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Da repercussão geral como pressuposto específico e como filtro ou barreira de qualificação

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10/07/2009 às 00:00
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2. A tramitação legislativa da Repercussão Geral

Tal como foi visto no item anterior, o precedente portenho sobre a Repercussão Geral, bem como a dificuldade de sua compreensão e aplicação, cabe-nos chamar a atenção para a ‘evolução’ no tratamento que a matéria recebeu no Congresso Nacional, durante a denominada Reforma do Judiciário que, em sua versão inicial, na PEC 96, de 1992 não fazia qualquer referência à Repercussão Geral. Vale lembrar que a referida PEC, ao final da legislatura, foi arquivada sem que o parecer do relator, datado de 8 de agosto de 1996 fizesse qualquer sinal no sentido de modificar, neste sentido, a proposta do Dep. HÉLIO BICUDO.

Desarquivada em 1999, e tendo como relator-geral o Dep. ALOYSIO NUNES FERREIRA, foram criadas seis relatorias parciais, das quais coube ao Dep. RENATO VIANA a responsabilidade daquela referente à estrutura e competência do Supremo Tribunal Federal e da Justiça Federal, surgindo neste instante a proposição da repercussão geral, nos moldes em que veio a ser promulgada.

Em parecer datado de 31.05.1999, o Relator-Geral (Dep. ALOYSIO NUNES FERREIRA) escreveu sobre a repercussão geral as seguintes considerações, aqui trazidas inclusive porque faz referência expressa à relevância, já acima assinalada neste estudo.

"Na mesma linha, procurando criar um filtro para os recursos de natureza extraordinária – diz o documento – reintroduziu-se a necessidade de demonstração da repercussão geral das questões constitucional e federal suscitadas nos casos, na hipótese de recurso extraordinário e de recurso especial. É o que já chamamos de ‘relevância’ ou o que os argentinos denominam ‘transcendência’ da matéria".

Em seguida, após fazer referências a dados estatísticos, diz o relatório: "Urge, portanto, o estabelecimento de filtros para tais demandas, sob pena de perpetuar-se essa situação de completa banalização da jurisdição extraordinária" [31].

Na conclusão, a proposta do Relator estava assim redigida: "no recurso extraordinário, o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, a fim de que o Tribunal, em procedimento a ser disciplinado em seu regimento interno, examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros" (art. 102 § 4º).

Vale notar, por importante, que na proposta o procedimento para verificação da repercussão seria de responsabilidade do regimento interno do STF, enquanto que na proposta final aprovada ficou para ser verificada "nos termos da lei" (CF, art. 102, § 3º).

O parecer do dep. ALOYSIO NUNES não chegou a ser votado pela Comissão Especial [32], tendo sido designada para relatora-geral a Dep. ZULAIÊ COBRA que, em sua primeira versão (14.12.1999), manteve intacto o tratamento dado pelo relator anterior à Repercussão, porém, estendendo-a ao recurso especial e ao recurso de revista, o que não foi aceito pelo plenário da Câmara, tanto que seguiu para o Senado com a única previsão para o RE. Em 16.12.1999, via complementação de voto, a deputada a suprimiu a competência para que o RISTF regulasse o procedimento de verificação da repercussão geral.

Assim, ficou então a proposta com a seguinte redação: "No recurso extraordinário, o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros".

No Senado, não ocorreu qualquer modificação na proposta oriunda da Câmara, de tal forma que, aprovado o texto pelo plenário, veio a ser promulgado em 08.12.2004 (EC 45 – Reforma do Judiciário) [33].

Cumpre observar que a criação de filtros é uma tendência do constitucionalismo contemporâneo, tanto que o Relatório-Geral do Dep. ALOYSIO NUNES FERREIRA (31.05.1999) faz referência ao modelo argentino.

Em última análise, há de ser considerado que o mencionado filtro tem uma natureza política, como entende JOSÉ MANOEL DE ARRUDA ALVIM, aqui trazido em citação de ATHOS GUSMÃO [34]: "A respeito do tema escreveu José Manoel de Arruda Alvim que a expressão ‘repercussão geral’ significa praticamente a colocação de um filtro, ou um divisor de águas em relação ao cabimento do recurso extraordinário, deixando de merecer julgamento os recursos não dotados deste atributo, ainda que formal e substancialmente pudessem ser aptos à admissão e ao julgamento. Refere o eminente processualista, com a costumeira propriedade, que o novo instituto se coloca como filtro de caráter político prévio à admissão, propriamente dita, do recurso extraordinário, e assim deverá permitir a admissão de recursos com a flexibilidade desejável, descartando aqueles recursos ‘que não mais tenham razão alguma de ser, senão uma insistência socialmente não desejável do recorrente, permeada por um animus lotérico".

Por esta razão, observou LUIZ FUX [35] que "o modelo no qual se inspirou o nosso legislador não é o europeu, como em geral verifica-se nos institutos processuais. Nesse particular, a nossa fonte é norte-americana e precisamente o judiciary act de 1789, que instituiu a competência da Corte Suprema para apreciar recursos de decisões ‘locais’ que violassem a ordem central".

2.1. A repercussão geral no Recurso Extraordinário prevista no art. 102 § 3º da EC 45/2004 da CF e a Lei nº 11.418/06

Feitas estas considerações de natureza histórica, que vieram acompanhadas por comentários que trouxemos à colação sobre institutos que nos parecem precedentes do instituto da Repercussão Geral, passemos à sua análise, tudo com base no sistema constitucional vigente, ou seja, a EC 45/2004, art. 543-A e 543-B (acrescentados ao CPC pela Lei nº 11.418/2006), Regimento Interno do STF, na redação dada pelas Emendas Regimentais nºs 21, 22, 23 e 24 bem como pela Portaria nº 177 (26.11.2007).

Na redação dada pela EC 45/2004, cremos que o ponto capital sobre o Recurso Extraordinário, diz respeito, exatamente, ao conceito de repercussão geral que a referida EC conferiu ao Congresso Nacional a incumbência de conceituá-la através de lei.

Para tal, foi aprovada a Lei nº 11.418 (19.12.2006) que acrescentou à Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil, os arts. 543-A e 543-B.

Assim, de acordo com o caput do art. 543-A, "O Supremo Tribunal Federal, em decisão irrecorrível, não conhecerá do recurso extraordinário, quando a questão constitucional nele versada não oferecer repercussão geral, nos termos deste artigo".

Logo em seguida, no § 1º do mesmo artigo se lê:

"Para efeito da repercussão geral, será considerada a existência, ou não, de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa".

Observa-se que não basta ser matéria constitucional, sendo necessário que esta matéria traga uma abrangência larga, atingindo interesses que vão além daqueles que pertencem às partes da relação processual. Pode-se mesmo dizer que há uma necessidade de que tais matérias sejam consideradas levando-se em conta os princípios constitucionais que se referem diretamente ao todo social, como, por exemplo, vida, liberdade, patrimônio, saúde. Isto é o que, exatamente, o que se deve ler no art. 543-A § 1º, em sua parte final: "questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa".

Por sua vez, na Emenda Regimental nº 21, de 30 de abril de 2007 que alterou "a redação dos artigos 13, inciso V, alínea c, 21, parágrafo 1º, 322, 323, 324, 325, 326, 327, 328 e 329, e revoga o disposto no parágrafo 5º do art. 321, todos do Regimento interno".

Assim, prescreve a nova redação do art. 322 (RISTF):

"O Tribunal recusará recurso extraordinário cuja questão constitucional não oferecer repercussão geral, nos termos deste capítulo.

Parágrafo único – Para efeito da repercussão geral, será considerada a existência, ou não, de questões que, relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, ultrapassem os interesses subjetivos das partes" [36].

Neste emaranhado legislativo, um ponto no conceito de repercussão geral há de ser destacado, ou seja, em princípio, todo Recurso Extraordinário tem a ‘presunção’ da repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, (daí não caber ao Tribunal a quo discuti-la), competindo apenas ao STF examinar a admissão do recurso, que somente poderá "recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros", de acordo com o art. 102 § 3º da CF.

Em artigo intitulado Argüição de (Ir)relevância na Reforma do Poder Judiciário [37], JOSÉ LEVI MELLO DO AMARAL JUNIOR, destacando a expressão "nos termos da lei" contida no atual art. 102 § 3º, observa que "o Regimento Interno do STF – que tinha sob a Constituição de 1967, força de lei – disciplinou a argüição de relevância em seus arts. 327 a 329. Tais dispositivos não estão mais vigentes. Isso porque o texto constitucional originário de 1988 não previa a argüição de relevância (o Regimento Interno do STF não foi, portanto, recepcionado no particular) e porque os arts. 327 a 329 não foram expressamente repristinados (revigorados) pela Emenda nº 45, de 2004.

Ainda assim, o Regimento Interno do STF ajuda a compreender o instituto em seu formato atual. Ademais, será útil na elaboração da lei reclamada pelo novo § 3º do art. 102 da Constituição de 1988".

E prossegue afirmando que [38] "o aspecto mais curioso da atual argüição de relevância é que ela foi concebida do avesso. Com efeito, trata-se de uma argüição de ‘irrelevância’. Em princípio, parece, presume-se a relevância. A irrelevância somente será reconhecida se neste sentido se manifestarem dois terços dos ministros (são necessários, no mínimo, oito votos para a configuração da irrelevância).

Vale destacar: ainda que o recorrente tenha o dever de ‘demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, o STF somente não conhecerá do recurso se acaso dois terços dos seus ministros julgar não haver relevância na matéria. Há, assim, uma presunção de relevância em favor do recorrente".

Deste quorum de 8 Ministros discorda SÉRGIO BERMUDES [39], ao doutrinar que "tal como manifestada no parágrafo, presume-se a repercussão geral, tanto assim que se exige quorum qualificado para negá-la. Em virtude dessa presunção, o juízo de admissibilidade de que cuida o parágrafo dependerá da manifestação de dois terços dos membros do tribunal. Entenda-se por tribunal, não o plenário da Corte, mas o órgão competente para o julgamento do recurso (no STF, uma das duas turmas, onde o terço, por aproximação, será de três ministros, ressalvados os casos de remessa de recurso ao plenário). Se este é o órgão competente para julgar o recurso, será dele a competência para o juízo de admissibilidade. Note-se que o § 3º não usou da linguagem do art. 97, onde a referência ao órgão especial leva à conclusão de que a declaração de inconstitucionalidade dependerá do voto da maioria dos membros da Corte, se nela não houver órgão especial" [40].

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Apesar de alguns aspectos positivos da medida, sobretudo face aos recursos abusivos, principalmente, da Administração Pública, em essência, parece-nos temerária a consagração de mais um conceito indeterminado no texto constitucional, a saber, "repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso".

De tudo o que foi dito, algumas questões devem ser resolvidas pela lei a que se refere o comando constitucional, a saber:

a) - O que será entendido por "demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso"?

b) - Será um critério meramente quantitativo (leia-se matemático e estatístico) que irá definir a repercussão geral?

Esta repercussão geral, a exemplo do que ocorre, por exemplo, com a questão do prequestionamento terá, obrigatoriamente, de estar explícita?

De todas as questões, a última, versando sobre a verdadeira compreensão do requisito prequestionamento é matéria que merece algumas palavras a seu respeito.

Em livro intitulado Omissão Judicial e Embargos de Declaração, TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER [41] tratando o tema, inclusive com valiosas lições de Direito Estrangeiro, escreve que "a noção de prequestionamento, como se sabe e como o próprio vocábulo sugere, nasceu como sendo fenômeno que dizia respeito à atividade das partes. As partes é que ‘questionam’, discutem ao longo do processo sobre a questão federal ou constitucional.

A importância desta atividade das partes sempre foi uma constante na evolução do instituto.

A exemplo do que ocorria com o writ of error do direito americano, a Constituição Federal de 1891 mencionava que o recurso extraordinário seria cabível quando se questionasse sobre a validade ou incidência de tratados ou leis federais, e a decisão dos tribunais dos Estados fosse contra elas. Incorporou, assim, o texto constitucional, concepção corrente no direito norte-americano e no direito argentino, embora nesses países o recurso extraordinário não constasse nas respectivas Constituições.

No que pertine ao writ of error do direito norte-americano – prossegue WAMBIER -, a norma que o instituiu era expressa no sentido de que a questão federal deveria ser inserida oportunamente e mantida até o julgamento. Kenneth F. Ripple ensina que, para que uma questão federal possa ser revista na Suprema Corte dos Estados Unidos, deve ser ajuizada de modo apropriado e assim mantida. Tal exigência existe, segundo o autor citado, para assegurar que a Corte do Estado tenha a plena oportunidade de resolver o caso dentro do seu território. Semelhantemente escreveu Cooley, autor segundo o qual, para a admissão do writ of error, ‘força é conste nos autos, ou expressamente ou por manifestação clara e necessária, que qualquer uma das questões enumeradas tenha surgido no Tribunal do Estado e aí foi rejeitada’. Consoante noticiam Robert L. Stern, Eugene Greesman e Stephen M. Shapiro, a Suprema Corte nunca se desviou dessa interpretação, a não ser para estabelecer a presunção de que a questão federal terá sido introduzida de modo adequado se a Corte Estadual a tiver resolvido.

Vê-se, pois, que, no direito norte-americano, a atividade realizada pelas partes, perante a Corte local, é de suma relevância, devendo ser realizada de modo a proporcionar à referida Corte oportunidade para se manifestar acerca da federal question" – conclui TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER em relação ao modelo americano [42][43], para de imediato referir-se ao direito argentino, com relação ao recurso extraordinário.

Diz-nos: "Também naquele país a lei que instituiu o recurso refere-se expressamente à existência da questão federal controvertida, em regra decorrente de controvérsia surgida entre as parte. Alude-se, no caso, ao ‘planteamiento del caso constitucional o federal´, figura correspondente ao prequestionamento realizado pelas partes, no direito brasileiro. Consoante expõe Rafael Bielsa, ‘el planteamiento del caso constitucional (o federal) puede ser muy anterior a la interposición del recurso. El planteamento debe hacerse en cuanto surge la cuestión que dará la matéria prima del recurso. Lo relativo ao planteamiento no ha sido matéria de ley, sino de jurisprudência. Pero no por falta de base legal cierta deja de tener fundamento. Al contrario, el plateamiento en el litígio hace posible la controvérsia sobre el punto, sino la decisión que evita el recurso’. Mais adiante, o autor argentino volta a ferir o tema: "Es condición esencial, no solo en el recurso extraordinário, sino en toda actividad jurisdicional del Poder Judicial (...), que haya contienda y, en consecuencia, decisión sobre la demanda´. Nada impede, contudo, ainda de acordo com Rafael Bielsa, que a questão federal ou constitucional surja na decisão recorrida, independentemente de provocação das partes. Desse modo, para a doutrina argentina, é requisito para o cabimento do recurso extraordinário a existência de uma questão federal ou constitucional, introduzida oportunamente perante as instâncias inferiores, questão esta que deverá ter sido decidida pela instância recorrida" [44].

Referindo-se aos Recursos Extraordinário e Especial no sistema nacional, escreve ALEXANDRE FREITAS CÂMARA [45] que "estão eles sujeitos a um requisito específico de admissibilidade, que é o prequestionamento (da questão federal, no caso do recurso especial; da questão constitucional, no caso do recurso extraordinário). A ausência deste requisito (como, aliás, a ausência de qualquer requisito de admissibilidade dos recursos), levará a um juízo negativo de admissibilidade, impedindo-se, assim, a realização do juízo de mérito.

Por prequestionamento quer-se significar a exigência de que a decisão recorrida tenha ventilado a questão (federal ou constitucional) que será objeto de apreciação no recurso especial ou extraordinário. Em outros termos, não se admite que, no recurso especial ou extraordinário, se ventile questão inédita, a qual não tenha sido apreciada pelo órgão a quo.

Este requisito de admissibilidade decorre do próprio texto constitucional, que admitem o recurso extraordinário e o recurso especial apenas contra "causas decididas". Assim sendo, é preciso que a matéria objeto do recurso haja sido suscitada e decidida pelo órgão a quo, para que possa ser apreciada no recurso excepcional. Omissa a decisão contra a qual se queira opor o recurso excepcional, faz-se necessária a interposição de embargos de declaração, com o fim de prequestionar a questão federal ou constitucional.

Deve, pois, haver prequestionamento, para que o recurso especial e o extraordinário possam ser admitidos".

Tratando de Embargos de Declaração e Prequestionamento [46], ROBERTO LUIS LUCHI DEMO faz interessantes comentários, como se vê: "Prequestionamento é a apreciação da matéria federal ou constitucional que será questionada no recurso especial ou extraordinário. Por isso, a priori, ocorre tão-somente em acórdão (decisão de Tribunal).

Assim, é descabida a interposição de embargos de declaração em face de sentença (decisão de primeira instância), ao fundamento de prequestionamento, como se tem visto bastante na praxe forense.

(...) Entretanto e em face do art. 515, do CPC, que devolve ao Tribunal o conhecimento pleno da matéria, mesmo que a sentença analise todas as questões que as partes desejam ‘prequestionadas’ (e para isto interponham embargos de declaração) e o Tribunal eventualmente não analise uma dessas questões, deixou de haver o prequestionamento com relação a essa questão mesma, em face do efeito substitutivo do acórdão (CPC, art. 512: o acórdão substitui a sentença, mesmo que a ‘mantenha’’ ou a ‘confirme’).

(...) Sendo o âmbito de devolutividade nos recursos extraordinários limitado ao que pleiteado no recurso interposto, somente se pode analisar a insatisfação surgida, e da maneira como surgida, na decisão impugnada: se não houve análise naquela instância, não se devolve esta análise, pela via do recurso extraordinário, ao Tribunal ad quem e está-se diante da ausência de prequestionamento, entendido como ‘seqüência do debate da causa’ e como condição de admissibilidade do recurso mesmo.

Ainda, na via extraordinária, restam preclusas todas as matérias decididas nas instâncias ordinárias, a respeito das quais não houve impugnação específica da parte (incluindo as chamadas matérias de ordem pública). Isso porque o âmbito de devolutividade é restrito, nos recursos extraordinários, ao que pleiteado pelo recorrente, excepcionando-se tão-só a possibilidade de o Tribunal manifestar-se de ofício sobre a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo" [47].

MIRIAM CRISTINA GENEROSO RIBEIRO CRISPIN (Recurso Especial e Recurso Extraordinário. Questões pontuais sobre a admissibilidade e procedibilidade no Direito Processual Civil [48]) tratando do requisito Prequestionamento reconhece ser "um dos pontos mais delicados a ser discutido em sede de recurso extraordinário e recurso especial.

Conceitualmente, diz-se que prequestionamento é na concepção de Garcia Medina ‘a atividade postulatória das partes, decorrente do princípio dispositivo, tendente a provocar a manifestação do órgão julgador (juiz ou Tribunal) em virtude da qual fica o órgão vinculado, devendo manifestar-se sobre a questão prequestionada’".

E continua MIRIAM CRISTINA: "Do ponto de vista etimológico, prequestionamento significa debate ou discussão anterior, voltado para a esfera da admissibilidade recursal extrema, assume uma dúplice acepção, divisão esta amplamente adotada em sede doutrinária: a) prequestionamento como manifestação expressa do Tribunal recorrido acerca de determinado tema; b) prequestionamento como debate anterior à decisão recorrida, acerca do tema, hipótese em que o mesmo é muitas vezes considerado como prévio debate a envolver o tema de direito federal ou constitucional, em consonância com a manifestação expressa do Tribunal a respeito.

Nessa linha de raciocínio – prossegue -, adota-se a idéia de Mantovanni Colares Cavalcante, para quem ‘o prequestionamento representa um ato complexo, pois exige: I) provocação da parte ou surgimento espontâneo da questão pelo julgador, II) enfrentamento, pelo Tribunal, de modo espontâneo ou por provocação, da matéria constitucional e/ou federal e III) vinculação entre a matéria constitucional e/ou federal com a discussão jurídica versada na causa.

Ou seja, o prequestionamento não é ato que se concretiza somente com a provocação da parte, exige-se a abordagem da matéria pelas instâncias ordinárias, seja explicitamente (indicando-se o texto constitucional ou federal e afirmando-se explicitamente estar sendo atendidos os mencionados comandos) ou implicitamente (não há indicação expressa de norma constitucional ou federal, mas do acórdão se extrai de forma inequívoca que a abordagem do julgado diz respeito à determinada norma constitucional ou federal)’" – conclui MIRIAM CRISTINA.

Em monografia intitulada Embargos de Declaração [49], LUIS GUILHERME AIDAR BONDIOLI afirma que "o prequestionamento consubstancia-se na existência de prévios debates nas instâncias ordinárias a respeito da matéria constitucional ou legal que se pretende discutir nos tribunais superiores. A idéia de anteriores discussões acerca dos temas que se tenciona debater nos órgãos jurisdicionais de superposição está fortemente relacionada com os escopos dos recursos especial e extraordinário" [50].

Em seguida, depois de tecer algumas considerações históricas, escreve que "a caracterização do prequestionamento ainda suscita bastante controvérsia nos dias de hoje. Verificam-se ao menos três correntes a respeito do assunto, bem como diferenciados graus de exigências dos tribunais para dar pela presença do prequestionamento. Quanto às correntes, a primeira delas dimensiona o prequestionamento como a existência de prévio pronunciamento judicial acerca da matéria que se tenciona discutir nas instâncias superiores. A segunda delas vincula-o à simples argüição da questão federal ou constitucional pela parte antes do julgamento recorrido. E a terceira exige ambas as coisas: a prévia ventilação do tema pela parte e a decisão do tribunal a quo a seu respeito. Já os anunciados graus de exigência relacionam-se com as conhecidas expressões prequestionamento explícito, prequestionamento implícito e prequestionamento ficto. A primeira delas impõe que no acórdão recorrido conste expressa referência ao dispositivo legal ou constitucional tido por ofendido, bem como específica análise desse dispositivo. A segunda delas contenta-se com o ser dessumível do aresto impugnado a questão ou tese jurídica relacionada com a norma que se diz violada, mesmo que inexista na decisão recorrida menção expressa ao artigo de lei ou da Constituição. E a última delas orienta-se pela suficiência da diligência da parte no debate da matéria: se a parte fez tudo o que estava ao seu alcance para obter um pronunciamento do tribunal a quo a respeito de certo tema, tendo, inclusive, lançado mão de embargos declaratórios para tal fim, tem-se por preenchido o prequestionamento, pouco importando que a corte ordinária tenha indevidamente permanecido silente, mesmo quando provocada a sair da inércia no julgamento dos embargos de declaração" [51].

Vale lembrar, diante do que foi dito sobre o tema, que a Jurisprudência do STF, consagrava, sem discordância, a necessidade de um prequestionamento claro e objetivo, explícito portanto. Senão vejamos:

"Não há prequestionamento implícito, ainda quando se trate de questão constitucional" (STF, RTJ, 125/1.368).

"O prequestionamento não pode estar subentendido ou implícito. Deve, sempre, ser expresso e apresentado no momento da apelação, das contra-razões, do recurso adesivo, enfim, do recurso para a Segunda Instância" (STJ, RE nº 101.562-PR; AC nº 106.272MG, 2a. Turma do TRF. DOU 12.6.1986).

O entendimento do acórdão citado, faz pouco tempo, era pacífico, muito embora passível de críticas por parte de doutrinadores. Pessoalmente, sempre entendemos, inclusive como advogado militante, que a matéria trazida à inicial ou à contestação, sendo de natureza constitucional, já significava o prequestionamento.

Em outras palavras: levando-se em conta a natureza dos recursos extraordinário e especial, não se deveria impedir sua apreciação por um Tribunal Superior (STF e/ou STJ) pela ausência de um simples requisito formal, que poderia ser corrigido por Embargos de Declaração, cabíveis diante do silêncio do juízo a quo.

Vale insistir que ditos Embargos visam fazer com que o acórdão do Tribunal enfrente de forma expressa a matéria constitucional que se menciona em vários instantes e que, por isto mesmo, teria de ser resolvido até ex-officio, preliminarmente. Como o julgador não o fez, a parte se vê obrigada a renovar o prequestionamento (repita-se: a matéria constitucional já vinha sendo discutida), visto que, e como foi dito, esta era a única posição do STF.

Mais uma vez, damos a palavra a ATHOS GUSMÃO CARNEIRO quando a respeito do requisito do prequestionamento, ensina: "Temos, pois, uma interessante questão relativa ao próprio conceito de prequestionamento: para que uma determinada questão federal seja considerada como prequestionada, é necessário que haja ela sido ‘suscitada’ pela parte, ou basta tenha sido ‘decidida’ no acórdão recorrível?

Sustentam alguns autores que ‘o prequestionamento resulta da atividade anterior das partes perante a instância ordinária, apta a provocar a manifestação do órgão julgador acerca da questão constitucional ou federal’ (José Miguel Garcia Medina, art. dout. na colet. Aspectos Polêmicos e Atuais..., RT, 1997, pp. 305-306); assim, não haveria o chamado prequestionamento ‘implícito’ quando o tribunal aprecia de ofício matéria de ordem pública, bem como outras omitidas na sentença (CPC, arts. 267, § 3º; 515, §§ 1º e 2º).

Todavia – prossegue -, parece-nos correta a posição de Arruda Alvim, de que não se deve confundir prequestionamento com ‘postulação pela parte’, a respeito de uma dada questão federal: a questão federal considera-se prequestionada quando decidida no acórdão, haja ou não sido, expressa ou implicitamente suscitada pelo litigante. O prefixo ‘pré’ significa anterioridade com relação ao momento processual em que a parte manifesta o recurso extraordinário ou especial, e não ao momento em que prolatada a decisão recorrível". [52]

Prosseguindo, e depois de fazer considerações legislativas e doutrinárias sobre o prequestionamento implícito, observa ATHOS GUSMÃO que "difícil, no entanto, é conceituar com precisão o que se deva entender por prequestionamento implícito, e esta dificuldade indica ao advogado, em tais casos, a alta conveniência na interposição de embargos de declaração" [53].

Vale lembrar que a Ministra ELLEN GRACIE, nos autos do AI 375011 AgR/RS [54], mesmo reconhecendo a ausência do prequestionamento, afirmou: "estou, entretanto, mais inclinada a valorizar, preponderantemente, as manifestações do Tribunal, especialmente as resultantes de sua competência mais nobre – a de intérprete último da Constituição Federal".

Mais adiante, afirma: "Com efeito, o Supremo Tribunal Federal, em recentes julgamentos, vem dando mostras de que o papel do recurso extraordinário na jurisdição constitucional está em processo de redefinição, de modo a conferir maior efetividade às decisões".

Finalizando, se refere a uma flexibilização do prequestionamento, como se vê: "nos processos cujo tema de fundo foi definido pela composição plenária desta Suprema Corte, com o fim de impedir a adoção de soluções diferentes em relação à decisão colegiada, é preciso valorizar a última palavra – em questões de direito – proferida por esta Casa" – conclui ELLEN GRACIE.

Sem dúvida alguma, a corrente liderada pela Ministra (embora não majoritariamente aceita) dá o verdadeiro valor de "Guardião da Constituição" atribuído ao STF, colocando-o acima de mera questão formal, principalmente, quando várias posições existem quanto à amplitude do conceito de prequestionamento, tal como analisamos acima [55].

Retomando o que dissemos acima de forma muito rápida: uma realidade nos parece incontestável, ou seja, se a Inicial da Ação está fundada em matéria constitucional, ou a contestação (ou informações no Mandado de Segurança) a traz ao cenário do debate, não entendemos como afirmar-se que o prequestionamento não exista. Nestes casos, em nosso entender, desde que a fundamentação das partes tem uma natureza constitucional, a matéria constitucional fica prequestionada, o que dispensaria os Embargos de Declaração como forma de prequestionamento, sobretudo porque, nestes casos (e a prática nos demonstra) a decisão nos embargos é sempre a mesma, ou seja, afirma-se que "a matéria já foi objeto de análise".

Ora, a tese da Ministra ELLEN GRACIE, valoriza o exame do mérito que lhe merece maior importância que a simples forma, evitando-se que o STF fique ao longe do debate, por mero rigorismo formal, em detrimento da eficácia da prestação jurisdicional.

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Sobre o autor
Ivo Dantas

Professor Titular da Faculdade de Direito do Recife - UFPE. Doutor em Direito Constitucional - UFMG. Livre Docente em Direito Constitucional - UERJ, e em Teoria do Estado - UFPE. Membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas. Membro da Academia Brasileira de Ciências Morais e Políticas. Presidente do Instituto Pernambucano de Direito Comparado. Presidente da Academia Pernambucana de Ciências Morais e Políticas. Membro do Instituto IberoAmericano de Derecho Constitucional México). Membro do Consejo Asesor del Anuario IberoAmericano de Justicia Constitucional, Centro de Estudios Políticos y Constitucionales (CEPC), Madrid. Membro da Academia Pernambucana de Letras Jurídicas. Fundador da Associação Brasileira dos Constitucionalistas Democráticos. Membro efetivo do Instituto dos Advogados de Pernambuco. Membro do Instituto Pimenta Bueno - Associação Brasileira dos Constitucionalistas. Professor orientador visitante do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde, Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Juiz Federal do Trabalho (aposentado). Vice-Presidente da Comissão de Precatórios Judiciais da OAB, Secção de Pernambuco. Advogado e Parecerista.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DANTAS, Ivo. Da repercussão geral como pressuposto específico e como filtro ou barreira de qualificação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2200, 10 jul. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13128. Acesso em: 26 abr. 2024.

Mais informações

Este texto é parte do capítulo intitulado "Do Incidente de Inconstitucionalidade no Brasil: Teoria Geral" a constar do livro "Direito Processual Constitucional" (Curitiba, Juruá, 2009, no prelo).

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