são construídos através dos laços do amor visando a felicidade dentro da família.

A filiação socioafetiva pode ocorrer em diversas situações, podendo inclusive comungar do mesmo liame da paternidade biológica e registral ao mesmo tempo, o que seria o ideal, afastando então o entendimento de que a adoção é a única espécie de família afetiva, incluindo-se também a adoção "à brasileira" e o "filho de criação".

Segundo Belmiro Pedro Welter [19]:

A filiação afetiva também se corporifica naqueles casos em que, mesmo não havendo vínculo biológico, alguém educa uma criança ou adolescente por mera opção, denominado filho de criação, abrigando em um lar, tendo por fundamento o amor entre seus integrantes; uma família, cujo único vínculo probatório é o afeto. É dizer, quando uma pessoa, constante e publicamente, tratou um filho como seu, quando o apresentou como tal em sua família e na sociedade, quando na qualidade de pai proveu sempre suas necessidades, sua manutenção e sua educação, é impossível não dizer que o reconheceu.

Nos ensinamentos de José Bernardo Ramos Boeira [20]:

A verdadeira paternidade passou a ser vista como uma relação psicoafetiva, existente na convivência duradoura e presente no ambiente social, capaz de assegurar ao filho não só um nome de família, mas sobbretudo afeto, amor, dedicação e abrigo assistencial reveladores de uma convivência paterno-filial, que, por si só, é capaz de justificar e identificar a verdadeira paternidade.

Segundo ensinamento de Luiz Edson Fachin, "o que determina a verdadeira filiação não é a descendência genética, e sim os laços de afeto que são construídos, em especial na adoção".

Assim também entende Rolf Madaleno [21]:

Os filhos são realmente conquistados pelo coração, obra de uma relação de afeto construída a cada dia, em ambiente de sólida e transparente demonstração de amor à pessoa gerada por indiferente origem genética, pois importa ter vindo ao mundo para ser acolhida como filho de adoção por afeição.

A paternidade socioafetiva se fundamenta na distinção entre pai e genitor e no direito ao reconhecimento da filiação, já que entende por pai aquele que desempenha o papel protetor, educador e emocional.

Portanto, juntamente com os critérios jurídico e biológico, a socioafetividade se tornou um novo critério para a definição da filiação.

6.1. Posse do estado de filho.

O instituto da posse de estado de filho surge diante da necessidade de se buscar efetivos meios probatórios da paternidade socioafetiva. A posse de estado de filho é a exteriorização à sociedade do laço paterno-filial, independentemente se há ou não vínculo biológico. É a aparência dos papéis sociais de pais e filho através da afetividade.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Nas palavras de José Bernardo Boeira Ramos [22]:

Entende-se a posse de estado de filho como sendo "uma relação afetiva, íntima e duradoura, caracterizada pela reputação frente a terceiros como se filho fosse, e pelo tratamento existente na relação paterno-filial, em que há o chamamento de filho e a aceitação do chamamento de pai.

Sua importância é maior quando ocorrem conflitos entre as paternidades biológica, registral e socioafetiva.

Neste sentido, contrabalançando a verdade biológica e a sócio-afetiva, é que surge o instituto da posse de estado de filho, valorizando-se a afectio, o caráter sociológico da filiação

Assim, a doutrina estabeleceu alguns elementos principais que caracterizam a posse de estado de filho. [23]

Os elementos que podem constituir o instituto da posse de estado de filho são determinados pela doutrina como sendo o nome ("nomem"), o trato ("tractatus") e a fama ("fama") [24]. No entanto, como bem ensina o professor Luiz Edson Fachin, "é sabido que estes são os principais dados formadores daquele conceito, mas nem a doutrina nem o legislador se arriscam em dar um rol completo ou definição acabada dos fatos aptos a constituí-lo". [25]

Rosana Fachin [26], na obra Direito de Família e o Novo Código Civil, ao tratar do tema, leciona que:

Essa visão formal concernente às provas da filiação convive à margem no novo texto com a possibilidade de se aferir a paternidade socioafetiva, para a qual a posse do estado de filho se funda na nominatio (pelo apelido de família), no tractus (designativo no tratamento de pai e filho), e na reputatio (aparência social da relação paterno-filial).

São eles o nome (nomen ou nominatio), o trato (tractus), e a fama (fama ou reputatio).

O primeiro elemento caracteriza pelo uso do nome da família do pai afetivo por seu pretenso filho, ou seja, é a atribuição do nome do pai ao filho. É a utilização perante terceiros do nome de família daquele que considera seu pai, o que faz supor a existência do laço de filiação.

Entretanto, tal elemento, segundo a doutrina, não tem o status de essencial para a configuração da posse de estado de filho, visto que, muitas vezes, a informalidade dessa condição faça com que o filho não utilize o nome de seu pai. Assim, estando caracterizados os outros dois elementos, quais sejam, o trato e a fama, a posse de estado de filho configurar-se-á.

O trato corresponde aos atos que expressam a vontade de tratar a criança como a trataria um pai, através da criação, educação, convivência e afetividade, comuns aos pais no tocante aos filhos.

Importante salientar que não se torna necessário a assistência material e afetiva cumulativamente, uma vez que o pai pode não ter condições de prestar a assistência financeira, ou que o filho não necessite.

Ademais, indispensável também não é o chamamento de pai ou filho, visto que a valorização deve fundar-se no amor, na educação e tudo mais que um pai dispensa a um filho.

Já a fama é a exteriorização desse estado da pessoa para o público, isto é, a sociedade deve reconhecer a pessoa como sendo filha daquela. É a expressão da publicidade desta relação à sociedade. Tal situação no entanto não pode ser reconhecida por suposições ou afirmações duvidosas.

A posse de estado de filho ainda não foi expressamente reconhecida como elemento constitutivo da filiação, podendo ser considerada implícita no art. 1.605 do Código Civil, que dispõe ser possível provar-se a filiação "quando houver começo de prova por escrito" ou "quando existirem veementes presunções resultantes de fatos já certos.

Em novembro de 2004, civilistas de todo o país, reuniram-se no auditório do STJ para estudo do atual Código Civil e, ao final do encontro, emitiram enunciados, dentre os quais um referente ao artigo 1593, de autoria do Des. Luiz Felipe Brasil Santos (TJ-RS), com a seguinte redação: "A posse do estado de filho (parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de parentesco civil." 

6.2. Espécies de filiação socioafetiva.

Várias situações podem englobar a filiação socioafetiva, podendo até mesmo se originar do mesmo liame da paternidade biológica e registral, inclusive ao mesmo tempo.

Tal concepção afasta a idéia de que a adoção é a única espécie de família afetiva, incluindo-se neste caso também a adoção "à brasileira" e o "filho de criação".

A adoção judicial é um ato jurídico, de vontade, de amor e de solidariedade. Trata-se de um ato solene, sendo exigidos alguns requisitos, tais como a diferença mínima de idade entre o adotante e o adotado, a efetivação por maior de 18 anos, entre outros.

Por se tratar de ato solene, a adoção deve se efetivar por meio de escritura pública, no caso do adotado ser capaz, ou por sentença judicial, nas adoções de incapazes.

Já adoção "à brasileira", por ser um fenômeno comum em nosso país, foi assim denominado pela jurisprudência pátria. Consiste no registro da criança diretamente em nome dos pais afetivos, sem as devidas formalidades legais, como se filhos daqueles fosse.

A adoção quando apenas um dos pais não tem legitimidade para fazer o registro, como é o caso do companheiro da mãe biológica que conscientemente registra a criança como se fosse também seu filho biológico, é considerada como adoção "à brasileira"

Mesmo constituindo-se em crime, previsto pelo art. 242 [27] do Código Penal, a maioria da doutrina e da jurisprudência vê essas adoções como "informais" e não com o estigma de "ilegais", justamente pela quantidade desses casos, e também para preservar uma situação de fato vantajosa para o filho, muito mais do que pelo "motivo nobre" que pudesse ter existido, a justificar a isenção da pena. [28]

Portanto, dúvidas não restam que a adoção "à brasileira" vem sendo admitida em nosso ordenamento jurídico.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Guilherme Ribeiro Teixeira

Bacharelando em Direito pela Universidade Presidente Antônio Carlos (Unipac)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TEIXEIRA, Guilherme Ribeiro. A filiação sócio-afetiva como hipótese de inelegibilidade prevista no artigo 14, § 7º, CF/88. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2189, 29 jun. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13065. Acesso em: 28 mar. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos