1. Princípio da legalidade penal
De antemão, é imperioso estabelecer a função desempenhada pelos princípios, sobretudo o da legalidade, no Direito Penal moderno, razão pela qual se impõe uma brevíssima incursão histórica acerca do tema.
A consagração dos princípios que atualmente orientam e fundamentam o Direito Penal remonta ao período histórico da Ilustração, umbilicalmente associado à idéia de humanização da intervenção penal. A idéia da reserva legal para incriminações e cominação de sanções está ínsita a uma concepção refratária ao poder absoluto do monarca, como vigente no Antigo Regime. O princípio surge, desta forma, como defesa do cidadão – e não mais o mero súdito – em relação ao, até então, irrestrito poder de punição atribuído ao Estado.
Com a adoção da idéia de que apenas a lei poderia definir os crimes e cominar as sanções de natureza penal, permite-se – em tese, naturalmente, já que a presunção de conhecimento das leis, e a consequente inescusabilidade do seu desconhecimento, constituem, sem dúvida, a maior falácia do ordenamento jurídico – aos cidadãos tomar conhecimento prévio dos desvios de conduta que lhe são proibidos.
Demais disso, a edição deste ato que prevê, em abstrato, a incriminação de determinados desvios de conduta haveria de ocorrer, necessariamente, antes da prática do ato tido por delituoso. À vista disto, não será exagerado asseverar que os princípios da legalidade e da anterioridade da lei penal encontram-se irmanados, ou, mais que isto, constituem a dupla face de uma mesma moeda.
Não é novidade que os revolucionários franceses, com a derrocada do Antigo Regime, abandonam os postulados jusnaturalistas e passam a promover um extremado culto à Lei. Colocando a questão em termos mais precisos, com a vitória do movimento revolucionário, os, outrora, jusnaturalistas passam a sufragar a tese de que os direitos naturais, que hão de ser tutelados pelo ordenamento jurídico, podem ser positivados, razão pela qual a legislação, até então sustentáculo dos ideais pré-revolucionários passa a constituir reflexo do ideário liberal. À vista disto, a defesa da lei, dos direitos positivados e codificados passa a ser a palavra de ordem.
Esta é uma das razões pelas quais os revolucionários apresentavam-se tão temerosos, em relação ao campo de discricionariedade na atuação dos magistrados, o que conduz Montesquieu a cunhar a sua célebre expressão "o juiz é a boca da lei".
Contextualizando a conjuntura social e política da época, não se pode deixar de anotar que o culto à lei constituía escudo de defesa dos cidadãos, habituados aos desmandos do despotismo monárquico. Valorações atinentes a conceitos como adequação, justiça e fins sociais da lei eram de somenos importância, mesmo porque vigorava, como dito, a idéia de que os dispositivos legais passavam a reproduzir os valores do Direito Natural, até então defendidos, e que agora se positivavam.
Demais disso, adstringindo a discussão para seara penal – como devido nestas considerações – o só fato de poder ter ciência prévia da conduta tipificada e da ulterior sanção que dela adviria, já constituía, para o cidadão, evolução de suma importância. Tal como ocorria na era das leis draconianas, ainda que a lei fosse severa, encontrava respaldo e aceitação social, pois melhor uma lei severa do que a possibilidade de submissão a sanção sem prévia cominação legal.
Sob outro prisma, é de se salientar que, ao se deferir ao legislador a função de criminalizar as condutas, o Direito Penal passava a se revestir de um manto de legitimidade (ao menos formal), porquanto transplantava-se para o Parlamento, local em que se desenvolviam os embates do incipiente jogo democrático, as discussões pertinentes à tutela de interesses e valores. Respaldava-se e legitimava-se assim (ao menos formalmente, ressalte-se uma vez mais) a violência utilizada pelo Estado para fazer frente à violência cometida em detrimento dos bens por ele protegidos.
Do que até o presente momento foi destacado, importa salientar a principal idéia que orienta a existência do princípio da legalidade (bem assim, dos demais princípios que informam o Direito Penal): ele nasce e se desenvolve como direito do cidadão, a ser oposto à sanha punitiva do Estado. O principio da legalidade constitui o contraponto, o limite a ser observado pelo Estado quando da cominação de sanções.
Não será demasiado asseverar que o referido princípio é um freio à atuação punitiva do Estado. Desta forma, na medida em que constitui limite objetivo ao poder de punir do Estado, convola-se em direito do cidadão. Em assim sendo, a interpretação e aplicação do referido princípio há de levar em consideração essa sua peculiar natureza, não se legitimando, por exemplo, a utilização do referido princípio em desfavor do cidadão.
2. Princípio da legalidade e a recepção constitucional
Além de se fazer presente no primeiro artigo do nosso Código Penal, o princípio da legalidade encontra-se expressamente previsto na Constituição Federal (art. 5º., XXXIX). Trata-se da consagração da parêmia cunhada por Feuerbach em fins do século XVIII (nullum crimen nulla poena sine lege). Demais disso, parece, à primeira vista, um truísmo asseverar que, ao se referir à Lei, a Constituição Federal alude, neste caso, à lei em sentido material e formal, isto é, ato submetido ao processo legislativo adequado, por meio da deliberação parlamentar e sanção presidencial.
Com fundamento nesta premissa, deve-se indagar: atos que não constituam lei em sentido formal, mas possuam força de lei podem criminalizar condutas e prever as respectivas sanções?
Sob a égide de Constituições pregressas, foram editados atos legislativos diversos de lei em sentido formal, com conteúdo penal. Célebre exemplo é o decreto-Lei 201/67, que, ao dispor sobre a responsabilidade de Prefeitos e Vereadores, previu a prática de infrações penais, bem como sanções de até 12 (doze) anos de reclusão. Referido ato legislativo, utilizado como exemplo, continua em vigor, muito embora não constitua lei em sentido formal.
Isto, porém, não responde à questão formulada. Sabe-se que a constitucionalidade de atos legislativos pré-constitucionais é aferida pelo fenômeno da recepção. Desta forma, se o ato legislativo anterior ao advento da Constituição for compatível com a nova ordem constitucional, haverá a recepção deste ato legislativo. Caso contrário, o ato não estará recepcionado.
Esta recepção, todavia, refere-se à compatibilidade material do ato com a nova Constituição, e não à compatibilidade formal. Assim, a natureza do ato legislativo e o processo legislativo ao qual foi submetido não precisam se adequar ao novo texto constitucional. Esta a razão pela qual ainda subsistem em nosso ordenamento jurídico os decretos-leis ou pela qual o Código Tributário Nacional foi recepcionado com status de lei complementar. Em suma, em se tratando de recepção, afere-se a constitucionalidade material do ato, e não a formal.
Por esta razão, temos, sim, decretos-leis tratando de matéria penal em nosso ordenamento. Mas, retornando à pergunta formulada, podemos falar em ato normativo diverso de lei em sentido formal tratando de matéria penal que tenha sido editado sob a égide da Constituição Federal de 1988?
3. Legalidade penal e as medidas provisórias
Durante algum tempo, esta celeuma recaiu sobre as medidas provisórias, ato normativo com força de lei, editado pelo Presidente da República em casos de relevância e urgência, para posterior apreciação do Poder Legislativo.
A discussão assentava-se, então, em dois pólos. De acordo com a primeira perspectiva, não havia razão para não se permitir a utilização das medidas provisórias no trato das matérias penais, pois não apenas tratava-se de ato legislativo de mesma hierarquia do que a lei, mas também de ato legislativo com a mesma força daquela.
Sob outro prisma, sustentava-se a tese de que o trato da matéria penal seria de exclusividade da lei em sentido formal, isto é, ato normativo aprovado sob o pálio das discussões nas casas parlamentares, local de legitimação da democracia representativa. Neste sentido, sustenta-se a idéia de que a criminalização de condutas é algo tão relevante – não se pode olvidar que o objetivo da intervenção penal é a tutela subsidiária dos bens jurídicos mais relevantes da sociedade – que não poderia passar ao largo desta legitimação democrática levada a cabo pelo Parlamento.
A questão pareceu completamente pacificada com a edição da Emenda Constitucional nº. 32/01, que, ao acrescentar o § 1º. ao art. 62 da Constituição Federal proscreveu expressamente a possibilidade de edição de medida provisória sobre matéria afeta ao Direito Penal.
Algumas questões, todavia, podem ser suscitadas.
De antemão, cumpre esclarecer o que se deve entender por Direito Penal. Naturalmente, há casos que se encontram na zona limítrofe. Outros, todavia, não padecem desta peculiaridade. Assim, a incriminação de uma conduta, a majoração ou redução de uma pena, etc, são casos flagrantes em que o Direito Penal se faz presente.
A questão que ora se coloca é a seguinte: seria concebível a aprovação de medida provisória em matéria penal, caso o seu conteúdo fosse manifestamente favorável ao réu? Como um exemplo simplório, basta imaginar a hipótese de aprovação de uma MP que reduzisse a pena prevista em abstrato para determinada figura delitiva. É constitucional esta medida provisória? Há afronta ao princípio da legalidade?
Como visto, pela leitura do dispositivo constitucional, não há qualquer ressalva neste sentido.
Postergando a resposta acerca da constitucionalidade da medida provisória, cumpre-nos afirmar que, no caso concreto, não vislumbramos afronta ao princípio da legalidade. Como já salientado, os princípios em matéria penal constituem salvaguarda do cidadão em relação ao poder de punir do Estado, que por eles são limitados. Em outras palavras, os princípios hão de funcionar como instrumento de defesa do cidadão em relação à sanha punitiva do Estado, não podendo ser interpretados em seu desfavor.
Se o instrumento normativo possui força de lei, não há que se objetar à incidência desta força normativa sob a alegação de que constitui afronta ao referido princípio. Ora, se o princípio em comento destina-se à proteção do cidadão, como poderá ser utilizado para objurgar a incidência de um diploma normativo que o favorece?
Naturalmente, este entendimento pode ser esposado em decorrência da "força de lei" de que é portadora a medida provisória. Desta forma, se o óbice fosse apenas a regularidade formal da aprovação, poder-se-ia admitir a medida provisória, sem maiores preocupações quanto à infringência ao princípio da legalidade, conquanto esta fosse favorável ao réu;
A ressalva é pertinente, na medida em que, por óbvio, não se poderia conceber a mesma lógica se, em vez de uma medida provisória, estivéssemos tratando de um diploma normativo de hierarquia inferior (como um decreto, por exemplo). Neste caso (se, por exemplo, um decreto diminuísse a pena de um crime), por óbvio, não se pode conceber a subversão do sistema de hierarquia das normas, ainda que favorável ao réu.
Retomando o ponto, pode-se concluir que, tendo a medida provisória mesma hierarquia e força que a lei, não se poderia alegar a burla ao princípio da legalidade se ela concedesse um benefício ao réu, já que referido princípio não poderia ser interpretado em seu desfavor.
Não se defende, com isto, a possibilidade de utilização da medida provisória em matéria penal. Não. Com efeito, não se pode alegar ofensa à idéia de legalidade se a medida provisória fosse benéfica ao réu. O que impossibilita a utilização das MP´s em matéria penal, porém, são os seus requisitos constitucionais, isto é: a relevância e a urgência.
4. Requisitos constitucionais das medidas provisórias
Não há dúvidas de que o primeiro requisito constitucional das medidas provisórias, isto é, a relevância, estará presente no trato da matéria penal. Não será demasiado reiterar que a intervenção penal constitui a atuação mais drástica do Estado na esfera de direitos do cidadão. Não há maior ato de violência estatal do que aquele levado a cabo por meio da edição (e posteriores aplicação e execução) da sanção penal.
Mais que isto, a intervenção penal objetiva tutelar os interesses e valores mais caros à sociedade. Nesta linha de raciocínio, apenas as condutas mais lesivas deverão ser objeto da tutela penal, apenas os desvios de conduta social mais abruptos merecerão a atuação do Direito Penal.
Com base nestas idéias, fácil constatar que o trato da matéria penal está envolto em temas de suma relevância, o que denota a presença do primeiro requisito constitucional da medida provisória. Tal não se dá, todavia, quando o objeto de análise recai sobre o segundo requisito constitucional do referido ato legislativo.
É possível falar em urgência em matéria penal?
A concepção de urgência que orienta a edição de medidas provisórias é aferida de acordo com a possibilidade de se aguardar o tempo necessário para o trâmite do processo legislativo da Lei ordinária. De forma mais objetiva, edita-se medida provisória sobre determinado tema relevante quando não se pode aguardar a aprovação da lei ordinária, geralmente resultante de longo processo de tramitação.
Esta idéia de urgência é incompatível com o Direito Penal assentado em critérios de racionalidade democrática, como deve ser o Direito Penal moderno. Uma intervenção penal pautada em critérios de urgência é uma intervenção penal animada por clamor social, intervenção casuística e simbólica, em regra destituída de eficácia. Um Direito Penal emergencial, ou de urgência, destina-se a dar satisfações momentâneas a uma opinião pública abalada por crimes de repercussão. Enfim, um Direito Penal simbólico, descomprometido com a tutela efetiva de bens jurídicos, fruto de sentimentos revanchistas provindos do clamor social.
Não se pode deixar de anotar que a legislação penal brasileira encontra-se repleta desta tutela penal emergencial. Como exemplo, podemos fazer alusão à edição da lei de crimes hediondos e a posterior inclusão do homicídio qualificado e da falsificação de produtos com fins terapêuticos e medicinais no rol destes crimes. Os projetos tendentes à redução da maioridade penal – que sempre vêm à tona quando da ocorrência de um crime de repercussão – também são expressão deste fenômeno.
Possibilitar a edição de medidas provisórias em matéria penal seria consagrar a legitimação desta prática, incompatível com os preceitos que devem reger o Direito Penal moderno. Pode-se contra-argumentar que, como já ressaltado, a medida provisória deveria ser editada apenas em benefício do réu, sob pena de burla ao princípio da legalidade. Ainda assim, não se pode falar em urgência em matéria penal.
Sem embargo, o trato da matéria penal – isto é, a definição das condutas criminosas, a cominação respectiva da sanção e seus consectários – há de ser realizado sob a égide de parâmetros de racionalidade, sem a influência de situações de casuísmo. Esta lógica deve presidir a intervenção penal em qualquer circunstância, ainda que a pretensão do legislador dirija-se a beneficiar o réu.
Uma mudança de concepção apta a ensejar a necessidade de mudança da legislação penal não ocorre de forma imediata. E, mais que isto, como já ressaltado, o trato atinente à matéria penal não se destina a sanar casuísmos, seja de que natureza for. Uma suposta urgência em matéria penal, ainda que, em tese, em benefício do réu, certamente estará destituída da impessoalidade que há de reger os atos do legislador penal. A adoção de um caso isolado como paradigma idôneo a ensejar a urgência há de ser expurgada da atuação do legislador penal, razão pela qual não há que se falar em urgência no Direito Penal, sob pena de afronta a garantias constitucionais ou favorecimentos casuístas.
5. Conclusões
I – O princípio da legalidade em matéria penal, fruto do movimento de humanização e limitação do poder de punir do Estado, é concebido como direito do cidadão. Demais disso, referido princípio consagra a idéia de que o trato da matéria penal adstringe-se à lei em sentido material e formal.
II – Diplomas normativos de natureza diversa, editados antes da Constituição Federal/88 continuam em vigor, conquanto haja compatibilidade material com a nova ordem constitucional, por força do fenômeno da recepção.
III – arrefecendo acalorados debates doutrinários, a EC 32/01 dispôs expressamente que a medida provisória não poderia tratar de matéria afeta ao Direito Penal.
IV – Adotando por paradigma o princípio da legalidade, tem-se que referida vedação não poderia ser oposta se a medida provisória fosse benéfica ao réu, na medida em que o princípio não pode ser interpretado em desfavor do cidadão.
V – Contudo, deve ser afastada a hipótese de edição de medida provisória em matéria penal, porquanto não há que se falar em urgência (requisito constitucional das MP´s) em Direito Penal, sob pena de consagração de uma intervenção penal emergencial, simbólica e casuísta, incompatível com os ditames da ordem constitucional.