15. E as políticas públicas na área da infância e da juventude? Se aplicadas corretamente não afastam a necessidade do "toque"?
Essa é uma pergunta é muito importante. Embora, quando formulada e dirigida para a Vara da Infância e da Juventude de Fernandópolis, ela parte de uma premissa exclusivista; isto é, a execução de políticas públicas excluiria a necessidade do "toque".
Primeiramente, em sentido inverso, o "toque" não retira o imperativo de aplicação de políticas públicas. Aliás, em nossa cidade, o convênio existente entre a Vara da Infância e da Juventude e a Unimed/Responsabilidade Social, para o tratamento dos menores dependentes, é a prova não só de convivência de uma política pública com a medida do "toque", como também de necessidade dessa política pública em função do "toque" (à medida que garotos e garotas, viciados, retirados das ruas, são encaminhados para tratamento). Vale destacar que, diferentemente do que muitas vezes se ouve e se prega por aí afora, no sentido de carregar o Estado de custos, a partir de exigências de recursos para execução de políticas públicas, no nosso caso, essa política pública é de custo zero para o Estado.
Em segundo lugar, não cabe unicamente ao Judiciário, e de ofício, executar políticas públicas, que dependem muito mais dos outros poderes e de iniciativas não-governamentais. E caso ocorram omissões, em qualquer plano, no tocante à implementação das políticas públicas consagradas em lei, o Judiciário pode expedir mandamentos executórios; mas, a depender, como regra geral, de provocação, mediante ações judiciais. Porém, por outro lado, o que é de competência restrita do Poder Judiciário, que pode até agir de ofício [45], é a tomada de decisões como a do "toque".
Num terceiro ponto, é perceptível que as políticas públicas, mesmo aquelas direcionadas, quando existentes, à educação e ao aprimoramento da consciência dos pais, relativamente aos seus deveres quanto aos filhos menores, bem como as que levam aos menores valores construtivos e dignificantes, não parecem exercer uma plenitude de eficácia, de modo a evitar sempre situações de risco para menores de 18 anos. [46] Isso não quer dizer, em sentido contrário, que o "toque" é totalmente eficaz.
O que se sustenta aqui é que as políticas públicas não afastam a necessidade de se adotar medidas de prevenção e de proteção, previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente.
Além disso, para nossa apreciação nesse tema de políticas públicas, há uma diferença fundamental de abordagem filosófica entre muitos dos partidários exclusivistas de políticas públicas [47] e a nossa base de entendimento sobre a natureza humana, que acaba sendo o espírito da decisão judicial do "toque".
Partidários exclusivistas de políticas públicas na área da infância e da juventude parecem acreditar que a propensão ao risco (ingestão de dragas, álcool e prostituição) e até mesmo à violência (delinquência juvenil), mormente de menores de 18 anos, é algo alheio à natureza humana. Isto é, o menino ou a menina em risco e a conduta violenta de um adolescente decorrem, antes de tudo, de uma ou algumas imposições externas (família desestruturada, pobreza, falta de oportunidades, ausência de valores etc). Pouco ou nada pode ser descortinado do arbítrio do próprio ser humano, de suas vontades e ambições, quanto mais de um menor de 18 anos, segundo essa corrente de pensamento, a quem podemos dizer que, então, parte do pressuposto de que o ser humano é um "bom selvagem". [48]
Mas nós não compartilhamos dessa base filosófica. Não concordamos que a consciência humana é uma folha de papel em branco, onde bastam aulas de boa educação, em casa, na escola ou por organizações para isso aparelhadas, que o uso de eventual "força" estará descartado por completo. No nosso pensar filosófico, como muito bem nos mostrou Hobbes, os desejos do homem não se limitam às carências elementares, como comer e vestir-se. Envolvem apetites, ambições, que variam ainda em intensidade. Alguns são mais, outros menos, mas todos os homens são movidos por paixões.
De modo geral, o homem (esse termo empregado em sentido amplo, genérico) usa a razão para satisfação de suas necessidades e de suas paixões. Assim, todos dispõem de poder para satisfazer seus desejos. Ocorre que, quando frustrados, os homens podem usar até da violência. Ou, no nosso caso, meninos e meninas se valem da afronta aos pais para ir e permanecer num local de risco, madrugada adentro; principalmente porque, na rua, alta hora da noite, dissemina-se o desconhecido, o que gera curiosidade à juventude. E aí, muitas vezes, como nossa experiência com pais nos ensinou, não há força familiar para detê-los. Nem os programas de conscientização nem a rigidez dos pais, em muitos casos. Somente a força superior concreta e imponente pode coagir os homens (nossos meninos e meninas), de modo a não utilizar a violência, ou, especificamente, impedir que menores de 18 anos usem substâncias a eles proibidas ou que, por sua própria conduta, façam mal a si mesmos. [49]
O Estado-força é imprescindível para a realização da convivência pacífica e, no nosso tema, para assegurar uma infância e adolescência seguras e sadias. Nem todos os jovens estão dispostos aos valores construtivos que lhes ensinam a família, as escolas e os projetos sociais. E soa um tanto inocente acreditar e esperar que todos os jovens vão se comportar, a partir de políticas públicas materiais ou instrutivas, com recusas aos malefícios da vida, principalmente, quando dispersos, desacompanhados, em lugares de risco pela cidade.
Aliás, muitos alunos e que fazem parte de projetos desviam-se pelos riscos (bebidas e drogas) e pelo ato infracional, o que prova a necessidade de uma força a eles incisiva, quer na restrição à presença deles nos locais de situação de risco, quer até na aplicação de medidas de restrição de liberdade em ambiente fechado, no caso de atos infracionais graves.
E não custa lembrar que o próprio Estatuto prevê a intervenção do Estado-Juiz, em mais de uma passagem [50], justamente quando os jovens estão em risco, de modo a evidenciar que aqueles que propagam as políticas públicas como totalmente suficientes para o problema aqui posto estão dissonantes com o próprio sistema legal, previsto do Estatuto da Criança e do Adolescente.
16. Conclusão.
O Estatuto da Criança e do Adolescente foi muito mal apresentado à nossa sociedade, que o entendeu como uma lei de benefícios desmedidos aos jovens infratores, uma lei de proteção dos delinquentes juvenis. Enquanto isso, nas academias de direito e no ambiente técnico, inclusive, de decisões, o Estatuto é entendido como carta suprema de valores humanos. Ou seja, enquanto o povo sempre viu o Estatuto como uma lei ruim, os doutores enxergam somente maravilhas.
O problema não está na diferença de visão entre o povo e os doutores. E sim numa certa altivez, vinda da academia, que não se esforçou até aqui para retirar o mito da lei "molenga" que se abateu sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente. A dificuldade do Estatuto vem da postura distante de quem deve conhecer a lei e pronunciá-la ao povo. Um estilo que recorre às abstrações, sem a preocupação prática de implementação de uma lei que, verdadeiramente, é maravilhosa. A lei é feita para as pessoas, não para discussões teóricas sem fim.
Portanto, não concordamos com a apresentação do Estatuto da Criança e do Adolescente como uma ótima lei, quando o discurso vem embalado em abstrações, sem sentido prático, e, sobretudo, quando impregnado da ideologia política dominante no mundo acadêmico do direito neste país. Pois isso faz do Estatuto uma bela lei, longe do povo. Ainda de T. S. Eliot: "não faltam, em parte alguma, leis maravilhosas que, por mais esperançosamente tenham vindo à luz, nunca passaram de letra morta".
O Estatuto da Criança e do Adolescente é letra vida e clara. O "toque" é uma de suas expressões. Um reflexo de exercício efetivo da proteção integral.
Por fim, interessante, para nós, que estamos aplicando o Estatuto da Criança e do Adolescente nesses quatro anos (crentes que estamos cumprindo à risca a lei brasileira), mas sob o estigma de um nome, "toque de recolher", foi verificar o seguinte: enquanto as pessoas de um modo geral, na sociedade, pouco se preocupam com o nome da decisão judicial, mas sim querem saber o que dispõe a sentença (a que horas se poder ficar na rua um garoto ou garota, se os pais são ou não penalizados etc), muitos doutores das ciências humanas e sociais, principalmente eles, julgam o livro pela capa, a decisão, pelo nome.
17. Última portaria da Vara da Infância e da Juventude de Fernandópolis.
Nas primeiras decisões judiciais, em 2005, a preocupação central estava tanto na prevenção (recomendação do horário) quanto na proteção (recolhimento dos menores em risco). Os mandados judiciais previam o horário das 23 horas, num claro sinal da prevenção, e tinham validade de três meses; ao final do período, revia-se o trabalho e adequavam-se novas medidas.
Assim, várias foram as decisões e processos judiciais ao logo dos anos, sobre o "toque". Com o tempo, e lá se vão quatro anos, diante da diminuição das situações de risco, mormente pela diminuição da frequencia de menores nos locais perigosos, a preocupação central passou a ser a proteção, pois o "espírito" da medida preventiva (o horário) foi bem assimilado na Comarca. Além disso, começamos a reforçar que o "erro" é a situação de risco em si, e isso pode ocorrer em qualquer hora do dia ou da noite. Por isso, fomos retirando aos poucos de cena a questão do horário, centrando as energias na proteção. Sem reconhecer que o "horário" foi muito importante para nós, como grande fator estratégico, para chamar atenção de todos – família, sociedade e de outras autoridades do Estado – quanto ao sério problema do risco, aos jovens em geral, quando soltos pelas ruas, sem qualquer vigilância. Desse modo, conseguimos cobrar uma postura firme, principalmente, dos pais e filhos, em relação à necessidade de prevenção e proteção que deve vir da família. [51]
Segue, então, o resultado desses anos de trabalho, numa portaria que, na nossa atual fase de trabalho, está compatível, segundo as diretrizes do art. 149 do Estatuto da Criança e do Adolescente, com as "peculiaridades locais", "o tipo de freqüência habitual ao local", no caso, nas nossas ruas, como temos observado nossa cidade.
"PORTARIA 3/2009
O Juiz da 1.ª Vara Criminal e do Anexo da Infância e da Juventude de Fernandópolis, no uso de suas atribuições constitucionais e legais:
1. Considerando a constância ainda presente de denúncias formais e informais sobre situações de risco de crianças e adolescentes pelas cidades da comarca, especificamente, daqueles que permanecem nas ruas durante a noite e madrugada, desacompanhados dos pais ou responsável, expostos, entre outros, ao oferecimento de drogas ilícitas, prostituição e vandalismos;
2. Considerando as várias operações conjuntas, anteriores, realizadas nesta cidade, desde agosto de 2005, com o Ministério Público, as Polícias Civil e Militar, o Conselho Tutelar e a OAB, para recolhimento das ruas de menores em situações de risco, cujos procedimentos formais estão à disposição de qualquer um, para acesso, no cartório da Infância e da Juventude [52];
3. Considerando os precedentes do número anterior desta portaria, que a sociedade, de modo geral, envia congratulações, além das moções de apoio dos Poderes Públicos Municipais e de entidades organizadas, a todas as autoridades incumbidas do trabalho, e até pedidos, diretamente a este juízo, para continuidade das operações, o que mostra a legitimidade do trabalho desenvolvido por todos;
4. Considerando o disposto nos arts. 98, 99 a 101, 148 e 149 do Estatuto da Criança e do Adolescente, além dos princípios gerais e fundamentais do Estatuto, como o da proteção integral [53], que determina, para a garantia de direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, quanto aos menores de 18 anos, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade, a adoção de medidas previstas por lei ou por outros meios;
5. Considerando, nos termos anteriores, o princípio estatutário da prioridade absoluta [54], que determina à família, à comunidade, à sociedade em geral e, também, ao poder público, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária;
6. Considerando, nos termos dos dois números anteriores, que o Estatuto da Criança e do Adolescente adverte a todos, família, comunidade, sociedade em geral e, também, poder público, que, haverá punição, na forma da lei, em casos, igualmente, de negligência daqueles que não cumprem as regras e os princípios estatutários, como os acima expostos, incluindo, repita-se, o poder público, pois nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais (art. 5.º);
7. Considerando que, na questão legal afeta a esta portaria, pelo precedente do SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (RMS 8563/MA), onde, num mandado de segurança impetrado pelo Ministério Público do Estado do Maranhão contra a Portaria 1/96, baixada pela MM Juíza de Direito da Infância e Juventude da Comarca de Imperatriz-MA, o Superior Tribunal de Justiça, pela relatoria do eminente Ministro Carlos Alberto Menezes Direito (hoje, integrante do STF), decidiu que a Portaria 1/96 daquele juízo (que proíbe a permanência de crianças e adolescentes entre 0 e 14 anos nas ruas, praças, casas de video-game, fliperama, bares, boates ou congêneres, logradouros públicos, parques de diversões, clubes e danceterias, após as 20:30 horas, salvo se acompanhados, estritamente, pelos pais ou responsável, determinando-se a condução dos menores, flagrados nessas hipóteses, ao juizado e entrega aos pais), não encerra qualquer conteúdo teratológico, de modo a subsidiar o entendimento a esta portaria, não sendo ela ilegal, muito menos ilegítima, à vista das manifestações da sociedade, acima-mencionadas;
8. Considerando por fim que, para a autoridade judicial que baixa esta portaria, embora ciente e convicta dos resultados concretos e efetivos, no sentido da melhora da situação das crianças e adolescentes e de suas famílias em nossa cidade e comarca, e embora ciente e convicta da consciência do dever, da presteza e da retidão das Polícias e do Conselho Tutelar, a ponto de consignar, neste procedimento formal, que o trabalho de campo desempenhado pela Polícia Militar, Polícia Civil e Conselho Tutelar é exuberante, não há, ainda, um sistema de verificação mais eficiente das operações, no sentido de se apreciar a constância e a freqüência das operações policiais e do Conselho Tutelar, referente ao tema desta portaria, de modo a aferir e confirmar, à vista de todos e formalmente, o cumprimento das regras e princípios do Estatuto da Criança e do Adolescente pelas autoridades locais que tem este dever, diante da advertência em caso de negligência, prevista no Estatuto e acima referida;
R E S O L V E:
1. Baixar esta portaria, autuando-a no registro próprio, e instaurar procedimento de inquérito judicial, nos termos do art. 153 do Estatuto da Criança e do Adolescente [55], com autuação e registros próprios;
2. Encaminhar cópias desta Portaria para a Polícia Militar, para a Polícia Civil e para o Conselho Tutelar, determinando, conforme as considerações que fundamentam este ato judicial, a continuidade, a permanência e a regularidade das operações para recolhimento das crianças e adolescentes, desacompanhados dos pais ou responsável, em situação de risco [56], principalmente durante a noite e a madrugada, respeitando-se, obviamente, no quesito organização, o comando de cada corporação e a disponibilidade do Conselho Tutelar, sem deixar de ressaltar, nesse ponto, as considerações desta portaria, especificamente, as de números 5, 6 e 8;
3. Determinar às mesmas autoridades anteriores a remessa de relatórios resumidos, com documentos, se necessários, com as qualificações dos menores e pais, a natureza da situação de risco encontrada e as providências tomadas, para a Vara da Infância e da Juventude, que juntará os respectivos relatórios ao procedimento de inquérito judicial;
4. Salvo hipóteses de ato infracional ou flagrante de qualquer crime cometido contra crianças e adolescentes, cuja atribuição investigativa e a tomada de providências iniciais são exclusivas, primeiramente, da Polícia Judiciária, ou do Ministério Público, determina-se a adoção, pelas autoridades mencionadas, caso a caso de situações de risco, das providências previstas em lei, como as do art. 101 do Estatuto da Criança e do Adolescente [57], sugerindo, como regra geral e subsidiária a todos os casos encontrados, mas não substitutivas das medidas adequadas, aquelas previstas nos incisos I e II do referido artigo, devendo-se encaminhar, para o inquérito judicial, cópia do termo de responsabilidade assinado pelos pais;
5. Para segurança e transparência das operações, sugere-se, mas não obrigatoriamente, que elas sejam realizadas, quando organizadas pelas polícias, com a presença de pelo menos um conselheiro tutelar; ficando autorizada a utilização das dependências das Delegacias de Polícia da cidade e da comarca e das sedes dos Conselhos Tutelares como locais para que os pais sejam intimados, por qualquer meio, durante qualquer hora do dia e da noite, a buscar seus filhos e sejam advertidos, formalmente, nos termos do art. 101, II, da situação de risco encontrada, quando da aplicação da medida de proteção prevista no art. 101, I, do ECA, aqui consignada como regra geral;
6. Além das autoridades já mencionadas, nas providencias acima determinadas, encaminhem-se cópias desta Portaria para conhecimento, recebimento de sugestões, qualquer objeção ou para o recebimento dos recursos previstos em lei, ao Ministério Público, à Presidente da Subsecção local da Ordem dos Advogados do Brasil, às Câmaras de Vereadores da Comarca, aos Prefeitos Municipais, ao Juiz de Direito Diretor do Fórum, ao Delegado Seccional de Polícia, ao Tenente Coronel Comandante da Polícia Militar, aos Conselhos Tutelares da comarca, em que todas as autoridades podem, obviamente, a critério de cada uma, convocar seus pares ou a comunidade para o debate democrático das questões aqui tratadas;
7. Nos termos do art. 153 do ECA, de todos os atos deste procedimento, público e transparente, ciência ao Ministério Público.
Fernandópolis, 23 de março de 2009.
Evandro Pelarin - Juiz de Direito".