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Interpretação constitucional no caso da colisão de direitos fundamentais.

Liberdade de expressão e não-discriminação

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CAPÍTULO IV – Liberdade de expressão versus Direito à não-discriminação

Neste capítulo, será feita uma análise de caso concreto em julgamento proferido pela suprema corte brasileira. Trata-se de uma análise jurídica na qual serão postos argumentos referentes à colisão de preceitos fundamentais da ordem constitucional.

Os métodos de interpretação constitucional utilizados no julgamento estabelecido pelo Supremo Tribunal Federal servirão de base para a conclusão do presente trabalho do ponto de vista da importância à complementação de uma nova teoria hermenêutica constitucional.

Diante do problema hermenêutico criado pela constitucionalização dos direitos fundamentais – e porque a positivação desses direitos tinha que se fazer sob estruturas normativo-materiais necessariamente abertos e indeterminados, avessos, portanto, aos procedimentos lógico-subsuntivos da aplicação das leis em geral –, cuidaram os estudiosos de formular uma teoria hermenêutica que se poderia chamar principiologicamente adequada, na medida em que responde à necessidade de interpretar e aplicar princípios.

O caso relativo ao habeas-corpus em questão refere-se à dicotomia existente em aplicações de direitos e interesses constitucionais considerados fundamentais.

Há certo liame paradoxal em relação à proteção da liberdade de expressão, enquanto direito fundamental, e o direito à não-discriminação.

O acórdão versa sobre um caso em que tenha ocorrido o crime de racismo, no qual o escritor de origem germânica fazia menções desabonadoras à comunidade judaica, assim como todos aqueles que tenham alguma afinidade por essa cultura ou religião.

Inicialmente, serão feitas algumas considerações acerca dos direitos fundamentais com o objetivo de clarear os métodos interpretativos semeados pelos ministros do Supremo, e qual resultado alcançaria caso fosse utilizado métodos tradicionais de interpretação constitucional.

As considerações históricas dos direitos fundamentais, bem como as características hodiernas desses direitos serão primordiais para o entendimento e conclusão da análise do HC 82424-2, RS – D.J. 19/03/2004.

4.2 Algumas considerações históricas dos direitos fundamentais

O entendimento de todo direito positivo [100] dos direitos e liberdades fundamentais implica o conhecimento do processo histórico de seu funcionamento, embora seja reconhecível que será feita uma abordagem mais geral, para que o estudo seja concentrado na questão da interpretação dos direitos fundamentais.

A revolução francesa culminou com a declaração dos direitos do homem e do cidadão no direito positivo francês. A revolução marcou o apogeu da evolução do pensamento [101].

A declaração dos direitos do homem e do cidadão teve no ano de 1789, na França, implicitamente, fontes de ordem judaico-cristã [102], apesar de essa afirmação ser colocada explicitamente em contraposição a essa basificacão doutrinária [103]. Essa base é, destarte, apenas intuitiva ao pensamento dos franceses do século XVIII.

Ressalta-se que a contribuição da filosofia e da política e essencialmente a principal fonte da Declaração dos direitos do homem e do cidadão, pois à época tratou-se de maneira significativa das escolas do direito natural, do contrato social, dos fisiocratas e também da separação dos poderes. [104]

A partir do pensamento oriundo dessa data histórica, surgiram os principais pilares da Declaração dos direitos do homem e do cidadão que são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão [105], enquanto decorrentes dos direitos naturais.

A declaração tem três características universais: o universalismo, o individualismo e a abstração [106].

Segundo Afonso da SILVA, "pelo que se vê, não há uma inspiração das declarações de direitos", especialmente pela definição de sua origem mais precisa, bem como não há como negar que "houve reivindicações e lutas para conquistar os direitos nela consubstanciados. E quando as condições materiais da sociedade propiciaram, elas surgiram, conjugando-se, pois, condições objetivas e subjetivas para sua formulação". [107]

Essas considerações históricas servem para o revestimento jurídico necessário da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, tendo em vista que ausentes tais ocorrências estar-se-ia minorando o entendimento de todo o arcabouço interpretativo.

Assim, feitas as considerações, far-se-á a análise de algumas características gerais dos direitos fundamentais.

4.3.Características gerais dos direitos fundamentais

É necessário ressalvar que a classificação dos Direitos fundamentais proposta nesse trabalho é de cunho meramente definidor, ou seja, não haverá profundeza no tema em análise. Serve, portanto, para mediar a necessidade de interferir na interpretação dos direitos fundamentais de natureza constitucional. Assim, a classificação apresentada será para embasar o modelo que será debatido.

Segundo MENDES, na sua concepção tradicional, "os direitos fundamentais são direitos de defesa, destinados a proteger determinadas posições subjetivas contra a intervenção do Poder Público". [108]

Com esse enfoque, chega à conclusão de que os direitos fundamentais contêm disposição negativa do poder público, obrigando-o, dessa maneira, a respeitar o núcleo constitucional. Portanto, fazendo-se uma analogia com o atual direito privado, seria obrigação de não-fazer.

Entretanto, o conceito mais adequado em relação aos direitos fundamentais consagra direito a prestações de índole positiva, ou seja, há momentos em que o Estado estará obrigado a satisfazer as necessidades subjetivas de seu povo, com atitudes positivas, em razão da insuficiência em garantir os direitos fundamentais apenas com a não-intervenção do Estado em relação ao indivíduo. Dessa forma, reconhece-se a existência de direitos fundamentais positivos para assegurar a eficácia desses direitos. [109]

A possibilidade de o Estado vir a ser obrigado a criar pressupostos fáticos ao exercício efetivo dos direitos constitucionalmente assegurados reflete a relação indivíduo-estado como a maneira mais eficaz, em alguns, de se assegurar determinadas hipóteses fáticas. Os direitos fundamentais de caráter positivos têm como característica voltada muito mais para a conformação do futuro do que a preservação do atual estado do indivíduo. [110]

Direitos fundamentais do homem são situações jurídicas, objetivas e subjetivas, definidas no direito positivo, em prol da dignidade, igualdade e liberdade da pessoa humana. [111]

O respeito ao núcleo essencial dos direitos fundamentais é um limite que a doutrina e a jurisprudência sempre impõem à ponderação de interesses. Considera-se que existe um conteúdo mínimo destes direitos, que não pode ser amputado, seja pelo legislador, seja pelo aplicador do Direito. Assim, o núcleo essencial traduz o "limite dos limites", ao demarcar um território intangível, protegido de qualquer espécie de restrição. [112]

Sua interpretação tem o condão necessário de se diferenciar das demais normas constitucionais, face à sua especificação em relação ao assunto.

A interpretação constitucional dos direitos fundamentais deve passar por diversas diferenciações no que toca à sua técnica hermenêutica, apesar de reconhecer-se que as normas de cunho constitucional têm suas especificidades decorrentes de sua natureza jurídico-política.

É inquestionável que o exercício comparativo das principais diferenças e as possíveis semelhanças contemplam modos e métodos diversificados. Ademais, a orientação em relação aos direitos fundamentais é, em alguns casos, conflituosa com o conteúdo normativo positivado.

Daí a necessidade de se fazer uma análise acurada do HC 82424-2, RS, visto que as características do caso concreto implicam numa eventual inaplicabilidade de direito fundamental.

4.4.Análise do HC 82424-2, RS – D.J. 19/03/2004.

O presente caso versa acerca de um HC impetrado por Siegfried Ellwanger que escreveu, editou, publicou e comercializou livros fazendo idéias supostamente preconceituosas e discriminatórias contra a comunidade judaica, conforme decisão do Supremo Tribunal Federal. [113]

O crime ora cometido por ele seria o art. 20, caput, da Lei 7.716/89 que preceitua:

"Praticar, induzir ou incitar, pelos meios de comunicação social ou por publicação de qualquer natureza, a discriminação ou preconceito de raça, religião, etnia ou procedência nacional. Pena reclusão de dois a cinco anos".

Para tal crime, o paciente invocou o preceito constitucional da liberdade de expressão, como forma de isenção do crime de discriminação racial. Caso fosse dado provimento a tal entendimento, seria considerado inconstitucional o crime previsto na lei supramencionada.

Para atribuir constitucionalidade àquela norma, invocou-se como fundamento constitucional o mandamento configurado no art. 5º, XLII, da Constituição Federal, que aplica a cláusula de imprescritibilidade e inafiançabilidade ao crime de racismo.

Nesta análise, não se adentrará na questão meritória da existência ou não do crime de racismo no caso concreto, mas, sim, na discussão jurídica acerca da proteção do direito referente à liberdade de expressão ou à dignidade da pessoa humana e suas conseqüências.

A investigação será em relação ao método de interpretação mais adequada para a conclusão do julgamento, tendo em vista aqueles métodos estudados nos capítulos anteriores, bem às peculiaridades constitucionais relevantes.

É sabido que, conforme estudado a pouco, que o núcleo essencial da Constituição não está sujeito à abolição, seja por parte da administração pública, do poder judiciário ou do poder legislativo [114]. Portanto, o intérprete da norma constitucional também não deverá fazer com que esse núcleo seja abolido mediante a simples interpretação do desiderato constitucional.

O presente caso, portanto, ao discutir referida matéria, apresenta extrema relevância devido à necessidade indissociável de se relativizar algum direito fundamental. Portanto, haverá inaplicabilidade de algum instituto dessa natureza jurídica em prol de outro de semelhante hierarquia. Haverá inevitavelmente hierarquização das normas de cunho fundamental.

A dicotomia refere-se à antítese relativa, nesse caso, ao direito à liberdade de expressão e à dignidade da pessoa, entendido este como norma fundante do direito à não-discriminação.

As inferências postadas nos tópicos anteriores têm a finalidade de demonstrar a dificuldade que há para a conquista de um direito fundamental e para defini-lo enquanto norma prevalecente.

Inicialmente, será adotado o método tópico como modelo interpretativo dos preceitos constitucionais.

Caso seja aplicado o método tópico de interpretação constitucional, para o presente fato, a conclusão estaria sujeita a uma infinidade de opções, conforme será demonstrado.

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Sabendo que o método tópico tem como premissa a busca incessante de respostas ao problema apresentado. Haverá, dessa maneira, pluralidade de opiniões nas quais serão levadas em consideração, a saber: direito comparado, investigação de critérios histórico-culturais, na investigação dos valores fundamentais do ordenamento e no direito natural.

Surge, então, a primeira pergunta: Quem fará a pesquisa de opinião para saber qual a opinião dessas tendências representativas? A decisão sobre a interpretação que melhor convenha vai ser de quem? Partir do caso concreto, para, então, pensar na norma positivada irá resolver a atual questão?

Essas perguntas fazem com que a confiança nesse instituto interpretativo seja sensivelmente reduzida.

Ademais, a grande estrutura midiática, detentora do poderio da informação, poderia participar como intérprete da melhor solução para esse caso concreto? Sem dúvida, toda a imprensa trabalharia pela defesa da liberdade de expressão em detrimento da ocorrência do crime de racismo.

Portanto, o método tópico, por enquanto, não será o método utilizado para a análise do caso concreto, devido a seu excessivo subjetivismo e a inobservância da unidade da Constituição.

Em segundo lugar, caso seja aplicado o método científico-espiritual proposto por SMEND, ter-se-á a concepção de que a interpretação constitucional do caso em análise terá como ponto de partida a captação do "espírito reinante", em consonância com a apreciação do todo, com a "concretude" da vida, com uma feição mais política do que jurídica. [115]

Entretanto, do ponto de vista procedimental, o método de SMEND não encontra a sensibilidade necessária para o caso, pois esse modelo pressupõe a integração da norma com a realidade social que circunda com a captação do "momento atual" em que se encontra determinada sociedade. Dessa maneira, caso na atualidade o direito à liberdade de expressão esteja em absoluta erupção aprovativa, o caso teria como conseqüência natural a inexistência do crime de racismo por inconstitucionalidade. Todavia, se as questões discriminatórias estejam sendo debatidas, em razão de algum fato da vida social, a captação do "espírito reinante" poderia acarretar numa eventual criminalização do fato.

Portanto, não há, a meu sentir, aplicabilidade do método científico-espiritual para a análise do caso, eis que seus fundamentos são extremamente imprecisos e indeterminados, hipótese em que poderá submeter a decisão sob a ótica política em detrimento do conteúdo jurídico aplicável.

Os métodos tradicionais caso sejam aplicados, por si só, ao caso submetido à análise, acarretariam na problemática de não se reconhecer as singularidades do direito constitucional, pois, assim como afirma CANOTILHO, "O método hermenêutico clássico parte da premissa de que a Constituição é, para todos os efeitos, uma lei". [116] Assim, reconhecendo as especificidades da Constituição e de seus preceitos, defende-se a inaplicabilidade dos preceitos, exclusivamente, tradicionais.

O quarto método utilizado será o efeito concretizador da norma. Este método parte da norma para o caso concreto, ou seja, do conteúdo constitucional para a efetiva aplicação no caso concreto.

Portanto, levam-se em consideração as implicações da norma constitucional mediante construção jurídica. A norma não se confunde nesse caso com o seu próprio texto escrito, mas, sim, a partir da concretização da norma.

No método hermenêutico-concretizador, a análise desse caso reflete que a liberdade de expressão, considerado indubitavelmente norma fundamental, deve ser interpretada a partir da concretização desta com o fato, levando-se em consideração as condições históricas que revelaram a existência desse direito.

A liberdade de expressão, sob a ótica do efeito concretizador da norma, será minorada para abarcar a inclusão do direito referente à não-discriminação, este decorrente da dignidade da pessoa humana.

Embora se reconheça que a liberdade de expressão é um direito no qual não possa ser restringido, a ponto de ser anulado; utilizando esse método, entretanto, prevalece o princípio da concordância prática do ordenamento constitucional nesse método. Portanto, o direito à livre expressão deve ser interpretado na prática fática, não podendo abrigar, em sua abrangência, conteúdo que viole o próprio desiderato constitucional.

O direito à livre expressão encontra, portanto restrições nas hipóteses constitucionalmente estabelecidas. Aplica-se aí o princípio da harmonia dos preceitos constitucionais. Esse direito, portanto, não consagra a possibilidade de, por ventura, incitar a prática discriminatória. A constituição federal repudia essa atitude quando no art. 5º, XLII, determinou a imprescritibilidade do delito.

A interpretação conforme a concretização da norma é, portanto, a mais adequada para a solução do caso em análise.

No entanto, como matérias de convencimento, aplicam-se critérios de ordem adstrita ao pensamento tópico, tais como o direito comparado, tendo em vista que a Suprema Corte Norte-Americana adota em seu ordenamento legal punições para os delitos que estimulem a segregação racial.

Ainda no pensamento tópico, poder-se-ia afirmar que os conceitos sociológicos, antropológicos e etnológicos repudiam a prática do racismo, portanto, não há como se defender a liberdade de expressão em detrimento da prática de conteúdos discriminatórios.

Por fim, ainda se entende que o pensamento hermenêutico-concretizador é o mais adequado para a conformação da interpretação constitucional, pois põem em confronto questões de ordem constitucional e não puramente valorativa como preceituam excessivamente os métodos tópicos e o científico-espiritual.

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Sobre o autor
Kleber Vinicius Bezerra Camelo de Melo

Defensor Público Federal. Especialista em Direito Tributário e Finanças Públicas (IDP/2011). Especialista em Direito Processual nos Tribunais Superiores (UniCEUB/2013).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MELO, Kleber Vinicius Bezerra Camelo. Interpretação constitucional no caso da colisão de direitos fundamentais.: Liberdade de expressão e não-discriminação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2201, 11 jul. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13146. Acesso em: 29 mar. 2024.

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